←
Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II
ECLOGA I.
INTERLOCUTORES.
UMBRANO, FRONDELIO, AONIA.
Que grande variedade vão fazendo,
Frondelio amigo, as horas apressadas!
Como se vão as cousas convertendo
Em outras cousas várias e insperadas!
Hum dia a outro dia vai trazendo
Por suas mesmas horas ja ordenadas;
Mas quão conformes são na quantidade,
Tão differentes são na qualidade.
Eu vi ja deste campo as várias flores
Ás estrellas do ceo fazendo inveja;
Adornados andar vi os pastores
De quanto por o mundo se deseja;
E vi co'o campo competir nas côres
Os trajes, de obra tanta e tão sobeja,
Que se a rica materia não faltava,
A obra de mais rica sobejava.
E vi perder seu preço ás brancas rosas
E quasi escurecer-se o claro dia
Diante de h~uas mostras perigosas,
Que Venus mais que nunca engrandecia.
As pastoras, emfim, vi tão formosas,{146}
Que o Amor de si mesmo se temia;
Mas mais temia o pensamento falto
De não ser para ter temor tão alto.
Agora tudo está tão differente,
Que move os corações a grande espanto;
E parece que Jupiter potente
Se enfada ja d'o mundo durar tanto.
O Tejo corre turvo e descontente,
As aves deixão seu suave canto,
E o gado, inda que a herva lhe fallece,
Mais que da falta della se emmagrece.
FRONDELIO.
Umbrano irmão, decreto he da natura,
Inviolavel, fixo e sempiterno,
Que a todo bem succeda desventura,
E não haja prazer que seja eterno:
Ao claro dia segue a noite escura,
Ao suave verão o duro inverno;
E se ha cousa que saiba ter firmeza,
He somente esta lei da natureza.
Toda alegria grande e sumptuosa
A porta abrindo vem ao triste estado:
Se hum'hora vejo alegre e deleitosa,
Temendo estou do mal apparelhado.
Não vês que mora a serpe venenosa
Entre as flores do fresco e verde prado?
Ah! não te engane algum contentamento;
Que mais instavel he que o pensamento.
E praza a Deos que o triste e duro fado
De tamanhos desastres se contente;
Que sempre hum grande mal inopinado{147}
He mais do que o espera a incauta gente:
Que vejo este carvalho que queimado
Tão gravemente foi do raio ardente.
Não seja ora prodigio que declare
Que o barbaro cultor meus campos are.
UMBRANO.
Em quanto do seguro azambujeiro
Nos pastores de Luso houver cajados,
Como valor antiguo, que primeiro
Os fez no mundo tão assinalados,
Não temas tu, Frondelio companheiro,
Qu'em algum tempo sejão sobjugados,
Nem que a cerviz indomita obedeça
A outro jugo qualquer que se lhe offreça.
E postoque a soberba se levante
De inimigos a torto e a direito,
Não crêas tu que a fôrça repugnante
Do fero e nunca ja vencido peito,
Que desde quem possue o monte Atlante
Adonde bebe o Hydaspe t~ee sujeito,
O possa nunca ser de fôrça alheia,
Em quanto o sol a terra e o ceo rodeia.
FRONDELIO.
Umbrano, a temeraria segurança
Qu'em fôrça, ou em razão não se assegura,
He falsa e vãa; que a grande confiança
Não he sempre ajudada da ventura.
Que lá junto das aras da esperança,
Némesis moderada, justa e dura,
Hum freio lhe está pondo e lei terribil,
Que os limites não passe do possibil.{148}
E se attentares bem os grandes danos
Que se nos vão mostrando cada dia,
Poras freio tambem a esses enganos
Que te está figurando a ousadia.
Tu não vês como os lobos Tingitanos,
Apartados de toda cobardia,
Mátão os cães do gado guardadores,
E não somente os cães, mas os pastores?
Pois o grande curral, seguro e forte,
Do alto monte Atlas não ouviste
Que com sanguinolenta e fera morte
Despovoado foi por caso triste?
Oh triste caso! oh desastrada sorte,
Contra quem fôrça humana não resiste!
Que alli tambem da vida foi privado
O meu Tionio, ainda em flor cortado!
UMBRANO.
Em lagrimas me banha rosto e peito
Desse caso terrivel a memoria,
Quando vejo quão sabio e quão perfeito,
E quão merecedor de longa historia
Era esse teu pastor, que sem direito
Deo ás Parcas a vida transitoria.
Mas não ha hi quem d'herva o gado farte,
Nem de juvenil sangue o fero Marte.
Porém, se te não for muito pezado,
(Ja qu'esta triste morte me lembraste)
Canta-me desse caso desastrado
Aquelles brandos versos que cantaste,
Quando hontem, recolhendo o manso gado,
De nós-outros pastores te apartaste;{149}
Qu'eu tambem que as ovelhas recolhia,
Não te podia ouvir como queria.
FRONDELIO.
Como queres renove ao pensamento
Tamanho mal, tamanha desventura?
Porqu'espalhar suspiros vãos ao vento,
Para os que tristes são, he falsa cura.
Mas, pois te move tanto o sentimento
Da morte de Tionio, triste e escura,
Eu porei teu desejo em doce effeito,
Se a dor me não congela a voz no peito.
UMBRANO.
Canta agora, pastor, que o gado pace
Entre as humidas hervas socegado;
E lá nas altas serras, onde nace,
O sacro Tejo á sombra recostado,
Co'os seus olhos no chão, a mão na face,
Está para te ouvir apparelhado;
E com silencio triste estão as Nymphas
Dos olhos destillando claras lymphas.
O prado as flores brancas e vermelhas
Está suavemente presentando;
As doces e solícitas abelhas,
Com susurro agradavel vão voando;
As candidas, pacíficas ovelhas,
Das hervas esquecidas, inclinando
As cabeças estão ao som divino
Que faz, passando, o Tejo crystallino.
O vento d'entre as árvores respira,
Fazendo companhia ao claro rio;
Nas sombras a ave garrula suspira,{150}
Sua mágoa espalhando ao vento frio.
Toca, Frondelio, toca a doce lira;
Que d'aquelle verde alamo sombrio
A branda Philomela entristecida
Ao mais saudoso canto te convida.
FRONDELIO.
Aquelle dia as águas não gostárão
As mimosas ovelhas; e os cordeiros
O campo enchêrão d'amorosos gritos.
E não se pendurárão dos salgueiros
As cabras, de tristeza; mas negárão
O pasto a si, e o leite a os cabritos.
Prodigios infinitos
Mostrava aquelle dia,
Quando a Parca queria
Princípio dar ao fero caso triste.
E tu tambem (ó corvo) o descobriste,
Quando da mão direita em voz escura,
Voando, repetiste
A tyrannica lei da morte dura.
Tionio meu, o Tejo crystallino,
E as árvores que ja desamparaste
Chórão o mal de tua ausencia eterna.
Não sei porque tão cedo nos deixaste!
Mas foi consentimento do Destino,
Por quem o mar e a terra se governa.
A noite sempiterna,
Que tu tão cedo viste
Cruel, acerba e triste,
Sequer de tua idade não te dera
Que lográras a fresca primavera?{151}
Não usára comnosco tal crueza,
Que nem nos montes fera,
Nem pastor ha no campo sem tristeza.
Os Faunos, certa guarda dos pastores,
Ja não seguem as Nymphas na espessura,
Nem as Nymphas aos cervos dão trabalho.
Tudo, qual vês, he cheio de tristura:
Ás abelhas o campo nega as flores,
Como ás flores a aurora nega o orvalho.
Eu que cantando espalho
Tristezas todo o dia,
A frauta que soia
Mover as altas árvores tangendo,
Se me vai de tristeza enrouquecendo;
Que tudo vejo triste neste monte:
E tu tambem correndo
Manas envolta e triste, ó clara fonte.
As Tagides no rio, e na aspereza
Do monte as Oreádas, conhecendo
Quem te obrigou ao duro e fero Marte;
Como em geral sentença vão dizendo,
Que não póde no mundo haver tristeza
Em cuja causa amor não tenha parte.
Porqu'elle, enfim, dest'arte
Nos olhos saudosos,
Nos passos vagarosos,
E no rosto, que Amor com phantasia
Da pallida viola lhe tingia,
A todos de si dava sinal certo
Do fogo que trazia;
Que nunca soube amor ser encoberto.{152}
Ja diante dos olhos lhe voavão
Imagens e phantasticas pinturas,
Exercicios do falso pensamento;
Ja por as solitarias espessuras
Entre os penedos sós, que não fallavão,
Fallava e descobria seu tormento.
Em longo esquecimento
De si, todo embebido,
Andava tão perdido,
Que quando algum pastor lhe perguntava
A causa da tristeza que mostrava,
Como quem para penas só vivia,
Sorrindo, lhe tornava:
Se não vivesse triste, morreria.
Mas como este tormento o sinalou,
E tanto no seu rosto se mostrasse,
Entendendo-o ja bem o pae sisudo,
Porque do pensamento lho tirasse,
Longe da causa delle o apartou;
Porque, emfim, longa ausencia acaba tudo.
Oh falso Marte rudo,
Das vidas cobiçoso!
Que donde o generoso
Peito resuscitava em tanta gloria
De seus Antecessores a memoria,
Alli, fero e cruel, lhe destruiste,
Por injusta victoria,
Primeiro que o cuidado, a vida triste.
Parece-me, Tionio, que te vejo,
Por tingires a lança cobiçoso
Naquelle infido sangue Mauritano,{153}
No Hispanico ginete bellicoso,
Que ardendo tambem vinha no desejo
De atropellar por terra ao Tingitano.
Oh confiado engano!
Oh encurtada vida!
Que a virtude opprimida
Da multidão forçosa do inimigo
Não pôde defender-se do perigo:
Porqu'assi o Destino o permittio;
E assi levou comsigo
O mais gentil pastor que o Tejo vio.
Qual o mancebo Euryalo enredado
Entre o poder dos Rutulos, fartando
As íras da soberba e dura guerra;
Do cristallino rosto a côr mudando,
Cujo purpureo sangue, derramado
Por as alvas espaldas, tinge a serra;
Que como flor, que a terra
Lhe nega o mantimento,
Porque o tempo avarento
Tambem o largo humor lhe t~ee negado,
O collo inclina languido e cansado:
Tal te pinto, ó Tionio, dando o esprito
A quem to tinha dado;
Qu'este he somente eterno e infinito.
Da congelada boca a alma pura,
Co'o nome juntamente da inimiga
E excellente Marfida, derramava.
E tu, gentil Senhora, não te obriga
A pranto sempiterno a morte dura
De quem por ti somente a vida amava?{154}
Por ti aos ecos dava
Accentos numerosos;
Por ti aos bellicosos
Exercicios se deo do fero Marte.
E tu ingrata o amor ja n'outra parte
Porás, como acontece ao fraco intento:
Que, emfim, emfim, dest'arte
Se muda o feminino pensamento.
Pastores deste valle ameno e frio,
Que de Tionio o caso desastrado
Quereis nas altas serras que se conte;
Hum tumulo, de flores adornado,
Lhe edificai ao longo deste rio,
Que a vela enfreie ao duro navegante:
E o lasso caminhante,
Vendo tamanha mágoa,
Arraze os olhos d'ágoa,
Lendo na pedra dura o verso escrito,
Que diga assi: Memoria sou, que grito
Para dar testimunho em toda parte
Do mais gentil Esprito
Que tirárão do mundo Amor e Marte.
UMBRANO.
Qual o quieto somno aos cansados
Debaixo de algum'árvore sombria;
Ou qual aos sequiosos encalmados
O vento respirante e a fonte fria:
Taes me forão teus versos delicados,
Teu numeroso canto e melodia:
E ainda agora o tom suave e brando
Os ouvidos me fica adormentando.{155}
Em quanto os peixes humidos tiverem
As areosas covas deste rio,
E correndo estas águas conhecerem
Do largo mar o antiguo senhorio;
E em quanto estas hervinhas pasto derem
Ás petulantes cabras, eu te fio
Que em virtude dos versos que cantaste
Sempre viva o pastor que tanto amaste.
Mas ja que pouco a pouco o sol nos falta,
E dos montes as sombras se accrescentão;
De flores mil o claro ceo se esmalta,
Que tão ledas aos olhos se presentão;
Levemos por o pé desta serra alta
Os gados, que ja agora se contentão
Do que comido t~ee, Frondelio amigo:
Anda; que até o outeiro irei comtigo.
FRONDELIO.
Antes por este valle, amigo Umbrano,
Se t'aprouver, levemos as ovelhas;
Porque, se eu por acêrto não me engano,
De lá me sôa hum eco nas orelhas:
O doce accento não parece humano.
E, se em contrário tu não m'aconselhas,
Eu quero descobrir que cousa seja;
Que o tom m'espanta, e a voz me faz inveja.
UMBRANO.
Comtigo vou, que quanto mais me chego,
Mais gentil me parece a voz que ouviste,
Peregrina, excellente; e não te nego
Que me faz cá no peito a alma triste.
Vês como t~ee os ventos em socêgo?{156}
Nenhum rumor da serra lhe resiste:
Nenhum passaro vôa, mas parece
Que, do canto vencido, lhe obedece.
Porém, irmão, melhor me parecia
Que não fôssemos lá; que estorvaremos;
Mas sobidos nest'árvore sombria,
Todo o valle de aqui descobriremos.
Os çurrões e cajados, todavia,
Neste comprido tronco penduremos:
Para subir fica homem mais ligeiro.
Deixa-me tu, Frondelio, ir primeiro.
FRONDELIO.
Espera, assi, dar-te-hei de pé, se queres:
Subirás sem trabalho e sem ruido;
E despois que subido lá 'stiveres,
Dar-me-has a mão de cima; que he partido.
Mas primeiro me dize, se o puderes
Ver, donde nasce o canto nunca ouvido;
Quem lança o doce accento delicado.
Falla; que ja te vejo estar pasmado.
UMBRANO.
Cousas não costumadas na espessura,
Que nunca vi, Frondelio, vejo agora:
Formosas Nymphas vejo na verdura,
Cujo divino gesto o ceo namora.
Huma de desusada formosura,
Que das outras parece ser Senhora,
Sôbre hum triste sepulcro, não cessando,
Está perlas dos olhos destillando.
De todas estas altas semidêas,
Qu'em tôrno estão do corpo sepultado,{157}
Humas, regando as humidas arêas,
De flores t~ee o tumulo adornado;
Outras, queimando lagrimas Sabêas,
Enchem o ar de cheiro sublimado;
Outras em ricos pannos, mais avante,
Envolvem brandamente hum novo infante.
Huma, que d'entre as outras se apartou,
Com gritos, que a montanha entristecêrão,
Diz, que despois que a morte a flor cortou
Que as estrellas somente merecêrão,
Este penhor charissimo ficou
Daquelle, a cujo imperio obedecêrão
Douro, Mondego, Tejo e Guadiana,
Até o remoto mar da Taprobana.
Diz mais, que se encontrar este menino
A noite intempestiva, amanhecendo,
O Tejo, agora claro e crystallino,
Tornará a fera Alecto em vulto horrendo.
Mas que, a ser conservado do Destino,
As benignas estrellas promettendo
Lh'estão o largo pasto de Ampelusa,
Co'o monte que em mao ponto vio Medusa.
Este prodigio grande Nympha bella
Com abundantes lagrimas recita.
Porém, qual a eclipsada clara estrella,
Qu'entre as outras o ceo primeiro habita:
Tal coberta de negro vejo aquella,
A quem só n'alma toca a grã desdita.
Dá cá, Frondelio, a mão; e sobe a ver
Tudo o mais qu'eu de dor não sei dizer.{158}
FRONDELIO.
Oh triste morte, esquiva e mal olhada,
Que a tantas formosuras injurías!
Áquella deosa bella e delicada
Sequer algum respeito ter devias.
Esta he, por certo, Aonia filha amada
Daquelle grã Pastor, qu'em nossos dias
Danubio enfreia, manda o claro Ibero,
E espanta o morador do Euxino fero.
Morreo-nos o excellente e poderoso,
(Que a isto está sujeita a vida humana)
Doce Aonio, d'Aonia charo Esposo.
Ah lei dos fados, aspera e tyrana!
Mas o som peregrino e piedoso,
Com que a formosa Nympha a dor engana,
Escuta hum pouco. Nota e vê, Umbrano,
Quão bem que sôa o verso Castelhano.
AONIA.
Alma, y primero amor del alma mia,
Espíritu dichoso, en cuya vida
La mia estuvo en cuanto Dios queria!
Sombra gentil de su prision salida,
Que del mundo á la patria te volviste,
Donde fuiste engendrada y procedida!
Recibe allá este sacrificio triste,
Que te offrecen los ojos que te vieron;
Si la memoria dellos no perdiste.
Que, pues los altos Cielos permitieron,
Que no te acompañase en tal jornada,
Y para ornarse solo á ti quisieron;
Nunca permitirán, que acompañada{159}
De mi no sea esta memoria tuya,
Que está de tus despojos adornada.
Ni dejará, por mas que el tiempo huya,
De estar en mí con sempiterno llanto,
Hasta que vida y alma se destruya.
Mas tú, gentil Espíritu, entretanto
Que otros campos y flores vas pisando,
Y otras zampoñas oyes, y otro canto;
Agora embevecido estés mirando
Allá en el Empireo aquella Idea,
Que el mundo enfrena y rige con su mando;
Agora te posuya Citherea
En el tercero asiento, ó porque amaste,
Ó porque nueva amante allá te sea;
Agora el sol te admire, si miraste
Como vá por los Signos, encendido,
Las tierras alumbrando que dejaste:
Si en ver estos milagros no has perdido
La memoria de mí, ó fué en tu mano
No pasar por las aguas del olvido;
Vuelve un poco los ojos á este llano,
Verás una, que á ti con triste lloro
Sobre este mármol sordo llama en vano.
Pero si entraren en los Signos de oro
Lágrimas y gemidos amorosos,
Que muevan el supremo y santo coro;
La lumbre de tus ojos tan hermosos
Yo la veré muy presto: y podré verte;
Que á pesar de los hados enojosos
Tambiem para los tristes hubo muerte.{160}
ECLOGA II.
INTERLOCUTORES.
ALMENO e AGRARIO.
Ao longo do sereno
Tejo, suave e brando,
N'hum valle d'altas árvores sombrio
Estava o triste Almeno
Suspiros espalhando
Ao vento, e doces lagrimas ao rio.
No derradeiro fio
O tinha a esperança,
Que com doces enganos
Lhe sustentára a vida tantos anos
N'h~ua amorosa e branda confiança;
Que quem tanto queria,
Parece que não erra, se confia.
A noite escura dava
Repouso aos cansados
Animaes esquecidos da verdura;
O valle triste estava
Co'huns ramos carregados,
Qu'inda a noite fazião mais escura.
Offrecia a espessura
Hum temeroso espanto:
As roucas rãas soavão
N'hum charco de água negra e ajudavão
Do passaro nocturno o triste canto:{161}
O Tejo com som grave
Corria mais medonho que suave.
Como toda a tristeza
No silencio consiste,
Parecia que o valle estava mudo.
E com esta graveza
Estava tudo triste,
Porém o triste Almeno mais que tudo:
Tomando por escudo
De sua doce pena,
Para poder soffrella,
Estar imaginando a causa della;
Qu'em tanto mal he cura bem pequena.
Maior o he o tormento,
Que toma por allívio hum pensamento.
Ao rio se queixava
Com lagrimas em fio,
Com que as ondas crescião outro tanto.
Seu doce canto dava
Tristes águas ao rio,
E o rio triste som ao doce canto.
Ao sonoroso pranto,
Que as águas enfreava,
Responde o valle umbroso.
De tanta voz o accento temeroso
Na outra parte do rio retumbava;
Quando, da phantasia
O silencio rompendo, assi dizia:
Corre suave e brando
Com tuas claras ágoas,
Sahidas de meus olhos, doce Tejo;{162}
Fé de meus males dando,
Para que minhas mágoas
Sejão castigo igual de meu desejo:
Que, pois em mim não vejo
Remedio, nem o espero;
E a morte se despreza
De me matar, deixando-me á crueza
Daquella por quem meu tormento quero;
Saiba o mundo meu dano,
Porque se desengane em meu engano.
Ja que minha ventura,
Ou a causa qu'a ordena,
Quer qu'em pago da dor tome o soffrella;
Será mais certa cura
Para tamanha pena
Desesperar d'haver ja cura nella.
Porque se minha estrella
Causou tal esquivança,
Consinta meu cuidado
Que me farte de ser desesperado,
Para desenganar minha esperança:
Pois somente nasci
Para viver na morte, e ella em mi.
Não cesse meu tormento
De fazer seu officio,
Pois aqui t~ee hum'alma ao jugo atada:
Nem falte o soffrimento,
Porque parece vício
Para tão doce mal faltar-me nada.
Oh Nympha delicada,
Honra da natureza!{163}
Como póde isto ser,
Que de tão peregrino parecer
Pudesse proceder tanta crueza?
Não vem de nenhum geito
De causa divinal contrário effeito.
Pois como pena tanta
He contra a causa della?
Fóra he do natural minha tristeza.
Mas a mi que m'espanta?
Não basta (ó Nympha bella)
Que podes perverter a natureza?
Não he a gentileza
De teu gesto celeste
Fóra do natural?
Não póde a natureza fazer tal:
Tu mesma (ó bella Nympha) te fizeste;
Porém, porque tomaste
Tão dura condição, se te formaste?
Por ti o alegre prado
Me he penoso e duro;
Abrolhos me parecem suas flores.
Por ti do manso gado,
Como de mi, não curo,
Por não fazer offensa a teus amores.
Os jogos dos pastores,
As lutas entr'a rama,
Nada me faz contente:
E sou ja do que fui tão differente,
Que quando por meu nome alguem me chama,
Pasmo, porque conheço
Qu'inda comigo proprio me pareço.{164}
O gado, que apascento,
São n'alma os meus cuidados;
As flores, que no campo sempre vejo,
São no meu pensamento
Teus olhos debuxados,
Com qu'estou enganando o meu desejo.
Do frio e doce Tejo
As águas se tornárão
Ardentes e salgadas,
Despois que minhas lagrimas cansadas
Com seu puro licor se misturárão;
Como quando mistura
Hyppanis co'o Exampêo sua água pura.
Se ahi no mundo houvesse
Ouvires-me algum'hora,
Assentados na praia deste rio;
E d'arte te dissesse
O mal que passo agora,
Que pudesse mover-te o peito frio!..
Oh quanto desvario,
Qu'estou imaginando!
Ja agora meu tormento
Não póde pedir mais ao pensamento,
Qu'este phantasiar, donde penando
A vida me reserva.
Querer mais de meu mal será soberba.
Ja a esmaltada Aurora
Descobre o negro manto
Da sombra, que as montanhas encobria.
Descansa, frauta, agora,
Pois meu escuro canto{165}
Não merece que veja o claro dia.
Não canse a phantasia
D'estar em si pintando
O gesto delicado,
Em quanto traz ao pasto o manso gado
Esse pastor, que lá só vem fallando.
Callar-me-hei somente;
Que o meu mal nem ouvir se me consente.
AGRARIO.
Formosa manhãa clara e deleitosa,
Que, como fresca rosa na verdura,
Te mostras bella e pura, marchetando
As Nymphas, espalhando teus cabellos
Nos verdes montes bellos; tu só fazes,
Quando a sombra desfazes triste e escura,
Formosa a espesura e a clara fonte,
Formoso o alto monte e o rochedo,
Formoso o arvoredo e deleitoso,
E emfim tudo formoso co'o teu rosto
D'ouro e rosas composto e claridade;
Trazes a saudade ao pensamento,
Mostrando em hum momento o roxo dia,
Com a doce harmonia nos cantares
Dos passaros a pares, que voando
Seu pasto andão buscando nos raminhos,
Para os amados ninhos que mantém.
Oh grande e summo bem da natureza!
Estranha subtileza de pintora,
Que matiza em hum'hora de mil côres
O ceo, a terra, as flores, monte e prado!
Oh tempo ja passado! quão presente{166}
Te vejo abertamente na vontade!
Quão grande saudade tenho agora
Do tempo que a pastora minha amava,
E de quanto prezava a minha dor!
Então tinha o amor maior poder,
Quando em hum só querer nos igualava;
Porque quando hum amava a quem queria,
Logo eco respondia d'affeição
No brando coração da doce imiga.
Nesta amorosa liga concertavão
Os tempos, que passavão com prazeres.
Mostrava a flava Ceres por as eiras
Das brancas sementeiras ledo fruto,
Pagando seu tributo aos Lavradores;
E enchia aos pastores todo o prado
Pales do manso gado guardadora.
Hião Zéphyro e Flora passeando,
Os campos esmaltando de boninas;
Nas fontes cristallinas triste estava
Narciso, qu'inda olhava n'água pura
Sua linda figura e delicada:
Mas Eco, namorada de tal gesto,
Com pranto manifesto, seu tormento
No derradeiro accento lamentava.
Alli tambem se achava o sangue tinto
Do purpureo Jacintho; e o destrôço
De Adonis bello moço; morte fêa
Da bella Cytherêa tão chorada;
Toda a terra esmaltada destas rosas.
Hião Nymphas formosas por os prados;
E os Faunos namorados apos ellas,{167}
Mostrando-lhes capellas de mil côres,
Ordenadas das flores que colhião:
As Nymphas lhe fugião espantadas,
As faldas levantadas, por os montes.
Via-sea água das fontes espalhar-se;
Vertumno transformar-se alli se via;
Pomona, que trazia os doces fruitos;
Alli pastores muitos, que tangião
As gaitas que trazião, e cantando
Estavão enganando as suas penas,
Tomando das Sirenas o exercicio.
Ouvia-se Salicio lamentar-se;
Da mudança queixar-se crua e fêa
Da dura Galathêa tão formosa:
E da morte invejosa Nemoroso
Ao monte cavernoso se querella,
Que a sua Elisa bella em pouco espaço
Cortou inda em agraço. Ah dura sorte!
Oh immatura morte, que a ninguem
De quantos vida t~ee jamais perdoas!
Mas tu, tempo, que voas apressado,
Hum deleitoso estado quão asinha
Nesta vida mesquinha transfiguras
Em mil desaventuras, e a lembrança
Nos deixas por herança do que levas!
Assi que se nos cevas com prazeres,
He para nos comeres no melhor.
Cada vez em peor te vás mudando:
Quanto v~ees inventando, qu'hoje approvas,
Logo á manhãa reprovas com instancia.
Oh perversa inconstancia e tão profana{168}
De toda cousa humana inferior,
A quem o cego error sempre anda annexo!
Mas eu de que me queixo? ou eu que digo?
Vive o tempo comigo? ou elle tem
Culpa no mal que vem da cega gente?
Por ventura elle sente, ou elle entende
Aquillo que defende o ser divino?
Elle usa de contino seu officio,
Que ja por exercicio lhe he devido:
Dá-nos fructo colhido na sazão
Do formoso verão; e no inverno,
Com seu humor eterno congelado,
Do vapor levantado co'a quentura
Do sol, a terra dura lhe dá alento,
Para que o mantimento produzindo,
Estê sempre cumprindo seu costume.
Assi que não consume de si nada,
Nem muda da passada vida hum dedo:
Antes sempre está quedo no devido,
Porqu'este he seu partido e sua usança;
E nelle esta mudança he mais firmeza.
Mas quem a Lei despreza, e pouco estima,
De quem de lá de cima está movendo
O ceo sublime e horrendo, o mundo puro,
Este muda o seguro e firme estado
Do tempo, não mudado de verdade.
Não foi naquella idade d'ouro claro
O firme tempo charo e excellente?
Vivia então a gente moderada;
Sem ser a terra arada dava pão;
Sem ser cavado o chão as fructas dava;{169}
Nem águas desejava, nem quentura;
Suppria então natura o necessario.
Pois quem foi tão contrário a esta vida?
Saturno, que, perdida a luz serena,
Causou, qu'em dura pena, desterrado,
Fosse do ceo lançado, onde vivia;
Porque os filhos comia, que gerava.
Por isso se mudava o tempo igual
Em mais baixo metal: e assi descendo
Nos veio, emfim, trazendo a este estado.
Mas eu, desatinado, aonde vou?
Para onde me levou a phantasia?
Qu'estou gastando o dia em vãas palavras?
Quero ora minhas cabras ir levando
Ao Tejo claro e brando; porque achar
No mundo qu'emendar, não he d'agora:
Basta que a vida fóra delle tenho:
Com meu gado me avenho, e estou contente.
Porém, se me não mente a vista, eu vejo
Nesta praia do Tejo estar deitado
Almeno, que enlevado em pensamentos,
As horas e os momentos vai gastando:
Vou-me a elle chegando, só por ver
Se poderei fazer que o mal que sente,
Hum pouco se lhe ausente da memoria.
ALMENO.
Oh doce pensamento! oh doce gloria!
São estes por ventura os olhos bellos,
Que t~ee de meus sentidos a victoria?
São estas, Nympha, as tranças dos cabellos,
Que fazem de seu preço o ouro alheio,{170}
Como a mi de mi mesmo só com vellos?
He esta a alva columna, o lindo esteio,
Sustentador das obras mais que humanas,
Qu'eu nestes braços tenho, e não o creio?
Ah falso pensamento, que me enganas!
Fazes-me pôr a boca onde não devo,
Com palavras de doudo, ou quasi insanas!
Como a alçar-te tão alto assi me atrevo?
Taes azas dou-tas eu, ou tu mas dás?
Levas-me tu a mi, ou eu te levo?
Não poderei eu ir onde tu vás?
Porém, pois ir não posso onde tu fores,
Quando fores, não tornes onde estás.
AGRARIO.
Oh que triste successo foi de amores,
O que a este pastor aconteceo,
Segundo ouvi contar a outros pastores!
Tanto emfim, por seu damno se perdeo,
Que o longo imaginar em seu tormento,
Em desatino Amor lh'o converteo.
Oh forçoso vigor do pensamento,
Que póde em outra cousa estar mudando
A fórma, a vida, o siso, o entendimento!
Está-se hum triste amante transformando
Na vontade daquella, que tanto ama,
De si a propria essencia transportando.
E nenhum'outra cousa mais desama,
Que a si, se vê qu'em si ha algum sentido,
Que deste fogo insano não se inflama.
Almeno, que aqui 'stá tão influido
No phantastico sonho, que o cuidado{171}
Lhe traz sempre ante os olhos esculpido,
Está-se-lhe pintando, de enlevado,
Que t~ee ja da phantastica pastora
O peito diamantino mitigado.
Em este doce engano estava agora
Fallando como em sonho, mas achando
Ser vento o que sonhava, grita e chora.
Dest'arte andavão sonhos enganando
O pastor somnolento, que a Diana
Andava entre as ovelhas celebrando;
Dest'arte a nuvem falsa, em fórma humana,
O vão pae dos Centauros enganava:
(Que Amor quando contenta, sempre engana)
Como este, que comsigo só fallava,
Cuidando que fallava, de enleado,
Com quem lhe o pensamento figurava.
Não póde quem quer muito, ser culpado
Em nenhum êrro, quando vem a ser
Este amor em doudice transformado.
Amor não será amor, se não vier
Com doudices, deshonras, dissensões,
Pazes, guerras, prazer e desprazer;
Perigos, linguas más, murmurações
Ciumes, arruidos, competencias,
Temores, nojos, mortes, perdições.
Estas são verdadeiras penitencias
De quem põe o desejo onde não deve,
De quem engana alheias innocencias.
Mas isto t~ee o amor, que não se escreve
Senão donde he illicito e custoso;
E donde he mais o risco, mais se atreve.{172}
Passava o tempo alegre e deleitoso
O Troiano pastor, em quanto andava
Sem ter alto desejo e perigoso.
Seus furiosos touros coroava,
E nos álamos altos escrevia
Teu nome (Enone) quando a ti só amava.
Os álamos crescião, e crescia
O amor qu'elle te tinha: sem perigo,
E sem temor, contente te servia.
Mas despois que deixou entrar comsigo
Illicito desejo e pensamento,
De sua quietação tão inimigo;
A toda a patria poz em detrimento
Com mortes de parentes e de irmãos,
Com crú incendio, e grande perdimento.
Nisto fenecem pensamentos vãos:
Tristes serviços mal galardoados,
Cuja glória se passa d'entre as mãos.
Lagrimas e suspiros arrancados
D'alma, todos se pagão com enganos:
E oxalá forão muitos enganados!
Andão com seu tormento tão ufanos,
Que gastão na doçura d'hum cuidado
Apos huma esperança muitos anos.
E talha tão perdido namorado,
Tão contente co'o pouco, que daria
Por hum só volver d'olhos todo o gado.
Em todo povoado e companhia,
Sendo ausentes de si, se vem presentes
Com quem lhes pinta sempre a phantasia.
Co'hum certo não sei que andão contentes,{173}
E logo hum nada os torna, ao contrário,
De todo ser humano differentes.
Oh tyrannico Amor, oh caso vario,
Que obrigas a hum querer que sempre seja
De si contínuo e aspero adversario!
E qu'outr'hora nenhuma alegre esteja,
Senão quando do seu despôjo amado
Sua inimiga estar triumphando veja.
Quero fallar com este, qu'enredado
Nesta cegueira está sem nenhum tento.
Acorda ja, pastor, desacordado.
ALMENO.
Oh porque me tiraste hum pensamento,
Que agora estava aos olhos debuxando,
De quem aos meus foi doce mantimento?
AGRARIO.
Nesta imaginação estás gastando
O tempo e vida, Almeno? Perda grande!
Não vês quão mal os dias vás passando?
ALMENO.
Formosos olhos, ande a gente e ande;
Que nunca vos ireis dest'alma minha,
Por mais qu'o tempo corra, a morte o mande.
AGRARIO.
Quem poderá cuidar que tão asinha
Se perca o curso assi do siso humano,
Que corre por direita e justa linha?
Que sejas tão perdido por teu dano,
Almeno meu, não he por certo aviso;
He só doudice grande, grande engano.{174}
ALMENO.
Ó Agrario meu, que vendo o doce riso,
E o rosto tão formoso, como esquivo,
O menos que perdi foi todo o siso.
E não entendo, desque sou captivo,
Outra cousa de mi, senão que mouro:
Nem isto entendo bem, pois inda vivo.
Á sombra deste umbroso e verde louro
Passo a vida, ora em lagrimas cansadas,
Ora em louvores dos cabellos d'ouro.
Se perguntares porque são choradas,
Ou porque tanta pena me consume,
Revolvendo memorias magoadas;
Desque perdi da vida o claro lume,
E perdi a esperança e causa della,
Não chóro por razão, mas por costume.
Jamais pude co'o fado ter cautella;
Nem houve nunca em mi contentamento,
Que não fosse trocado em dura estrella.
Que bem livre vivia e bem isento,
Sem qu'ao jugo me visse submettido
De nenhum amoroso pensamento!
Lembra-me, amigo Agrario, que o sentido
Tão fóra d'amor tinha, que me ria
De quem por elle via andar perdido.
De várias côres sempre me vestia;
De boninas a fronte coroava;
Nenhum pastor cantando me vencia.
A barba então nas faces me apontava;
Na luta, na carreira, em qualquer manha,
Sempre a palma entre todos alcançava.{175}
Da minha idade tenra, em tudo estranha,
Vendo (como acontece) affeiçoadas
Muitas Nymphas do rio e da montanha;
Com palavras mimosas e forjadas,
De solta liberdade e livre peito,
As trazia contentes e enganadas.
Mas não querendo Amor, que deste geito
Dos corações andasse triumphando,
Em quem elle criou tão puro affeito;
Pouco a pouco me foi de mi levando
Dissimuladamente ás mãos de quem
Toda esta injuria agora está vingando.
AGRARIO.
Deste teu caso, Almeno, eu sei mui bem
O princípio e o fim; que Nemoroso
Contado tudo isso, e mais, me tem.
Mas (quero-to dizer) se este enganoso
Amor he tão usado a desconcertos,
Que nunca amando fez pastor ditoso;
Ja que nelle estes casos são tão certos,
Porqu'os estranhas tanto, que de mágoa
Te chorão valles, montes e desertos?
Vejo-te estar gastando em viva fragoa,
E juntamente em lagrimas; vencendo
A grã Sicilia em fogo, o Nilo em ágoa.
Vejo que as tuas cabras, não querendo
Gostar as verdes hervas, se emmagrecem,
As tetas aos cabritos encolhendo.
Os campos, que co'o tempo reverdecem,
Os olhos alegrando descontentes,
Em te vendo, parece, se entristecem.{176}
De todos teus amigos e parentes,
Que lá da serra vem por consolar-te,
Sentindo na alma a pena, que tu sentes,
Se querem de teus males apartar-te,
Deixando a choça e gado vás fugindo,
Como cervo ferido, a outra parte.
Não vês que Amor, as vidas consumindo,
Vive só de vontades enlevadas
No falso parecer d'hum gesto lindo?
Nem as hervas das águas desejadas
Se fartão; nem de flores as abelhas;
Nem este Amor de lagrimas cansadas.
Quantas vezes, perdido entr'as ovelhas,
Chorou Phebo de Daphne as esquivanças,
Regando as flores brancas e vermelhas?
Quantas vezes as asperas mudanças
O namorado Gallo t~ee chorado
De quem o tinha envolto em esperanças?
Estava o triste amante recostado,
Chorando ao pé d'hum freixo o triste caso,
Que o falso Amor lhe tinha destinado.
Por elle o sacro Pindo e o grão Parnaso,
Na fonte de Aganippe destillando,
Se fazião de lagrimas hum vaso.
O intonso Apollo o vinha alli culpando,
A sobeja tristeza perigosa
Com asperas palavras reprovando.
Gallo, porqu'endoudeces? que a formosa
Nympha, que tanto amaste, descobrindo
Por falsa a fé, que dava, e mentirosa;
Por as Alpinas neves vai seguindo{177}
Outro bem, outro amor, outro desejo;
Como inimiga, emfim, de ti fugindo.
Mas o misero amante, que o sobejo
Mal empregado amor lhe defendia
Ter de tamanha fé vergonha ou pejo;
Da falsífica Nympha não sentia
Senão que o frio do gelado Rheno
Os delicados pés lhe offenderia.
Ora se tu vês claro, amigo Almeno,
Que d'Amor os desastres são de sorte,
Que para matar basta o mais pequeno,
Porque não pões hum freio a mal tão forte,
Qu'em estado te põe, que sendo vivo,
Ja não se entende em ti vida nem morte?
ALMENO.
Agrario; se do gesto fugitivo,
Por caso de fortuna desastrado,
Algum'hora deixar de ser captivo;
Ou sendo para as Ursas degradado,
Adonde Boreas t~ee o Oceano
Co'os frios Hyperboreos congelado;
Ou donde o filho de Climene insano,
Mudando a côr das gentes totalmente,
As terras apartou do trato humano;
Ou se ja por qualquer outro accidente
Deixar este cuidado tão ditoso,
Por quem sou de ser triste tão contente;
Este rio, que passa deleitoso,
Tornando para traz, irá negando
Á natureza o curso pressuroso.
As cabras por o mar irão buscando{178}
Seu pasto; e andar-se-hão por a espessura
Das hervas os delfins apascentando.
Ora se tu vês, n'alma quão segura
Deste amor tenho a fé, para qu'insistes
Nesse conselho e prática tão dura?
Se de tua porfia não desistes,
Vae repastar teu gado a outra parte;
Qu'he dura a companhia para os tristes.
Huma só cousa quero encomendarte,
Para repouso algum de meu engano,
Antes que o tempo, emfim, de mi te aparte:
Que s'esta fera, qu'anda em traje humano,
Por a montanha vires ir vagando,
De meu despôjo rica e de meu dano,
Comos vivos espritos inflammando
O ar, o monte e a serra, que comsigo
Continuamente leva namorando;
Se queres contentar-me, como amigo,
Passando, lhe dirás: Gentil pastora,
Não ha no mundo vício sem castigo.
Tornada em puro marmore não fôra
A fera Anaxarete, se amoroso
Mostrára o rosto angelico algum'hora.
Foi bem justo o castigo rigoroso:
Porém quem te ama (Nympha) não queria
Nódoa tão feia em gesto tão formoso.
AGRARIO.
Tudo farei, Almeno, e mais faria
Por algum dia ver-te descansado,
Se s'acabão trabalhos algum dia.
Mas bem vês como Phebo ja empinado{179}
Me manda que da calma iniqua e crua,
Recolha em algum valle o manso gado.
Tu nessa phantasia falsa e nua,
Para engano maior de teu perigo,
Não queres companhia mais que a sua.
Vou-me d'aqui, e fique Deos comtigo;
E ficarás melhor acompanhado.
ALMENO.
Elle comtigo vá, como comigo
Me fica acompanhando o meu cuidado.
ECLOGA III.
INTERLOCUTORES.
ALMENO e BELISA.
Passado ja algum tempo que os amores
D'Almeno, por seu mal, erão passados,
Porque nunca Amor cumpre o que promette;
Entr'huns verdes ulmeiros apartado,
Regando por o campo as brancas flores,
Em lagrimas cansadas se derrete:
Quando a linda pastora, que compete
Co'o monte em aspereza,
Co'o prado em gentileza,
Por quem o pastor triste endoudecia,
Por a praia do Tejo discorria{180}
A lavar a beatilha e o trançado:
O sol ja consentia
Que sahisse da sombra o manso gado.
Ja acordado daquelle pensamento
Que tão desacordado sempre o teve,
Vio por acêrto o bem, que incerto tinha.
E porque donde amor a mais se atreve,
Alli mais enfraquece o entendimento,
Não lhe soube dizer o que convinha.
Como homem que á aprazada briga vinha,
A quem de fóra engana
A confiança humana,
E despois, vendo o rosto a quem resiste,
Treme, e teme o perigo e não insiste;
Ja se arrepende, a audacia lhe fallece:
Dest'arte o pastor triste
Ousa, receia, esforça e enfraquece.
E tendo assi ja attonito o sentido,
Cometteo com furor desatinado,
E tirou da fraqueza coração.
Comettimento foi desesperado:
Qu'huma só salvação t~ee hum perdido,
Perder toda a esperança á salvação.
As mágoas, que passárão, se dirão:
Mas as qu'ella dizia,
Lembrando-lhe que via
As águas murmurar do Tejo amenas,
Remetto a vós, ó Tagides Camenas;
Qu'eu, de mágoa, não posso dizer tanto;
Porqu'em tamanhas penas
Me cansa a penna, e a dor m'impede o canto.{181}
BELISA.
Que alegre campo e praia deleitosa!
Quão saudosa faz esta espessura
A formosura angelica e serena
Da tarde amena! Quão saudosamente
A sesta ardente abranda, suspirando,
De quando em quando o vento alegre e frio!
No fundo rio os mudos peixes sáltão;
Os ceos se esmaltão todos d'ouro e verde,
E Phebo perde a fôrça da quentura.
Por a espessura levão, passeando,
O gado brando ao som das çanfoninas,
Pizando as finas e formosas flores,
Os Guardadores, que cantando o gesto
Formoso e honesto das pastoras qu'amão,
Por o ar derramão mil suspiros vãos.
Hum louva as mãos, louva outro os raios bellos,
Outro os cabellos d'ouro, em som suave:
E a amorosa ave leva o contraponto.
Mas oh que conto e saudosa historia
Que na memoria aqui se m'offerece!
Se não m'esquece, ja deste lugar
Ouvi soar os valles algum dia,
E respondia o eco o nome em vão
N'hum coração, Belisa retumbando.
Estou cuidando como o tempo passa,
E quão escaça he toda alegre vida;
E quão comprida, quando he triste e dura.
Nesta 'spessura longo tempo amei:
Se m'enganei com quem do peito amava,
Não me pezava de ser enganada.{182}
Fui salteada, emfim, d'hum pensamento,
Que hum movimento tinha casto e são.
Conversação foi fonte dest'engano
Que, por meu dano, entrou com falsa côr.
Porque o amor na Nympha, que he segura,
Entra em figura de vontade honesta.
Mas que me presta agora dar desculpa?
Pois se houve culpa, foi do firme amor
Só, n'hum pastor, que nunca sol nem l~ua,
Ou serra alg~ua, desde o Ibero ao Indo,
Outro tão lindo vírão, tão manhoso.
Nest'amoroso estado, e fé que tinha
Nest'alma minha tão secretamente,
Vivi contente, amando e encobrindo.
Elle fingindo mentirosos danos,
Que são enganos que não custão nada;
Tendo alcançada ja no entendimento
A fé e intento meu só nelle pôsto;
(Que logo o rosto mostra os corações,
E as affeições co'os olhos se praticão
Que mais publicão muito, que palavras)
Com suas cabras sempre á parte vinha,
Ond'eu mantinha os olhos do desejo.
Tu, manso Tejo, e tu, florído prado,
Do mais passado, emfim, que aqui não digo,
Sereis, m'obrigo, testimunho certo;
Pois descoberto vos foi tudo e claro.
Oh tempo avaro! oh sorte nunca igual!
Quão grande mal quereis á humana gente!
Porque hum contente estado assi trocastes?
Vós me tirastes do meu peito isento{183}
O pensamento honesto e repousado,
Ja dedicado ao côro de Diana;
Vós n'huma ufana vida me puzestes,
E alli quizestes que gozasse o dano
Do doce engano, que se chama amor,
Com cujo error passava o tempo ledo:
E vós tão cedo me tirais hum bem,
Que Amor ja tem impresso n'alma minha,
Despois qu'a tinha envolta em esperanças;
E com lembranças tristes me deixais?
Mal me pagais a fé que sempre tive.
Mas assi vive quem sem dita nace.
Mas ja a face alegre o sol esconde;
E não responde alguem a tantas mágoas,
Senão as ágoas, que dos olhos sahem.
As sombras cahem; vão-se as alimarias,
Fartas das várias hervas, seu caminho;
Buscão seu ninho os passaros sem dono:
Ja por o sono esquecem o comer.
Quero esquecer tambem tão doce historia,
Pois he memoria que traz mor cuidado.
Isto he passado; e se me deo paixão,
Os dias vão gastando o mal e o bem;
E não convém querer-me magoar
Do qu'emendar não posso ja com mágoas.
Nas claras ágoas deste rio brando,
Que vão regando o valle matizado,
Este trançado lavar quero emfim;
Que ja de mim m'esqueço co'a lembrança
Desta mudança, qu'esquecer não sei:
Bem qu'eu verei mudar a opinião,{184}
Pois homens são: a quem o esquecimento
Depressa faz mudar o pensamento.
ALMENO.
Se a vista não m'engana a phantasia,
Como ja m'enganou mil vezes, quando
Minha ventura enganos me soffria;
Parece-me, que vejo estar lavando
Huma Nympha algum véo no claro Tejo,
Que se m'está Belisa figurando.
Não póde ser verdade isto que vejo;
Que facilmente aos olhos se figura
Aquillo que se pinta no desejo.
Oh acontecimento, qu'a ventura
Me dá para mor damno! Esta he, certo;
Que não he d'outrem tanta formosura.
Se poderei fallar-lhe de mais perto?
Mas fugir-me-ha. Não póde ser; qu'o rio
Para acolá não t~ee caminho aberto.
Oh temor grande! oh grande desvario,
Qu'a voz m'impede, e a lingua negligente
Assi m'está tornando, e o peito frio!
De quanto me sobeja, estando ausente,
Que para lhe fallar sempre imagino,
Tudo me falta quando estou presente.
Oh aspecto suave e peregrino!
Pois como? tão asinha assi s'esquece
Huma fé verdadeira, hum amor fino?
BELISA.
Oh altas semideas! pois padece
Em vosso rio a honra delicada
De quem tamanha fôrça não merece:{185}
Ou seja por vós, Nymphas, preservada;
Ou em arvore alguma, ou pedra dura
Me deixai velozmente transformada.
ALMENO.
Ah Nympha! não te mudes a figura:
Nem vós, deosas, queirais qu'eu seja parte
De se mudar tão rara formosura.
Porqu'a quem falta a voz para fallar-te,
E a quem falta o despejo da ousadia,
Tambem faltarão mãos para tocar-te.
BELISA.
Que me queres, Almeno, ou que porfia
Foi a tua tão aspera comigo?
Minha vontade não to merecia.
Se com amor o fazes, eu te digo,
Qu'amor, que tanto mal me faz em tudo,
Não póde ser amor, mas inimigo.
Não es tu de saber tão falto e rudo,
Que tão sem siso amasses, como amaste.
ALMENO.
Onde viste tu, Nympha, amor sisudo?
Porque ja não te lembra que folgaste
Com meus tormentos tristes, e algum'hora
Com teus formosos olhos ja m'olhaste?
Como t'esquece ja (gentil pastora)
Que folgavas de ler nos freixos verdes
O que de ti 'screvia cada hora?
Porqu'a memoria tão á pressa perdes
Do amor que me mostravas, qu'eu não digo,
Se o vós, ó altos montes, não disserdes?
E como te não lembras do perigo,{186}
A que só por m'ouvir t'aventuravas,
Buscando horas de sesta, horas d'abrigo?
Co'a maçãa da discordia me tiravas;
Qu'a Venus, qu'a ganhou por formosura,
Tu, como mais formosa, lha ganhavas.
E escondendo-te logo na'spessura,
Hias fugindo, como vergonhosa
Da namorada e doce travessura.
Não era esta a maçãa d'ouro formosa
Com qu'encoberta assi d'astucia tanta
Cydippe s'enganou por cubiçosa,
Nem a que o curso teve d'Atalanta;
Mas era aquella, com que Galathêa
O pastor captivou, como elle canta.
Se más tenções puzerão nodoa fêa
Em nosso firme amor, d'inveja pura,
Porque pagarei eu a culpa alhea?
Quem desta fé, quem dest'amor não cura,
Nunca teve sujeito o coração;
Queo firme amor com a alma eterna dura.
BELISA.
Mal conheces, Almeno, huma affeição;
Que s'eu desse amor tenho esquecimento,
Meus olhos magoados to dirão.
Mas teu sobejo e livre atrevimento,
E teu pouco segredo, descuidando,
Foi causa deste longo apartamento.
Vês as Nymphas do Tejo, que mudando
Me vão ja pouco a pouco, o claro gesto
N'outra mais dura fórma traspassando.
Hum só segredo meu te manifesto:{187}
Que te quiz muito em quanto Deos queria;
Mas de pura affeição, d'amor honesto.
E pois de teus descuidos e ousadia
Nasceo tão dura e aspera mudança,
Fólgo; que muitas vezes to dizia.
Fica-te embora, e perde a confiança
De ver-me nunca mais, como ja viste:
Que assi se desengana huma esperança.
ALMENO.
Oh duro apartamento! oh vida triste!
Oh nunca acontecida desventura!
Pois como, Nympha? assi te despediste?
Assi s'ha d'ir tornando (ah sorte dura!)
Nesta sylvestre e aspera rudeza
Tão branda e excellente formosura?
Tua nunca entendida gentileza,
E teus membros assi se transformárão,
Negando-se-lhe a propria natureza?
Dest'arte os teus cabellos se tornárão
(Deixando ja seu preço ao ouro fino)
Em fôlhas, que a côr t~ee do que negárão?
S'este consentimento foi divino,
Consinta-me tambem que perca a vida,
Antes que a mais m'obrigue o desatino.
Pois se a fortuna sempre embravecida
Em meu tormento tanto se desmede,
Não viva mais hum'alma tão perdida.
E vós, feras do monte, pois vos pede
Minha pena o remedio derradeiro,
Fartae ja de meu sangue vossa sêde.
E vós, pastores rudos deste outeiro,{188}
Porque a todos, emfim, se manifeste
Que cousa he amor puro e verdadeiro;
Á sombra deste funebre cypreste
Me fareis hum sepulcro sem arrêo
De boninas que o prado ameno veste.
As desusadas musicas de Orphêo
Aqui me cantareis; e desta sorte
Não haverei inveja ao mausolêo.
E porqu'a minha cinza se conforte,
Em vossos metros doces e suaves
As exequias direis de minha morte.
Alli responderão as altas aves,
Não módulas no canto nem lascivas,
Mas de dor ora roucas, ora graves.
Não correrão as águas fugitivas,
Alegres por aqui, mas saudosas,
Que pareça que vem dos olhos vivas.
Nascerão por as praias deleitosas
Os asperos abrolhos em lugar
Dos roxos lirios, das pudicas rosas.
Não trarão as ovelhas a pastar
De redor do sepulcro os guardadores;
Pois nada comerião de pezar.
Virão os Faunos, guarda dos pastores,
Se morri por amores, perguntando;
Responderão os ecos: Por amores.
Dos que por aqui forem caminhando,
Hum epitaphio triste se lerá,
Qu'esteja minha morte declarando.
E no tronco de huma árvore estara,
N'huma rude cortiça pendurado{189}
Escripto co'huma fouce, e assi dirá:
Almeno fui, pastor de manso gado,
Em quanto o consentio minha ventura,
De Nymphas e pastores celebrado.
Se algum dia, por caso, na 'spessura
Se perder o amor e a affeição,
Tirem a pedra desta sepultura,
E em figura de cinza os acharão.
ECLOGA IV.
INTERLOCUTORES.
FRONDOSO e DURIANO.
Cantando por hum valle docemente
Descião dous pastores, quando Phebo
No reino Neptunino se escondia:
De idade cada qual era mancebo;
Mas velho no cuidado, e descontente
Do que lh'elle causava parecia.
O que cada hum dizia
Lamentando seu mal, seu duro fado,
Não sou eu tão ousado,
Que o pretenda cantar sem vossa ajuda:
Porque se a minha ruda
Frauta deste favor vosso for dina,
Posso escusar a fonte Caballina.
Em vós tenho Helicon, tenho Pegáso;{190}
Em vós tenho Calliope e Thalia;
E as outras sete irmãas, co'o fero Marte;
Em vós deixou Minerva sua valia;
Em vós estão os sonhos do Parnaso;
Das Pierides em vós s'encerra a arte.
Com qualquer pouca parte,
Senhora, que me deis d'ajuda vossa
Podeis fazer qu'eu possa
Escurecer ao sol resplandecente:
Podeis fazer que a gente
Em mi do grão poder vosso s'espante;
E que vossos louvores sempre cante.
Podeis fazer que cresça d'hora em hora
O nome Lusitano, e faça inveja
A Esmirna, que d'Homero s'engrandece.
Podeis fazer tambem que o mundo veja
Soar na ruda frauta o que a sonora
Cithara Mantuana só merece.
Ja agora me parece,
Que podem começar os meus pastores
A cantar seus amores.
Porqu'inda que presentes não estejão
As qu'elles ver desejão,
Mudança de lugar, menos d'estado,
Não muda hum coração do seu cuidado.
Ja deixava dos montes a altura,
E nas salgadas ondas s'escondia
O sol, quando Frondoso e Duriano,
Ao longo d'hum ribeiro, que corria
Por a mais fresca parte da verdura
Claro, suave e manso, todo o ano,{191}
Lamentando seu dano,
Vinhão ja recolhendo o manso gado.
Hum estava callado,
Em quanto hum pouco o outro se queixava;
Apos elle tornava
A dizer de seu mal o que sentia;
E em quanto este fallava, aquelle ouvia.
Vinhão-se assi queixando aos penedos,
Aos sylvestres montes e á aspereza,
Que quasi de seus males se doião.
Alli as pedras perdião a dureza;
Alli correntes rios estar quedos,
Promptos ás suas queixas, parecião.
Somente as que podião
Estes males curar, pois os causavão,
O ouvido lhes negavão,
Por perderem de todo a esperança:
Mas elles, que mudança
D'amor com tantos damnos não fazião,
Com ellas fallando inda, assi dizião:
FRONDOSO.
Isto he o que aquella verdadeira
Fé, com que t'amei sempre, merecia,
Sem nunca te deixar hum só momento?
Como (cruel Belisa) t'esquecia
Hum mal, cuja esperança derradeira
Em ti só tinha pôsto o seu assento?
Não vias meu tormento?
Não vias tu a fé, com que t'amava?
Porque não t'abrandava
Est'amor, que me tu tão mal pagaste?{192}
Mas pois ja me deixaste
Co'a esperança de ti toda perdida,
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Se os males que por ti tenho soffrido
(Oh Silvana, em meus males tão constante!)
Quizesses que algum'hora te dissera;
Inda que, qual durissimo diamante,
Fôra o teu cruel peito endurecido,
Creio que a piedade te movêra.
Ja agora em branda cera
Os montes são tornados e os penedos;
E os rios, qu'estão quedos,
Sentírão meus suspiros, minhas queixas.
Tu só, cruel, me deixas,
Qu'es mais, que montes e penedos, dura,
E fugitiva mais qu'a fonte pura.
FRONDOSO.
Ond'está aquella falla, que sohia
Só com seu doce tom, que me chegava,
Avivar-me os espiritos cansados?
Onde está o olhar brando, que cegava
O sol resplandecente ao meio dia?
Ond'estão os cabellos delicados,
Que ao vento espalhados
Escurecião o ouro, a mi matavão;
E a quantos os olhavão,
Causavão tambem novos accidentes?
Porque, cruel, consentes
Qu'outro goze da gloria a mi devida?
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.{193}
DURIANO.
Nenhum bem vejo, que a meu mal espere,
Se não fosse esperar que morte dura
Me venha emfim a dar a saudade.
Vejo faltar-me a tua formosura;
A vontade me diz que desespere,
Contradiz-me a razão esta vontade.
Diz qu'em huma beldade,
Em quem mostrou o cabo a natureza,
Não ha tanta crueza,
Qu'hum tão constante amor desprezar queira,
E fé tão verdadeira;
Mas tu, que de razão jamais curaste,
Porqu'era dar-me a vida, ma tiraste.
FRONDOSO.
A quem, Belisa ingrata, t'entregaste?
A quem déste, cruel, a formosura,
Qu'a meu tormento só, só se devia?
Porqu'huma fé deixaste, firme e pura?
Porque tão sem respeito me trocaste
Por quem só nem olhar-te merecia?
O bem que t'eu queria,
E que não perderei se não por morte,
Não he de maior sorte,
Que quanto a cega gente estima e preza?
Só a tua crueza
Foi nisto contra mi endurecida.
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Levaste-me o meu bem n'hum só momento;
Levaste-me com elle juntamente{194}
De cobrá-lo jamais a confiança:
Deixaste-me em lugar delle sómente
Huma contínua dor, hum grão tormento,
Hum mal, de que não póde haver mudança.
Tu, qu'eras a esperança
Dos males que, cruel, tu me causaste,
De todo te trocaste,
Com Amor conjurada em minha morte.
Porém se a minha sorte
Consente que por ti seja causada,
Morte não foi mais bem-aventurada.
FRONDOSO.
Não nasceste d'alguma pedra dura;
Não te gerou alguma Tigre Hyrcana;
Não te criaste, não, entre a rudeza,
A quem, cruel, sahiste deshumana?
No ceo formada foi tal formosura,
Onde a mesma brandura he natureza.
Pois, logo, essa dureza
Donde teve princípio, ou a tomaste?
Porque, dura, engeitaste
De hum verdadeiro amor, que tu bem vias,
A fé, que conhecias,
Por outra de ti nunca conhecida?
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Vai-se co'o seu pastor o manso gado,
Porque d'amor entende aquella parte,
Qu'a natureza irracional lh'ensina.
O rustico leão sem algum'arte,
Do natural instincto só ensinado,{195}
Aonde sente amor, logo se inclina.
E tu, que de divina
Não tens menos queVenus e Cupido,
Porque sequer co'o ouvido
Hum amor verdadeiro não soccorres?
Ah! porque te não corres
De que o leão te vença em piedade,
Se não te vence Venus na beldade?
FRONDOSO.
A mi não me faltava o que se preza
Entre os celestes deoses, que formárão
A tua mais que humana formosura:
Em mi os voluntarios ceos faltárão;
Em mi se perverteo a natureza
D'huma cruel formosa creatura.
Mas, pois, Belisa dura,
Que do mais alto ceo a nós vieste,
E em teu peito celeste
Hum tal contrário pôde aposentar-se,
Não he contrário achar-se
Tamanha fé tão mal agradecida.
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Por ti a noite escura me contenta;
Por ti o claro dia m'aborrece;
Abrolhos me parecem frescas flores;
A doce Philomela m'entristece:
Todo contentamento m'atormenta
Com a contemplação de teus amores;
As festas dos pastores,
Que podem alegrar toda a tristeza.{196}
Em mi tua crueza
Faz que o mal cada hora vá dobrando.
Oh cruel! até quando
Ha de durar em ti tal pensamento,
E a vida em mi, que soffre tal tormento?
FRONDOSO.
Fugiste d'hum amor tão conhecido,
Fugiste d'huma fé tão clara e firme;
E seguiste a quem nunca conheceste,
Não por fugir d'amor, mas por fugir-me;
Pois bem vês, quanto eu tinha merecido
Esse amor que tu a outro concedeste.
A mi não me fizeste
Alguma sem razão; que bem conheço
Que tanto não mereço:
Fizeste-a áquelle bem firme e sincero
Que sabes que te quero,
Em lhe tirar a gloria merecida.
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Cresce cad'hora em mi mais o cuidado,
E vejo qu'em ti cresce juntamente
Cad'hora mais de mi o esquecimento.
Oh Silvana cruel! porque consente
Esse peito formoso e delicado
Que s'esqueça hum tão aspero tormento?
Tal aborrecimento
Merece hum capital teu inimigo:
Não eu, que só comtigo
Estou contente, e nada mais desejo,
Se algum'hora te vejo.{197}
Tu es hum só meu bem, huma só gloria,
Que nunca se m'aparta da memoria.
FRONDOSO.
Olhos, que vírão tua formosura;
Vida, que só de ver-te se sostinha;
Vontade, qu'em ti'stava transformada;
Alma, qu'ess'alma tua em si só tinha,
Tão unida comsigo, quanto a pura
Alma co'o debil corpo está liada;
E que agora apartada
Te vê de si com tal apartamento,
Qual será seu tormento?
Qual será aquelle mal que t~ee presente?
Maior he que o que sente
O triste corpo em última partida.
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Regendo em outro tempo o manso gado,
Tangendo a minha frauta nestes vales,
Passava a doce vida alegremente:
Não sentia o tormento destes males;
Menos sentia o mal deste cuidado;
Que tudo então em mi era contente.
Agora não somente
Desta vida suave m'apartaste.
Mas outra me deixaste,
Que ao duro mal que sinto ca no peito,
Me t~ee ja tão affeito,
Que sinto ja por gloria a minha pena,
Por natureza o mal, que me condena.{198}
FRONDOSO.
Juntamente viver compridos anos,
Os fados te concedão, que quizerão
Ajuntar-te com tal contentamento.
Pois os bens para ti todos nascêrão,
Nascêrão para mi todos os danos,
Logra tu tua gloria, eu meu tormento.
Nenhum apartamento,
Belisa, me fara deixar d'amar-te;
Porqu'em nenhuma parte
Poderás nunca estar sem mi hum'hora.
Consente pois agora,
Qu'em pago desta fé tão conhecida,
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Veja-t'eu, crua, amar quem te desame,
Porque saibas que cousa he ser amada
De quem tanto aborreces e desprezas.
Veja-t'eu ser ainda desprezada
De quem tu mais desejas que te ame,
Porque sintas em ti tuas cruezas,
Sintas tuas durezas,
E quanto póde o seu cruel effeito
N'hum coração sujeito.
Porqu'em sentindo o mal, qu'eu sinto agora,
Espero qu'algum'hora
Faça o teu proprio mal de mi lembrar-te,
Ja que não pôde o meu nunca abrandar-te.
FRONDOSO.
Mil annos de tormento me parece
Cad'hora que sem ti, sem esperança{199}
Vivo de poder mais tornar a ver-te.
A vida só me dá tua lembrança;
A vida sôbre tudo m'entristece;
A vida antes perdêra, que perder-te.
Mas eu se, por querer-te
Hum bem qu'em ti só t~ee seu firme assento,
Padeço tal tormento,
Qu'esperará de ti quem te desama,
Ou quem ao menos te ama
Com algum falso amor, ou fé fingida?
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Então, cruel, verás se te merece
Com tamanho desprêzo ser tratada
Hum'alma, que d'amar-te só se preza.
Mas como poderás ser desprezada,
Se o menos qu'em ti fóra se parece,
Póde abrandar dos montes a aspereza?
Porque se a natureza
Em ti o remate poz da formosura,
Qual será a pedra dura,
Qu'a teu valor resista brandamente?
Que fará a fraca gente,
Se ao humano parecer não se defende,
E a mesma Venus deosa ao teu se rende?
FRONDOSO.
E pois fé verdadeira, amor perfeito,
Tormento desigual e vida triste,
Junta com hum contino soffrimento,
E hum mal, em que o mal todo, emfim, consiste,
Não puderão mover teu duro peito{200}
A mostrares sequer contentamento
De ver o meu tormento;
Antes tudo soberba desprezaste,
E a outrem t'entregaste
Por nada me ficar em qu'esperasse,
Senão quando acabasse
A vida, a pezar meu, ja tão comprida,
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
DURIANO.
Longo curso de tempo, e apartado
Lugar a hum coração, que vive entregue,
Não podem apartar de seu intento.
Porque foges, cruel, a quem te segue?
Não vês que teu fugir he escusado,
Pois sem mim não estás hum só momento?
Nenhum apartamento,
Inda que a alma do corpo se m'aparte,
Poderá ja ausentar-te
Dest'alma triste, que continuamente
Em si te t~ee presente.
Torna, cruel; não fujas a quem t'ama:
Vem a dar vida, ou morte a quem te chama.
A noite escura, triste e tenebrosa,
Que ja tinha estendido o negro manto,
D'escuridade a terra toda enchendo,
Fez pôr a estes pastores fim ao canto,
Que ao longo da ribeira deleitosa
Vinhão seu manso gado recolhendo.
Se aquillo, qu'eu pretendo
Deste trabalho haver, que he todo vosso,
Senhora, alcançar posso;{201}
Não será muito haver tambem a gloria
E o louro da victoria,
Que Virgilio procura e haver pretende,
Pois o mesmo Virgilio a vós se rende.