Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II

ECLOGA V.

Falla hum só pastor.

A quem darei queixumes namorados
Do meu pastor queixoso e namorado?
A branda voz, suspiros magoados,
A causa porque n'alma he magoado?
De quem serão seus males consolados?
Quem lhe fara devido gasalhado?
Só vós, Senhor famoso e excellente,
Especial em graças entr'a gente.
  Por partes mil lançando a phantasia,
Busquei na terra estrella, que guiasse
Meu rudo verso; em cuja companhia
A santa piedade sempre andasse
Luzente e clara, como a luz do dia,
Que o rudo engenho meu m'allumiasse;
E em vossas perfeições, grão Senhor, vejo
Ainda além cumprido o meu desejo.
  A vós se dem, a quem junto se ha dado
Brandura, mansidão, engenho e arte,
D'hum esprito divino acompanhado,{202}
Dos sobrehumanos hum em toda parte:
Em vós as graças todas se hão juntado;
De vós em outras partes se reparte.
Sois claro raio, sois ardente chama;
Gloria e louvor do tempo, azas da fama.
  Em quanto eu apparelho hum novo esprito,
E voz de cysne tal, que o mundo espante,
Com que de vós, Senhor, em alto grito
Louvores mil em toda parte cante;
Ouvi o canto agreste em tronco escrito,
Entre vaccas e gado petulante:
Que quando tempo for, em melhor modo
Ha de m'ouvir por vós o mundo todo.
  As vãas querellas, brandas e amorosas,
Sejão de vós tratadas brandamente;
Verdades d'alma pouco venturosas,
Sahidas com suspiro vivo e ardente:
Em vossas mãos s'entregão valerosas,
Porqu'ao futuro vivão entr'a gente,
Chorando sempre a antigua crueldade,
Para mover as almas a piedade.
  Ja declinava o sol contra o Oriente,
E o mais do dia ja era passado,
Quando o pastor co'o grave mal que sente,
Por dar allívio em parte a seu cuidado,
Se queixa da pastora docemente,
Cuidando de ninguem ser escutado.
Eu que o escutei, n'huma árvore escrevia
As mágoas que cantou; e assi dizia:
  Ou tu do monte Pindaso es nascida,
Ou marmor te pario formosa e dura:{203}
Não póde ser que fosse concebida
Dureza tal de humana creatura:
Ou quiçá qu'es em pedra convertida,
Ou tens da natureza tal ventura;
Porém não fez em ti boa impressão,
Só de marmor tornar-te o coração.
  Ja, ja com minha voz rouca e chorosa
A gente mais austera moveria;
E com esta corrente lagrimosa
Os tigres em Hyrcania amansaria.
Se não fosses cruel, quanto formosa,
Meu longo suspirar t'abrandaria:
Mas suspirar por ti, mas bem querer-te,
Que fazem senão mais endurecer-te?
  Se deixáras vencer a crueldade
De tua tão perfeita formosura;
Hum pouco víras bem minha vontade,
E víras a fé minha, limpa e pura,
Por ventura, que houveras ja piedade,
E tivera eu quiçá melhor ventura:
Mas nunca achou igual tua belleza,
Se não se foi em ti tua dureza.
  Ja hum peito abrandára, que não sente,
Este meu grave mal, segundo he forte;
Se descêra do inferno ao Polo ardente,
A piedade movêra a propria morte.
Pois se huma gotta d'agua brandamente
Torna brando hum penedo, duro e forte,
Tantas lagrimas minhas não farão
Hum pequeno sinal n'hum coração?
  Na testa fonte viva tenho d'ágoa,{204}
Que por meus olhos tristes se derrama;
E no peito de fogo viva fragoa,
Que tudo em si converte, tudo inflama:
Amor em de redor, por maior mágoa,
Voando mais accende a ardente chama.
Se queres ver se ardentes são seus tiros,
Ólha se são ardentes meus suspiros.
  Quando grita e rumor grande se sente,
Porque fogo se ateia em casa, ou torre,
De pura compaixão vai toda a gente,
Ágoa ao fogo gritando; e cada hum corre.
Dest'arte anda o meu peito em chamma ardente,
E com a ágoa dos olhos se soccorre;
Que quem me abraza, outra ágoa me defende,
Porque com esta o fogo mais se accende.
  Quando vemos que sahe lá no Oriente
O sol, seu curso antigo começando,
Formoso, intenso, puro, refulgente,
O monte, o campo, o mar, tudo alegrando;
Quando de nós s'esconde no Ponente,
E em outras terras sahe, allumiando,
Sempre, em quanto vai dando ao mundo giro,
Chórão por ti meus olhos, e eu suspiro.
  Caminha o dia todo o caminhante,
E, emfim, lhe chega a noite, em que descança;
Trabalha na tormenta o navegante,
Traz-lhe a clara manhãa feliz bonança;
Recobra o fructo fertil e abundante
Da terra o lavrador, se nella cança:
Mas eu de meu cuidado e mal tão forte
Tormento espero só, só crua morte.{205}
  D'ouvir meu damno as rosas matutinas,
Condoidas se cerrão, s'emmurchecem;
Com meu suspiro ardente as côres finas
Perdem o cravo, o lyrio, e não florecem.
Co'a roxa aurora as pallidas boninas,
Em vez de se alegrarem, s'entristecem:
Deixão seu canto Progne e Philomena;
Que mais lhes doe, que a sua, a minha pena.
  Responde o monte concavo a meus ais,
E tu como aspid, cerras-lhe o ouvido;
Os indomitos feros animais,
Sem humano sentir, mostrão sentido:
Mas em ti minhas dores desiguais
Nunca movem o peito endurecido:
Por muito que te chame, não respondes;
E quanto mais te busco, mais t'escondes.
  Naquella parte donde costumavas
Apascentar meus olhos e teu gado;
Alli donde mil vezes me mostravas,
Qu'era o pastor de ti mais desejado,
Vezes mil te busquei, por ver se davas
Algum breve descanso a meu cuidado.
Busco-te em vão no valle, em vão no monte,
Qual o ferido cervo busca a fonte.
  Este lugar de ti desamparado,
Com cujas sombras frias ja folgaste,
Agora triste, escuro he ja tornado;
Que todo o bem comtigo nos levaste.
Eras tu nosso sol mais desejado;
Não temos luz, despois que nos deixaste.{206}
Torna, meu claro sol; torna, meu bem:
Qual he o Josué que te detém?
  Despois que deste valle t'apartaste,
Não pasce ja algum gado, com seccura;
Seccou-se o campo, des que lhe negaste
Dos teus formosos olhos a luz pura;
Seccou-se a fonte, donde ja te olhaste,
Quando menos, que agora, aspera e dura;
Nega sem ti a terra, ouvindo gritos,
Ás cabras pasto e leite a os cabritos.
  Sem ti, doce cruel minha inimiga,
A clara luz, escura me parece:
Este ribeiro, quando a dor m'obriga,
Com meu chorar por ti contino crece.
Não ha fera, a que a fome não persiga;
Algum prado sem ti ja não florece:
Cegos estão meus olhos; nada vem,
Porque não podem ver seu claro bem.
  O campo, como d'antes, não s'esmalta
De boninas azues, brancas, vermelhas;
Falta ágoa ao pasto, e sentem d'ágoa a falta
As candidas pacíficas ovelhas:
Bem conhecem tambem que o ceo lhes falta
As doces e solícitas abelhas:
Com lagrimas, que manão dos meus olhos,
A terra nos produz duros abrolhos.
  Torna pois ja, pastora, ao nosso prado,
Se restituir-lhe queres a alegria:
Alegrarás o valle, o campo, o gado,
E aquelle espelho teu da fonte fria.
Torna, torna, meu sol tão desejado,{207}
Faras a noite escura, claro dia;
E alegra ja esta vida magoada,
Em que só tua ausencia he Parca irada.
  Vem, como quando o raio transparente
Deste nosso horizonte, qu'escondido,
Deixa hum certo temor á mortal gente,
Causado de ver o Orbe escurecido;
E quando torna a vir claro e luzente,
Alegra o mundo todo entristecido:
Que assi he para mi tua luz pura
Claro sol, como a ausencia noite escura.
  Mas tu 'squecida ja do bem passado,
E do primeiro amor, que me mostraste,
Teu coração de mi t~ees apartado,
Não menos que do valle t'apartaste.
Não te quero eu a ti mais qu'a meu gado?
Não sou eu mesmo aquelle que tu amaste?
Onde o meu êrro viste, ou desvario,
Que pôde merecer-te hum tal desvio?
  Bem vês que por Amor se move tudo,
E que delle não ha quem seja isento;
O mais simple animal, mais baixo e rudo,
O demais levantado pensamento:
Debaixo d'ágoa fria o peixe mudo
Tambem lá t~ee d'ardor seu movimento.
Pois as aves, que no ar cantando vôão,
Não menos humas d'outras s'affeiçôão.
  A musica do leve passarinho
Que sem concêrto algum sólta e derrama,
De hum raminho saltando a outro raminho,
Mostra que por amor suspira e chama.{208}
Em quanto no secreto amado ninho
Não acha aquelle, que só busca e ama,
No canto, a nós alegre, triste chora,
Porque teme perder a quem namora.
  A fera, que he mais fera, e o leão,
Sempre acha outro leão, sempre outra fera,
Em quem possa empregar huma affeição,
Que o conversar no peito seu lhe gera:
Tambem sabe sentir sua paixão,
Tambem suspira, morre, desespera;
Acena, salta, brada, ferve e geme;
E não temendo a nada, a Amor só teme.
  O cervo, qu'escondido e emboscado,
Temendo ao cobiçoso caçador,
Está na selva, monte, bosque, ou prado,
Alli donde anda e vive, vive amor.
De temor e d'amor acompanhado,
Com justa causa amor t~ee e temor:
Temor a quem para feri-lo vinha,
Amor a quem ja, ja ferido o tinha.
  Pois se a fera insensivel, que não sente,
Tambem sente d'Amor a frecha dura,
Porqu'a ti não t'abranda hum fogo ardente,
Que procede da tua formosura?
Porqu'escondes a luz do sol á gente,
Que nesses olhos trazes bella e pura?
Mais pura, mais suave, mais formosa,
Que, lyrio, que jasmim, que cravo e rosa.
  Póde ser, se me visses, que sentiras
Ver liquidar hum peito em triste pranto;
E bem pouco fizeras, se me viras,{209}
Pois eu só por te ver suspiro tanto:
As mágoas, os suspiros, que m'ouviras
Te puderão mover a grande espanto,
A dor, a piedade, a sentimento,
E a mais, que para mais he meu tormento.
  Os pensamentos vãos, que o vento leve:
O suspirar em vão tambem ao vento;
Hum esperar á calma, á chuva, á neve,
E nunca poder ver-te hum só momento;
Tormento he, que somente a ti se deve.
E se póde inda haver maior tormento,
Quem te vio, e se vê de ti ausente,
Muito mais passará mais levemente.
  Faz mossa a pedra dura em sua dureza
Com a ágoa que lhe toca brandamente;
Abranda o ferro forte a fortaleza,
Se lhe toca tambem o fogo ardente:
Em ti só desconheço a natureza;
Que, a ser de pedra ou ferro totalmente,
Ja teu peito cruel fôra desfeito
Das ágoas e das chammas do meu peito.
  Quando a formosa Aurora mostra a fronte,
Alegra toda a terra, vendo o dia;
Quando Phebo apparece no horizonte,
Manifesta tambem grande alegria;
Contente pasce o gado ao pé do monte,
Contente a beber vai na fonte fria:
Está tudo contente, alegre tudo;
Eu só, só pensativo, triste e mudo.
  Se ja d'alma e do corpo tens a palma,
E do corpo sem alma não tens dó,{210}
Ha dó do corpo só, qu'está sem alma,
Pois sem alma não vive o corpo só.
Nas chammas e no ardor, no fogo e calma,
Na affeição, no querer eu sou hum só:
Não acharás vontade tão captiva;
Nem outra como a tua tão esquiva.
  Se te apartas por não ouvir meu rôgo,
Onde estiveres te hei d'importunar:
Postoque vás por ágoa, ferro, ou fogo,
Comtigo em toda parte m'has d'achar;
Que o fogo em que ardo, e a ágoa em que m'affogo,
Emquanto eu vivo for, hão de durar;
Pois o nó, que m'enlaça, he de tal sorte,
Que não se ha de soltar em vida, ou morte.
  Neste meu coração sempr'estaras,
Emquanto a alma estiver com elle unida:
Tambem o meu esprito possuirás
Despois que a alma do corpo for partida.
Por mais e mais que faças, não faras
Que deixe o amar-te nesta e ess'outra vida:
Impossivel sera qu'eternamente
Ausente estês de mim, estando ausente.
  Cá m'acompanhará vossa memoria,
Se o rio, que se diz do esquecimento,
Da minha não borrar tão longa historia,
Tão grave mal, tão duro apartamento.
Até quando vos veja entrar na gloria,
Viverei n'hum contino sentimento:
E ainda então vereis (s'isto ser possa)
Esta minh'alma lá servir a vossa.
  Aqui com grave dor, com triste accento,{211}
Deo o triste pastor fim a seu canto:
Co'o rosto baixo e alto o pensamento,
Seus olhos começárão novo pranto:
Mil vezes parar fez no ar o vento,
E apiedou no ceo o coro santo:
As circumstantes sylvas s'inclinárão,
Condoidas das mágoas qu'escutárão.
  Com h~ua mão na face, reclinado,
Tão enlevado em sua dor estava,
Que, como em grave somno sepultado,
Não via que ja o sol no mar entrava.
Berrando andava em roda o manso gado,
Que o seguro curral ja desejava:
Nas covas as raposas, e em seus ninhos
Se recolhem os simples passarinhos.
  Ja sôbre hum sêcco ramo estava pôsto
O mocho com funesto e triste canto:
Ao som delle o pastor ergueo o rosto,
E vio a terra envolta em negro manto.
Quebrando então o fio de seu gôsto,
E o fio não quebrando de seu pranto,
Por não se descuidar de seu cuidado,
Levou para os curraes o manso gado.{212}

ECLOGA VI

INTERLOCUTORES

AGRARIO, Pastor. ALICUTO, Pescador.

A rustica contenda desusada
Entr'as Musas dos bosques, das areias,
De seus rudos cultores modulada;
  A cujo som attonitas e alheias
Do monte as brancas vaccas estiverão,
E do rio as saxatiles lampreias;
  Desejo de cantar. Que se movêrão
Os troncos ás avenas dos pastores,
E ja sylvestres brutos suspendêrão.
  Não menos o cantar dos pescadores
As ondas amansou do fundo pégo,
E fez ouvir os mudos nadadores.
  E se por sustentar-se o moço cego
Nos trabalhos agrestes a alma inflama,
O que he mais proprio no ocio e no socêgo;
  Mais maravilhas dando á voz da fama,
No mesmo mar undoso e vento frio
Brazas roxas accende a roxa flama.
  Vós, ó ramo d'hum Tronco alto e sombrio,
Cuja frondente coma ja cobrio
De Luso todo o gado e senhorio;
  E cujo são madeiro ja sahio
A lançar a forçosa e larga rede
No mais remoto mar que o mundo vio;{213}
  E vós, cujo valor tão alto excede,
Que, a cantá-lo com voz alta e divina,
A fonte do Parnaso move a sêde;
  Ouvi da minha humilde çanfonina
A harmonia, que vós ja levantais
Tanto, que de vós mesmo a fazeis dina.
  Mas se agora que affabil m'escutais,
Não ouvirdes cantar com alta tuba
O que vos deve o mundo, que dourais;
  E se os Reis avós vossos, que de Juba
Os Reinos debellárão, não ouvis
Que nas azas do excelso verso suba;
  Se não sabem as frautas pastoris
Pintar de Toro os campos semeados
D'armas e corpos fortes e gentis;
  Por hum Moço animoso sustentados,
Contra o indomito Rei de toda Hespanha,
Contra a fortuna vãa e injustos fados:
  Hum Moço, cujo esfôrço, brio e manha,
Do Olympo fez descer o duro Marte,
E dar-lhe a quinta esphera, que acompanha;
  Se não sabem cantar a menor parte
Do sapiente peito e grão conselho,
Que pôde, ó Reino illustre, descansar-te;
  Peito, que ao douto Apollo faz, vermelho,
Deixar o sacro Monte e as nove Irmãas,
Porque a elle se affeitem como a espelho;
  Saberão bem cantar, em nada vãas,
D'Alicuto as contendas e d'Agrario;
Hum d'escamas coberto, outro de lãas.
  Vereis, Duque sereno, o estylo vário,{214}
A nós novo, mas n'outro mar cantado
De hum, que só foi das Musas secretario:
  O pescador Sincero, que amansado
T~ee o pégo de Prochyta co'o canto
Por as sonoras ondas compassado.
  Deste seguindo o som, que póde tanto,
E misturando o antigo Mantuano,
Façamos novo estylo, novo espanto.
  Partira-se do monte Agrario insano
Para onde a fôrça só do pensamento
Lh'encaminhava o lasso pêzo humano.
  Embebido em hum longo esquecimento
De si, e do seu gado e pobre fato,
Apos hum doce sonho e fingimento,
  Rompendo as sylvas horridas do mato,
Vai por cima d'outeiros e penedos,
Fugindo, emfim, de todo humano trato.
  Ante os seus olhos leva os olhos ledos
Da branca Dinamene, qu'enverdece
Só co'o meneo valles e rochedos.
  Ora se ri comsigo, quando tece
Na phantasia algum prazer fingido;
Ora falla; ora mudo s'entristece.
  Qual a tenra novilha, que corrido
T~ee montanhas fragosas e espessuras,
Por buscar o cornigero marido;
  E cansada nas humidas verduras
Cahir se deixa ao longo d'hum ribeiro,
Ja quando as sombras vem cahindo escuras;
  E nem co'a noite ao valle seu primeiro
Se lembra de tornar, como sohia,{215}
Perdida por o bruto companheiro:
  Tal Agrario chegado, emfim, se via
Onde o grão pégo horrisono suspira
N'huma praia arenosa, humida e fria.
  Tanto que ao mar estranho os olhos vira,
Tornando em si, de longe ouvio tocar-se
De douta mão não vista e nova lira.
  Fez-lhe o som desusado desviar-se
Para onde mais soava, desejando
D'ouvir e conversar, e de provar-se.
  Muito não tinha proseguido, quando
Em a concavidade d'hum penedo,
Que pouco a pouco fôra o mar cavando,
  Topou hum pescador, que prompto e quedo,
N'huma pedra assentado, brandamente
Tangendo, faz o mar sereno e ledo.
  Mancebo era d'idade florecente,
Pescador grande do alto, conhecido
Por o nome de toda humida gente:
  Alicuto se chama: que perdido
Era por a formosa Lemnoria;
Nympha que t~ee o mar ennobrecido.
  Por ella as redes lança noite e dia;
Por ella as ondas tumidas despreza;
Por ella soffre o sol e a chuva fria.
  Co'o seu nome mil vezes a braveza
D'irados ventos amansou co'o verso,
Que remove das rochas a dureza.
  E agora em som de voz, suave e terso,
Está seu nome aos ecos ensinando
Por estylo do agreste som diverso.{216}
  Ouvindo Agrario, attonito, affroxando
Da phantasia hum pouco seu cuidado,
Suspenso esteve os numeros notando.
  Mas Alicuto, vendo-se estorvado
Por hum pastor da musica divina,
O rosto levantou bem socegado,
  E disse assi: Vaqueiro da campina,
Que vens buscar ás arenosas praias,
Onde a bella Amphitrite só domina?
  Que razão ha, pastor, para que saias
A este nosso escamoso e vil terreno
Dos teus floridos myrtos e altas faias?
  Pois s'agora o mar vês brando e sereno,
E estender-se estas ondas por a areia,
Amansadas das mágoas, com que peno,
  Logo verás o como desenfreia
Eolo o vento por o mar undoso,
De sorte que Neptuno se receia.
  Responde Agrario: Oh musico e amoroso
Pescador! eu não venho a ver o lago
Bravo e quieto, ou vento brando e iroso;
  Mas o meu pensamento, com que apago
As flammas ao desejo, me trazia
Sem ouvir e sem ver, suspenso e vago:
  Até que a tua angelica harmonia
M'acordou, vendo o som, com que aqui cantas
A tua perigosa Lemnoria.
  Mas se de ver-me cá no mar t'espantas,
Eu m'espanto tambem do estylo novo
Com que as ondas horrisonas quebrantas.
  Porém se com verdade o louvo e approvo,{217}
Desejo de o provar contra o sylvestre
Antigo pastoril, qu'eu mal renóvo.
  E tu, que no tocar pareces mestre,
Bem julgarás se ha clara differença
Entr'o canto maritimo e o campestre.
  Não ha (disse Alicuto) em mi detença:
Alvorôço antes ha, por mais que veja
Que a tua confiança só me vença.
  Mas, porque saibas que nenhuma inveja
Os pescadores temos aos pastores
Do som que pelo mundo se deseja,
  Toma a lyra na mão, que os moradores
Do vitreo fundo vendo estou juntar-se
Para ouvir nossos rusticos amores.
  Bem vês por essa praia presentar-se
Nas conchas vária côr á vista humana;
E o mar vir por entr'ellas e tornar-se.
  Socegada do vento a furia insana,
Encrespa brandamente o ameno rio,
Que seu licor aqui mistura e dana.
  Estepenedo concavo e sombrio,
Que de cangrejos ves estar coberto,
Nos dá abrigo do sol, quieto e frio.
  Tudo nos mostra, emfim, repouso certo,
E nos convida ao canto, com que os mudos
Peixes sahem ouvindo ao ar aberto.
  Assi se desafião estes rudos
Poetas, nos officios discrepantes;
Nos engenhos porém subtis e agudos.
  Eis ja mil companheiros circumstantes{218}
Estavão para ouvir, e apparelhavão
Ao vencedor os premios semelhantes.
  As bem sonantes lyras se tocavão;
Agrario começava, e da harmonia
Os pescadores todos s'admiravão;
E dest'arte Alicuto respondia.
            AGRARIO.
  Vós semicapros deoses do alto monte,
Faunos longevos, Satyros, Sylvanos;
E vós, deosas do bosque e clara fonte,
E dos troncos que vivem largos anos;
Se tendes prompta hum pouco a sacra fronte
A nossos versos rusticos e humanos,
Ou me dae ja a capella de loureiro,
Ou penda a minha lyra d'hum pinheiro.
            ALICUTO.
  Vós humidas deidades deste pégo,
Tritões ceruleos, Próteo, com Palemo;
Vós, Nereidas do sal em que navego,
Por quem do vento as furias pouco temo;
Se ás vossas sacras aras nunca nego
O congro nadador na pá do remo,
Não consintais, que a musica marinha
Vencida seja aqui na lyra minha.
            AGRARIO.
  Pastor se fez hum tempo o moço louro,
Que do sol as carretas move e guia;
Ouvio o rio Amphriso a lyra d'ouro,
Que o seu claro inventor alli tangia.
Io foi vacca; Jupiter foi touro:
Mansas ovelhas junto d'ágoa fria{219}
Guardou formoso Adonis; e tornado
Em bezerro Neptuno foi ja achado.
            ALICUTO.
  Pescador ja foi Glauco, e deos agora
He do mar; e Protêo Phocas guarda.
Nasceo no pégo a deosa, que he senhora
Do amoroso prazer, que sempre tarda.
Se foi bezerro o deos, que cá se adora,
Tambem ja foi delfim. Se se resguarda,
Vê-se que os moços pescadores erão,
Que o escuro enigma ao primo Vate derão.
            AGRARIO.
  Formosa Dinamene, se dos ninhos
Os implumes penhores ja furtei
Á doce Philomela; e dos murtinhos
Para ti (fera!) as flores apanhei;
E se os crespos madronhos nos raminhos
Com tanto gôsto ja te presentei,
Porque não dás a Agrario desditoso
Hum só revolver d'olhos piedoso?
            ALICUTO.
  Para quem trago d'ágoa em vaso cavo
Os curvos camarões vivos saltando?
Para quem as conchinhas ruivas cavo
Na praia, os brancos buzios apanhando?
Para quem de mergulho no mar bravo
Os ramos de coral vou arrancando,
Senão para a formosa Lemnoria,
Que co'hum só riso a vida me daria?
            AGRARIO.
  Quem vio o desgrenhado e crespo Inverno,{220}
D'atras nuvens vestido, horrido e feio,
Ennegrecendo á vista o ceo superno,
Quando os troncos arranca o rio cheio;
Raios, chuvas, trovões, hum triste inferno,
Que ao mundo mostra hum pallido receio:
Tal o amor he cioso, a quem suspeita
Que outrem de seus trabalhos se aproveita.
            ALICUTO.
  Se alguem vê, se alguem ouve o sibilante
Furor lançando flammas e bramidos,
Quando as pasmosas serras traz diante,
Horrido aos olhos, horrido aos ouvidos:
A braços derribando o ja nutante
Mundo, co'os elementos destruidos:
Assi me representa a phantasia
A desesperação de ver hum dia.
            AGRARIO.
  Minha alva Dinamene, a primavera,
Que os deleitosos campos pinta e veste,
E rindo-se huma côr aos olhos gera,
Qu'em terra lhes faz ver o Arco celeste;
As aves, as boninas, a verde hera,
E toda a formosura amena agreste
Não he para os meus olhos tão formosa,
Como a tua, que abate o lirio e rosa.
            ALICUTO.
  As conchinhas da praia, que presentão
A côr das nuvens, quando nasce o dia;
O canto das Sirenas, que adormentão;
A tinta, que no Murice se cria;
O navegar por ondas, que se assentão{221}
Co'o brando bafo, com que o sol s'enfria,
Não podem, Nympha minha, assi aprazer-me,
Como o ver-te, se em tanto chego a ver-me.
            AGRARIO.
  A deosa, que na Lybica lagôa
Em fórma virginal appareceo,
Cujo nome tomou, que tanto sôa,
Os olhos bellos t~ee da côr do ceo:
Garços os t~ee; mas huma, que a corôa
Das formosas do campo mereceo,
Da côr do campo os mostra graciosos.
Quem diz, que não são estes os formosos?
            ALICUTO.
  Perdoem-me as deidades; mas tu, diva,
Que no liquido marmore es gerada,
A luz dos olhos teus, celeste e viva,
T~ees por vício amoroso atravessada:
Nós petos lhe chamâmos; mas quem priva
De luz o dia, baixa e socegada
Traz a dos seus nos meus, qu'eu o não nego;
E com toda esta luz sempre estou cego.
  Assi cantavão ambos os cultores
Do monte e praia, quando os atalhárão;
A hum pastores, a outro pescadores.
  E quaesquer a seu Vate coroárão
De capellas idoneas e formosas,
Que as Nymphas lhes tecêrão e ordenárão:
  A Agrario de murtinhos e de rosas;
A Alicuto d'hum fio de torcidos
Buzios, e conchas ruivas e lustrosas.
  Estavão n'ágoa os peixes embebidos{222}
Com as cabeças fóra; e quasi em terra
Os musicos delfins estão perdidos.
  Julgavão os pastores que na serra
O cume e preço está do antigo canto;
Que quem o nega, contra as Musas erra.
  Dizem os pescadores que outro tanto
T~ee na sonora frauta, quanto teve
O monte pastoril da antigua Manto.
  Mas ja o pastor d'Admeto o carro leve
Molhava n'ágoa amara, e compellia
A recolher a roxa tarde e breve:
  E foi fim da contenda o fim do dia.

ECLOGA VII.

INTERLOCUTORES.

SATYRO I. SATYRO II.

As doces cantilenas, que cantavão
Os semicapros deoses, amadores
Das Napêas, que os montes habitavão,
  Cantando escreverei: que se os amores
A sylvestres deidades maltratárão,
Ja ficão desculpados os pastores.
  Vós, Senhor Dom Antonio, aonde achárão
O claro Apollo e Marte hum ser perfeito,
Em quem suas altas mentes assinárão;{223}
  Se o meu engenho he rudo, ou imperfeito,
Bem sabe onde se salva, pois pretende
Levantar com a causa o baixo effeito.
  Em vós minha fraqueza se defende;
Em vós instilla a fonte do Pegáso,
O que o meu canto por o mundo estende.
  Vêdes que as altas Musas do Parnaso
Cantando vos estão na doce lira,
Tomando-me das mãos tão alto caso.
  Vêdes o louro Apollo, que me tira
De louvar vossa estirpe, e escurece
O que a vosso louvor meu canto aspira.
  Ou por me haver inveja me fallece,
Ou por não ver soar na frauta ruda
O que a sonora cithara merece.
  Pois sei dizer, Senhor, que a lingua muda,
Em quanto Progne triste o sentimento
Da corrompida irmãa co'o pranto ajuda;
  E em quanto Galatea ao manso vento
Sólta os cabellos louros da cabeça,
E Tityro nas sombras faz assento;
  E em quanto flor aos campos não falleça,
(Se não recebeis isto por affronta)
Fará que o Douro e o Ganges vos conheça.
  E ja que a lingua nisto fica pronta,
Consenti que a minha Ecloga se conte,
Em quanto Apollo as vossas cousas conta.
  No cume do Parnaso, duro monte,
De sylvestre arvoredo rodeado,
Nasce huma crystallina e clara fonte,
  Donde hum manso ribeiro derivado,{224}
Por cima d'alvas pedras mansamente
Vai correndo suave e socegado.
  O murmurar das ondas excellente
Os passaros incita, que cantando
Fazem o verde monte mais contente.
  Tão claras vão as ágoas caminhando,
Que no fundo as pedrinhas delicadas
Se podem, huma e huma, estar contando.
  Não se verão em derredor pizadas
De fera ou de pastor, que alli chegasse,
Porque de espesso monte são vedadas.
  Herva se não verá, que alli criasse
O monte ameno, triste ou venenosa,
Senão que lá no centro as igualasse.
  O roxo lirio a par da branca rosa,
A cecem pura, a flor que dos amantes
A côr t~ee magoada e saudosa;
  Alli se vem os myrtos circumstantes
Que a crystallina Venus encobrírão,
Escondendo-a dos Faunos petulantes.
  Hortelãa, mangerona, alli respirão,
Onde nem frio inverno, ou quente estio,
As murchárão jamais, ou sêccas vírão.
  Dest'arte vai seguindo o curso o rio,
O monte inhabitado e o deserto
Sempre com verdes árvores sombrio.
  Aqui huma linda Nympha, por acêrto
Perdida da fragueira companhia,
A quem este lugar era encoberto;
  Cansada ja da caça vindo hum dia,
Quiz descansar á sombra da floresta,{225}
E tirar nas mãos alvas d'ágoa fria.
  A novidade vendo manifesta
Do sítio, e como as árvores co'o vento
As calmas defendião da alta sesta;
  Das aves o lascivo movimento,
Qu'em seus modulos versos occupadas
As azas dão ao doce pensamento;
  Tendo notado tudo, ja passadas
As horas da grã sesta, se tornou
A buscar as irmãas, no centro, amadas.
  Despois que largamente lhes contou
Do não visto lugar, que perto estava
E tanto por extremo a namorou,
  Que ao outro dia fossem, lhes rogava,
A lavar-se em aquella fonte amena,
Que tão formosas ágoas destillava.
  Ja tinha dado hum giro a luz serena
Do grão pastor d'Admeto, e já nascia
Aos ditosos amantes nova pena,
  Quando as formosas Nymphas em porfia
Para o lugar do monte caminhavão,
Rompendo a manhãa roxa, alegre e fria.
  D'huma os louros cabellos s'espalhavão
Por o formoso collo sem concêrto,
E com mil nós suaves s'enlaçavão;
  Outra, levando o collo descoberto,
Por mais despejo em tranças os atára,
Havendo por pezado o desconcêrto.
  Dinamene e Ephyre, a quem topára
Nuas Phebo em hum rio, e encobrirão
Seus delicados corpos n'ágoa clara;{226}
  Syrinx e Nyse, que das mãos fugírão
Do Tegêo Pan; Amanta e mais Elisa,
Destras nos arcos mais que quantas tirão;
  A linda Daliana, com Belisa,
Ambas vindas do Tejo, que como ellas
Nenhuma tão formosa as hervas pisa:
  Todas estas angelicas donzellas,
Por o viçoso monte alegres hião,
Quaes no ceo largo as nitidas estrellas.
  Mas dous sylvestres deoses, que trazião
O pensamento em duas occupado,
A quem de longe mais que a si querião,
  Não lhes ficava monte, valle ou prado,
Nem árvore, por onde quer que andavão,
Que não soubesse delles seu cuidado.
  Quantas vezes os rios, que passavão,
Detiverão seu curso ouvindo os danos,
Que aos proprios duros montes magoavão!
  Quantas vezes amor de tantos anos
Abrandára qualquer vontade isenta,
Se em Nymphas corações houvesse humanos!
  Mas quem de seu cuidado se contenta,
Offereça de longe a paciencia;
Que Amor d'alegres mágoas se sustenta.
  Que o moço Idalio quiz nesta sciencia
Que se compadecessem dous contrários.
Diga-o quem tiver delle experiencia.
  Indo os deoses, emfim, por montes varios
Exercitando os olhos saudosos,
Ao crystallino rio tributarios;
  Topárão dos pés alvos e mimosos{227}
As pizadas na terra conhecidas,
As quaes forão seguindo pressurosos.
  Mas, encontrando as Nymphas que despidas
Na clara fonte estavão, não cuidando
Que d'alguem fossem vistas ou sentidas,
  Deixárão-se estar quedos, contemplando
As feições nunca vistas, de maneira
Que vissem, sem ser vistos, espreitando.
  Porém a espessa mata, mensageira
Da cilada dos dous, com o rugido
Dos raminhos d'huma aspera aveleira,
  Manifestando claro o escondido,
Todas huma alta grita levantárão,
Que o monte pareceo ser destruido.
  Assi despidas logo se lançárão
Por a espessura tão ligeiramente,
Que mais que o proprio vento então voárão.
  Qual o bando das pombas quando sente
A rapida aguia, cuja vista pura
Não obedece ao sol resplandecente;
  Empresta-lhe o temor da mortedura
Nas azas novo alento; e, não parando,
Veloz rompendo o ar fugir procura:
  Dest'arte as deosas timidas, deixando
De seu despôjo os ramos carregados,
Nuas por entre as sylvas vão voando.
  Mas os amantes ja desesperados,
Que para as alcançar, emfim, se vião
Nada dos pés caprinos ajudados;
  Com amorosos brados as seguião.
Hum só (que o outro ainda não tomava{228}
Folego algum da pressa que trazião)
Desta sorte sentido se queixava:
            SATYRO PRIMEIRO.
  Ah Nymphas fugitivas,
Que só por não usar humanidade
Os perigos dos matos não temeis!
Para que sois esquivas?
Qu'inda de nós não peço piedade,
Mas dessas alvas carnes, que offendeis.
Ah Nymphas! não vereis
Que Eurydice, fugindo dessa sorte,
Fugio do amante, e não da fera morte?
Tambem assi Eperie foi mordida
Da vibora escondida.
Olhae a serpe occulta na herva verde.
Quem o rigor não perde, perde a vida.
  Que tigre, ou que leão,
Que peçonhenta fera venenosa,
Ou qu'inimigo, emfim, vos vai seguindo?
D'hum brando coração,
Que preso dessa vista rigorosa
De si para vós foge, andais fugindo?
Olhae que em gesto lindo
Não se consente peito tão disforme;
Se não quereis que tudo se conforme.
Posto que bellas n'ágoa vos vejais,
Á fonte não creais,
Que vos traz enganadas por vingança
Desta nossa esperança, que enganais.
  Mas ah! que não consinto
Que nem palavra minha vos offenda,{229}
Postoque me desculpe a mágoa pura.
Digo, Nymphas, que minto:
Pois mal póde haver nunca quem pretenda
Negar-vos essa rara formosura.
Se amor de tanta dura
Por tanto mal tão pouco bem merece,
Não estranheis, minh'alma se endoudece:
Que se doudices falla d'improviso
Sem tento e sem aviso,
Queira Deos, que dureza tão crescida
Me não prive da vida além do siso.
  Cousas grandes e estranhas
Por o mundo t~ee feito e faz natura,
Que a quem vos não vio, Nymphas, muito espantão.
Nas Libycas montanhas
As Scitales são feras, de pintura
Tão singular, que só co'a vista encantão.
As hienas levantão
A voz tão natural á voz humana,
Que a quem as ouve, facilmente engana.
E vós (ó gentis feras) cujo aspeito
O mundo t~ee sujeito,
Tendes de natureza juntamente
A vista e voz de gente, e fero o peito.
  Das amorosas leis,
Com que liga natura os corações,
Andais fugindo (ó Nymphas) na espessura?
Como? E não vos correis
D'haver em vós tão duras condições,
Que possão mais que a próvida natura?
Se vossa formosura{230}
He sobrenatural, não he forçado
Que assi tenha tambem o peito irado:
Antes ao puro Amor, em cuja mão
Os corações estão,
Por vossa gentileza tão formosa
Lhe deveis amorosa condição.
  Amor he hum brando affeito,
Que Deos no mundo poz e a natureza,
Para augmentar as cousas que creou.
De Amor está sugeito
Tudo quanto possue a redondeza:
Nada sem este affecto se gerou.
Por elle conservou
A causa principal o mundo amado,
Donde o pae famulento foi deitado.
As cousas elle as ata e as confórma
Com o mundo, e reforma
A materia. Quem ha que não o veja?
Quanto meu mal deseja sempre fórma.
  Entre as plantas do prado
Não ha machos e femias conhecidas,
Que junto huma da outra permanece?
Não estão carregados
Os ulmeiros das vides retorcidas,
Onde o cacho enforcado amadurece?
Não vêdes que padece
Tanta tristeza a rôla por a morte
Da sua amada e unica consorte?
Pois lá no Olympo, a quantos captivou
Cupido e maltratou?{231}
Melhor qu'eu o dirá a subtil donzella,
Que ja na sua téla o debuxou.
  Ah caso grande e grave!
Ah peitos de diamante fabricados,
E das leis absolutos naturais!
Aquelle amor suave,
Aquelle poder alto, que forçados
Os deoses obedecem, desprezais?
Pois quero que saibais,
Que contra o fero Amor nunca houve escudo:
Costume he seu tomar vingança em tudo.
Eu vos verei lançar em hum momento
Suspiros mil ao vento,
Lagrimas, triste pranto e nova dor
Por quem tenha outro amor no pensamento.
  Mais quizera dizer
O desditoso amante, que ajudado
Se via então da mágoa e da tristeza;
Mas foi-lho defender
O outro companheiro, como irado
Com tão disforme e aspera dureza.
Aquillo que a rudeza
D'huma sciencia agreste lh'ensinára,
Disse, qual se em tal ponto despertára
D'horrendo sonho com pezado grito.
O mais que alli foi dito,
Vós, montes, o direis, e vós penedos;
Qu'em vossos arvoredos anda escrito.
            SATYRO SEGUNDO.
  Nem vós nascidas sois de gente humana,
Nem foi humano o leite que mamastes,{232}
Mas de alguma disforme fera Hyrcana:
Lá no Caucaso horrendo vos criastes:
Daqui trouxestes a aspereza insana;
Daqui os calidos peitos congelastes.
Sois Esphinges nos gestos naturais,
Que de humanas os rostos só mostrais.
  Se vós fostes criadas na espessura,
Onde não houve cousa que se achasse,
Agoa, pedra, arbor, flor, ave, alma, dura,
Qu'em seu passado tempo não amasse,
Nem a quem a affeição suave e pura
Nessa presente fórma não mudasse;
Porque não deixareis tambem memoria
De vós em namorada e longa historia?
  Olhae como, na Arcadia soterrando
O namorado Alpheo su'ágoa clara,
Lá na ardente Sicilia vai buscando
Por debaixo do mar a Nympha chara.
Assi tambem vereis passar nadando
Atys, que Galatêa tanto amára,
Por onde do Cyclopea grande mágoa
Converteo do mancebo o sangue em ágoa.
  Virae os olhos, Nymphas, á Erycina
Espessura; vereis alli mudar-se
Egeria, e em fonte clara e crystallina
Por a morte de Numa distillar-se.
Olhae que a triste Byblis vos ensina,
Com perder-se de todo e transformar-se
Em lagrimas, qu'emfim puderão tanto,
Que accrescentarão sempre o verde manto.
  E s'entre as claras ágoas houve amores,{233}
Os penedos tambem forão perdidos.
Olhae os dous conformes amadores
Lá no monte Ida em pedra convertidos:
Lethêa, por cahir em vãos errores
De sua formosura procedidos;
Oleno, porque a culpa em si tomava,
Por escusar a pena a quem amava.
  Tomae exemplo, e vêde em Cypro aquella,
Por quem Iphis no laço poz a vida.
Tambem vereis em pedra a Nympha bella,
Cuja voz foi por Juno consumida,
E, se queixar-se quer de sua estrella,
A voz extrema só lhe he concedida.
E tu tambem, ó Daphnis, que trouxeste
Primeiro ao monte o doce verso agreste!
  Tamanho amor lhe tinha a branda amiga,
Que em inimiga, emfim, se foi tornando:
Porque outra Nympha estranha ja o sogiga,
Suas magicas hervas vai buscando.
Olhae a quanto a crua dor obriga!
Por vingar-se, assi irada transformando
O foi em pedra. Oh dura confusão!
Despois lhe pezaria; mas em vão.
  Olhae, Nymphas, as árvores alçadas,
A cuja sombra andais colhendo flores,
Como em seu tempo forão namoradas;
Do qu'inda agora o tronco sente as dores.
Vereis, entre as de fructo matizadas,
Como a côr das amoras he de amores:
O sangue dos amantes na verdura
Testimunha de Tisbe a sepultura.{234}
  E lá por a odorifera Sabêa
Não vêdes que de lagrimas daquella,
Que com seu pae se junta e se recrêa,
Arabia s'enriquece, e vive della?
Lembrai-vos da verde árvore Penêa,
Que foi ja n'outro tempo Nympha bella,
E Cyparisso angelico mancebo;
Ambos verdes com lagrimas de Phebo.
  De Phrygia vêde o moço delicado
No mais alto arvoredo convertido,
Que tantas vezes fere o vento irado;
Galardão de seus erros merecido:
Pois, da alta Berecynthia sendo amado,
Por huma Nympha baixa foi perdido;
E a deosa, a quem perdeo do pensamento,
Quiz que tambem perdesse o entendimento.
  O subito furor lhe figurava
Que as árvores e os montes se cahião;
Ja dos pudicos membros se privava,
Que os horrores a tanto o constrangião;
Ja indignado no monte se lançava:
De sua morte as feras se doião.
Dest'arte perdeo Atys na espessura,
Despois de tantas perdas, a figura.
  Lembre-vos quando as gentes celebravão
Em Grecia as grandes festas de Liêo,
Onde as formosas Nymphas se juntavão,
E os sacros moradores do Licêo.
Todos em doce somno se occupavão
Por o monte, despois que anoiteceo;{235}
Mas o deos do Hellesponto não dormia;
Que hum novo amor o somno lh'impedia.
  Mas ella emfim, os braços estendendo,
Em ramos se lhe forão transformando;
Em raizes os pés se vão torcendo;
E o nome Loto só lhe vai ficando.
Vêde, Napêas, este caso horrendo,
Que vos está de longe ameaçando.
Assi tambem daquella, a quem seguia
O sacro Pan, a fórma se perdia.
  Que vos direi de Filis, pois perdida
Da saudosa dor com que vivia,
Á desesperação emfim trazida
Do comprido esperar de dia em dia,
Por desatar do corpo a triste vida
Atava ao collo a cinta que trazia.
Mas o tronco sem fôlha por o monte
Rhodope abraça o lento Demophonte.
  Nas boninas, tambem vereis Jacinto,
Porquem Phebo de si se queixa em vão;
Vereis o monte Idalio em sangue tinto
Do neto de seu pae, da mãe irmão.
Chora Venus a dor do moço extinto,
Maldiz o ceo e a terra, com razão;
A terra, porque logo não se abrio;
O ceo, porque tal morte permittio.
  E tu, constante Clycie, a quem fallece
A fé de teus amores enganosos,
No louro amante, que de ti s'esquece,
S'esquecem os teus olhos saudosos.
Nenhum alegre estado permanece;{236}
Que são do mundo os gostos mentirosos;
E á tua clara luz, por quem suspiras,
Ainda agora em herva os olhos víras.
  Trago-vos estas cousas á lembrança,
Porque s'estranhe mais vossa crueza
Com ver que a criação e longa usança
Vos não perverte e muda a natureza.
Dou as lagrimas minhas em fiança,
Qu'em tudo quanto está na redondeza,
Cousa d'Amor isenta, se attentais,
Em quanto vos não virdes, não vejais.
  Ja disse, que d'Amor sempre tiverão
As cousas insensiveis pena e gloria.
Vêde as sensiveis como se perdêrão.
E dir-vos-hei das aves larga historia:
As penas, qu'em su'alma se soffrêrão,
Nas azas lhes ficárão por memoria;
E aquelle altivo e leve movimento
Lhes ficou do voar do pensamento.
  O doce rouxinol e a andorinha,
Donde lhes veio o ir-se transformando,
Senão do puro amor que o Thracio tinha,
Qu'em poupa ainda a amada vai chamando?
Clama sem culpa a misera avezinha,
Que n'areia de Phasis habitando,
Do rio toma o nome; e quando clama,
Cruel á mãe, ao pae injusto chama.
  Vêde a que engeitou Pallas por fallar,
(Que dos amores he maior defeito)
E aquella, que succede em seu lugar,
Ambas aves; de amor usado effeito;{237}
Huma, porque fugia ao deos do mar;
Outra, porque tentára o patrio leito:
E Scylla, que a seu pae poz em perigo,
Só por ser muito amiga do inimigo.
  E Pico, a quem ficárão inda as côres
Da purpura Real, que antes vestia;
Esaco, que o seguir de seus amores
O trouxe a ver tão cedo o extremo dia:
Ou vêde os dous tão firmes amadores,
Que amor aves tornou na praia fria.
Do Rei dos ventos era genro o triste;
Mas contra o fado, emfim, nada resiste.
  Estava a triste Halcyone, esperando
Com longos olhos o marido ausente;
Mas os ventos indomitos soprando,
Nas ágoas o affogárão tristemente.
Em sonhos se lh'está representando;
Que o coração preságo nunca mente:
Só do bem as suspeitas mentirão,
Mas as do mal futuro certas são.
  Ao pranto os olhos seus a triste ensaia;
Buscando o mar com elles hia e vinha:
Quando o corpo sem alma achou na praia.
Sem alma o corpo achou, que n'alma tinha!
Ó Nereidas do Egêo, consolai-a,
Pois este pio officio vos convinha.
Consolai-a; sahi das vossas ágoas;
Se consolação ha em grandes mágoas.
  Mas oh nescio de mi! qu'estou fallando
Das avezinhas mansas e amorosas?
Pois tambem teve Amor natural mando{238}
Entr'as feras montezes venenosas.
O leão e a leoa, como, ou quando
Taes formas alcançárão temerosas?
Sabe-o da deosa Dindymene o templo,
E a que a Adonis o dava por exemplo.
  Quem fosse a mansa vacca di-lo-hia;
Mas o grão Nilo o diga, pois a adora.
Que fórma teve á Ursa, saber-se-hia
Do Pólo Boreal, onde ella mora.
O caso d'Acteon tambem diria
Em cervo transformado; e melhor fôra
Se dos olhos perdêra a vista pura,
Que em seus galgos achar a sepultura.
  Tudo isto Acteon vio na fonte clara,
Onde a si d'improviso em cervo vio:
Que quem assi dest'arte alli o topára,
Que se mudasse em cervo permittio.
Mas, como o triste Principe em si achára
A desusada fórma, se partio.
Os seus, desconhecendo-o, o vão chamando;
E, tendo-o alli presente, o vão buscando.
  Co'os olhos e co'o gesto lhes fallava;
Que a voz humana ja perdida tinha.
Qualquer delles por elle então chamava,
E a multidão dos cães contr'elle vinha.
Hum cervo acude a ver (qualquer gritava)
Acteon, donde estás? acude asinha,
Que tardar tanto he este? (repetia)
He este, he este, o eco respondia.
  Quantas cousas em vão estou fallando
(Oh Napêas esquivas!) sem que veja{239}
O peito de diamante hum pouco brando
De quem meu damno tanto só deseja.
Pois, por mais que de mi me andais tirando,
E por mais longa emfim que a vida seja,
Nunca em mi se verá tamanha dor,
Que Amor a não converta em mais amor.
  Aqui (formosas Nymphas) vos pintei
Todo d'amores hum jardim suave;
D'ágoas, de pedras, d'árvores contei,
De flores, d'almas, feras, de huma, outra ave.
Se este amor, que no peito aposentei,
Que dos contentamentos t~ee a chave,
Por dita em tempo algum determinasse
Que de tão longos damnos vos pezasse,
  Quanto mais devagar vos contaria
De minha larga historia e não alheia?
E com quanta mais ágoa regaria,
Que o rio, de contente, a branca areia?
Novo contentamento me seria
Formar de meu cuidado a nova ideia:
E vós, gostando deste estado ufano,
Zombarieis então de vosso engano.
  Mas com quem fallo ja? que estou gritando,
Pois não ha nos penedos sentimento?
Ao vento estou palavras espalhando;
A quem as digo, corre mais que o vento.
A voz e a vida a dor m'está tirando,
E o tempo não me tira o pensamento.
Direi, emfim, ás duras esquivanças
Que só na morte tenho as esperanças.
  Aqui, sentido, o Satyro acabou,{240}
Com huns soluços que a alma lhe arrancavão.
Os montes insensiveis, que abalou,
Nas ultimas respostas o ajudavão.
Então Phebo nas ágoas se encerrou
Co'os animaes que o mundo allumiavão;
E co'o luzente gado appareceo
A candida pastora por o ceo.

ECLOGA VIII.

PISCATORIA.

Sereno.

Arde por Galatêa branca e loura
Sereno pescador pobre, forçado
D'huma estrella, que quer á míngoa moura.
  Os outros pescadores t~ee lançado
No Tejo as redes: elle só fazia
Este queixume ao vento descuidado:
  Quando virá (formosa Nympha) hum dia,
Em que te possa dar a conta estreita
Desta doudice triste e vãa porfia?
  Não vês, que me foge a alma e que m'engeita,
Buscando em hum só riso d'essa boca,
Nos teus olhos azues mansa colheita?
  Se ao teu esprito alg~ua mágoa toca,
Se d'amor fica nelle huma pégada,
Que te vai, Galatêa, nesta troca?{241}
  Dar-te-hei minh'alma: lá ma tens roubada:
Não ta demandarei: dá-me por ella
Huma só volta d'olhos descuidada.
  Se muito te parece, e minha estrella
Não consentir ventura tão ditosa,
Dou-te as azas do Amor perdidas nella.
  Que mais te posso dar, Nympha formosa,
Inda que o mar d'aljofar me cubríra
Toda esta praia leda e graciosa?
  Amansão-se ondas, quebra o vento a ira:
Minha tormenta só nunca socega;
O meu peito arde em vão, em vão suspira.
  Anda no romper d'alva a nevoa cega
Sôbre os montes d'Arrabida viçosos,
Em quanto o solar raio lhes não chega.
  Eu, vendo apparecer outros formosos
Raios, que a graça e côr ao ceo roubárão,
Se os olhos cegos vi, vejo saudosos.
  Quantas vezes as ondas se encrespárão
Com meus suspiros! quantas com meu pranto
As fiz parar de mágoa e me escutárão!
  Se na fôrça da dor a voz levanto,
E ao som do remo, que ágoa vai ferindo,
Perante a lua meu cuidado canto;
  Os maviosos delfins m'estão ouvindo;
A noite socegada; o mar callado:
Tu só foges d'ouvir-me, e te vás rindo.
  Estranhas, por ventura, o mar cercado
Da fraca rede; a barca ao vento solta;
E hum pobre pescador aqui lançado?
  Antes que o sol no ceo cerre huma volta{242}
Se póde melhorar minha ventura,
Como a outros succede, n'ágoa envolta.
  Igual preço não he da formosura
D'ouro a areia, que o rico Tejo espraia,
Mas hum amor, que para sempre dura.
  Vejão teus olhos (bella Nympha) a praia;
Verás teu nome na mimosa areia.
Nunca sôbre elle o mar com furia saia!
  Vento algum atégora o não salteia:
Tres dias ha que escripto aqui o deixou
Amor, e o veda a toda fôrça alheia.
  Elle com suas mãos proprio ajudou
A escolher estas conchas, affirmando
Que o sol para ti só as matizou.
  Hum ramo te colhi de coral brando:
Antes que o ar lhe désse, parecia
O que de tua boca estou cuidando.
  Ditoso se o soubesse inda algum dia!

ECLOGA IX.

PISCATORIA.

Palemo.

Despois que o leve barco ao duro remo,
Onde menos das ondas se temia,
Atou o pescador pobre Palemo;
  Em quanto as negras redes estendia
Seu companheiro Alcão na branca arêa,{243}
E Lico as longas cordas envolvia;
  De cima d'huma rocha, a qual rodêa
O mar, quebrando nella de contino,
Começou a chamar por Galatêa.
  Deixa o molle licor e crystallino,
(Dizia) ó Nympha, ja, que o sol deseja
Enxugar teu cabello d'ouro fino.
  Inda que t~ee de ti tão grande inveja,
Não temas que te queime o rosto brando:
Basta para abrandar-se que te veja.
  Não te detenhas mais, vem ja cortando
Com teu candido peito as brancas ondas,
Escumas menos brancas levantando.
  Dar-te-hei (com condição que não t'escondas
De mi lá nessas humidas moradas,
E que algum'hora, branda me respondas)
  Mil conchas n'hum cordão verde enfiadas,
Todas d'huma feição; não d'huma côr,
Pois dellas são azues, dellas rosadas.
  Indaque seja pobre pescador,
Não sei se em desprezar-me muito acertas,
Pois rico do amor teu me fez Amor.
  Para ti n'outras praias mais desertas
Irei pescar por entre pedras duras,
Que sempre verde musgo t~ee cobertas,
  As pardas ostras, onde gottas puras
De fresco orvalho, dentro endurecidas,
Não podem da cobiça estar seguras.
  Porque deixas de vir? porque duvídas?
Por ventura d'algum meu companheiro?
Inda as redes ao sol t~ee estendidas.{244}
  Toda a noite pescárão, e primeiro
Querem dormir a sesta nesta praia,
Que o barco polo mar levem ligeiro.
  Eu, vigiando aqui como atalaia,
Te chamarei, até que de cansado
Hum dia desta rocha abaixo caia,
  Deixando este lugar tão infamado
Com minha morte, que dos marinheiros
Com o dedo de lá será mostrado.
  Dirão os naturaes e os estrangeiros:
Alli morreo Palemo. Ai triste historia!
Guardae a nao de alli, ventos ligeiros.
  Antes que tal succeda, vê que gloria
Alcanças com deixar aos navegantes
Da tua ingratidão esta memoria.
  Da nossa differença não te espantes:
Tu Nympha, eu pescador: Glauco, deos vosso,
Qual eu agora sou, tal era d'antes.
  Tambem eu entre as hervas achar posso
Aquella, a quem o ceo deo tal virtude,
Que muda n'outro ser este ser nosso.
  Mas este amor, qu'eu cá mudar não pude,
Inda que vá a morar lá nessas ágoas,
Não temas que a mudança em mi o mude.
  Serão as vivas ondas vivas frágoas,
Em que estarei ardendo noite e dia,
Se não tiveres dó de tantas mágoas.
  As horas naturaes da pescaria
Não vês que vão passando? Como as passas?
Quem deste passatempo te desvia?
  Ah rigorosa Nympha! ah! não me faças{245}
Dar em vão tantos gritos: vem; iremos
Ambos a levantar as verdes naças.
  Ambos os anzoes curvos cobriremos
De mentirosas iscas, com que os peixes
A todo prazer nosso prenderemos.
  Assi d'Amor cruel nunca te queixes,
E dessa formosura as mais formosas
Nymphas do mar azul vencidas deixes;
  Que venhas (pois por ti com saudosas
Lagrimas vou gastando a vida e alma)
A tirar-me esperanças duvidosas.
  A praia está callada, o mar em calma;
Por cima desta rocha brandamente
Zephyro respirando a desencalma.
  Aqui não sinto cousa certamente
Porque deixes de vir, como sohías,
Senão, que não es tu disso contente.
  Se desgostas das grossas pescarias,
Marisco appetitoso aqui não falta,
Ja sejão luas cheias, ja vazias.
  Polos pés desta rocha dura e alta
Irei eu despegando huns como pés
D'hum pequeno animal, que nella salta.
  E vivos te darei (se delles es
Amiga) mil cangrejos vagarosos,
Que verás ir andando de revés.
  Não te darei ouriços espinhosos,
Porque te quero tanto, que receio
Qu'esses teus dedos piquem tão mimosos.
  Faz d'aqui perto o mar hum largo seio,
Onde de ameijoas lisas, sem trabalho,{246}
Podemos apanhar hum cesto cheio.
  Mas além de tudo isto hum crespo galho
De vermelho coral te darei logo,
Que por dita arrastou o meu tresmalho.
  Mas ai! qu'em vão te chamo, em vão te rógo;
Que nem tu a meus rogos tens respeito,
Nem eu, por mais que grite, desaffógo.
  Hum coração em lagrimas desfeito
Como ja não te abranda? quem encerra
Crueza tal em tão formoso peito?
  Não reina Amor no mar, como na terra?
Bem sabes que mil vezes ja venceo
A Neptuno teu Rei em clara guerra.
  Sua formosa mãe onde nasceo,
Senão no proprio mar em que te banhas?
Onde Thetis por Péleo em fogo ardeo?
  Se das pedras nascesses nas montanhas,
Se com leite de tigres te criáras,
Mais duras não tiveras as entranhas.
  Apparecêras tu, e então tornáras
Logo a esconder-te, logo, se quizeras
Nas ondas, que de ti me são avaras.
  Com h~ua mostra só que de ti deras,
A vida, que me foge em não te vendo,
Co'os teus formosos olhos detiveras.
  Então víras os meus, donde correndo
De lagrimas se vem dous largos rios,
Que o mar tambem em si vai recolhendo.
  Ah nescio pescador! que desvarios
Me deixo aqui dizer! a quem os digo!
A surdas ondas ja, ja a ventos frios.{247}
  Elles e ellas ja crescem: ja em p'rigo
O barco vejo: ai! ei-lo combatido.
Ellas e elles o levão ja comsigo.
  Olhos, que lá me tendes o sentido,
A culpa he vossa só, que me não vêdes.
Mas, pois o pescador anda perdido,
  Perca-se o barco seu, percão-se as redes.

ECLOGA X.

PISCATORIA.

Meliso.

Encheo do mar azul a branca praia
Meliso pescador de mil querellas;
Meliso, que por Lilia arde e desmaia.
  Despois que á luz da lua e das estrellas,
Sôbre dura fatexa o barco pôsto,
As redes recolheo, remos e velas:
  Que gôsto, ó Lilia, (disse) ou que desgôsto
Te move a me negar, vendo qual ando,
Teus olhos côr do ceo, teu alvo rosto?
  Se tu queres que pene desejando,
Se queres que no mar em fogo viva;
Ardendo sempre estê, sempre penando.
  Mas ólha, ó branda Lilia, (antes esquiva)
Que não merece ser tão mal tratada
Hum'alma desses olhos tão captiva.
  Vives dos meus cuidados descuidada:{248}
Coitado de quem traz a duvidosa
Vida no mar e terra aventurada!
  Bem podes com razão ser piedosa
Com quem não quer mor bem, que bem quererte,
Não sendo tão cruel como es formosa.
  Ora deixa ja, ingrata, deixa ver-te
A meus cansados olhos, que de tantas
Lagrimas são movidos, sem mover-te.
  Se tu me vences, e se tu m'encantas
Com tua doce falla, doce riso,
Porque foges de mi? porque te espantas?
  Lembre-te a formosura de Narciso,
E qual pago lhe deo seu desamor:
Ólha que com amor disto te aviso.
  Mas quando essa crueza tanta for,
Que mereça do ceo novo castigo,
Qual herva será digna de tal flor?
  Amor que me persegue, Amor que sigo,
Me faz d'hum grave mal andar temendo;
D'hum mal, qu'eu sinto na alma e que não digo.
  Quanto mais ledo ja te estive vendo
Aqui as mansas ondas esperando,
Que por chegar a ti vinhão correndo,
  E da molhada areia despegando
Com a candida mão roxas conchinhas,
A fórma do teu pé nella deixando?
  Daquellas, de que tu mais gôsto tinhas,
Muitas te trago aqui, postoque temo
Que menos o terás por serem minhas.
  Hum temor tal me chega a tal extremo,
Que, vencido d'hum triste esquecimento,{249}
No mar me cahe da mão o duro remo.
  E quando a branca vela sólto ao vento,
Tão descuidado vou do fiel leme,
Que me leva a perder meu pouco tento.
  Mas quem arde por ti, quem por ti treme,
Os seus maiores riscos não receia,
Os teus que sente mais, muito mais teme.
  Despois que te não vi, (não sei que creia
Desta tardança tua e morte minha)
Sendo a lua vazia, he quasi cheia.
  O tempo, que nos gostos passa asinha,
Detem-se neste mal da saudade,
Por me dobrar a dor que d'antes tinha.
  Não desprezes, ó Lilia, huma vontade,
Que por te contentar tudo despreza,
Tudo julga, sem ti, por pouquidade.
  Se pretendes amor, ja tens certeza
Que não podes ser nunca mais amada
Dos que vencidos traz tua belleza.
  Se por ventura estás affeiçoada
A gentil parecer, a bom engenho,
A ninguem nestas partes devo nada.
  Se fazes caso d'honra, ólha que venho
De geração d'honrados pescadores;
Se de riqueza, barco e redes tenho.
  Por erros julgarás estes louvores;
E oxalá não os julgues por doudice!
Mas quem siso quer ter não tenha amores.
  E mais tudo foi pouco quanto disse,
Pondo os olhos no muito que meu fado
Nos teus, que ver desejo, quiz que visse.{250}
  Aconteceo-me hum caso desusado,
(Inda que d'huma cousa n'outra salto)
Digno, por ser de amor, de ser contado.
  Pescando hontem á tarde no mar alto,
Suspenso nessa rara formosura,
A quem com mil lembranças nunca falto,
  Comecei a cantar: Lilia, mais dura
Que a mais inculta rocha rodeada
Do mar, de cujo encontro está segura;
  Mais alva que jasmins, e mais córada
Que purpureas serejas polo Maio;
Mais loura que manhãa desentrançada;
  Não vês... dizer queria que desmaio,
Quando (cousa que mal me será crida)
No mar, vencido d'hum, do barco caio?
  Alli tivera fim a triste vida,
Se d'hum brando delfim, que me escuitava,
Não fôra, por ser tua, soccorrida.
  Parece que tambem vencido estava
Do mal, de que me via andar vencido,
Quem em tamanho risco m'ajudava.
  Trouxe-me sôbre si adormecido,
Nadando ao som das ondas mansamente,
Até que me sentio em meu sentido.
  Livre deste mortal, bravo accidente,
Tal foi o espanto meu, tal meu temor,
Que d'outro me livrei escaçamente.
  Mas logo o amoroso nadador
Me poz junto do barco, que tão perto
Esteve de ficar sem pescador.
  O sol era de todo ja coberto,{251}
Quando eu, entrando nelle, sahi fóra
Do perigo, onde tive o fim tão certo.
  Porém outro maior me cansa agora,
De que mal sahirei, se te não vir
Amanhecer aqui co'a nova aurora.
  Não póde ella tardar em descobrir
As suas louras tranças dasatadas,
Das quaes as tuas bem se podem rir.
  Pois por cima das ondas, acordadas,
As Halcyoneas ouço lamentar-se,
Do seu antigo damno inda lembradas.
  E sinto o fresco orvalho derramar-se
Mais congelado e frio; e Venus bella
Polo Oriente ja vejo levantar-se.
  Bem podes, Lilia, competir com ella,
E com Pallas e Juno em gentileza;
Em amor não, pois elle nasceo della:
  Desterrou-o de ti tua aspereza,
Que desterra de mi prazer e vida,
Deixando em seu lugar mágoa e tristeza.
  No silencio da noite, que convida
A descanso commum, tanto me cança,
Que não sei se remedio ou morte pida.
  Se tu quizesses dar-me huma esperança
De te servir de mi ou tarde, ou cedo,
Nunca me negaria o mar bonança.
  Polas inchadas ondas, que põe medo,
Eu só, sem mais ajuda, levaria
Sempre á fôrça de braço o barco quedo.
  Tão seguro por ellas andaria,
Como polo seu campo o lavrador{252}
No mais quieto, claro e bello dia.
  Ólha que não ha destro pescador,
Que mais manhoso as redes desencolha,
Nem os tortos anzoes isque melhor.
  Os peixes deixarei em tua escolha:
Aquelles de que fores mais amiga,
Nunca te faltarão de fôlha a fôlha.
  Não sei, Lilia formosa, que mais diga,
Que mova amor em ti, que mova mágoa;
Sei que mágoa, e que amor a mais obriga.
  Mas antes que o sol dê naquella frágoa,
Onde meus ais dilata a triste Ecco,
Vou-me segurar mais o barco na ágoa,
  Porque de baixa mar não fique em sêcco.