Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II

ECLOGA XI.

INTERLOCUTORES.

ANZINO e LIMIANO.

Parece-me, pastor, se mal não vejo,
Que ja te vi mais ledo andar outr'hora
Nos largos campos do famoso Tejo.
            LIMIANO.
  Podia ser; que muito tempo fóra
Andei desta ribeira, patria minha,
Onde triste me vez andar agora.
  Tinha lá para mi, que a vida tinha
Mais socegada cá e mais segura,{253}
Entre os meus, que com gôsto a buscar vinha.
  Foi d'outro parecer minha ventura:
Discordias sós achei, e achei dureza,
Em lugar de socêgo, e de brandura.
  Achei as boas leis da natureza
Vencidas do interesse; e a gente cega,
Tanto, que mais que o sangue, o gado préza.
  Dizem que quando o mar bonança nega,
Correndo vai aquella não mor prigo,
Que á desejada terra mais se chega.
  Assi m'aconteceo a mi comigo;
Seguro sempre ao longe, sempre ledo;
Triste ao perto, e tratado como imigo.
            ANZINO.
  Sempre (podes-me crer este segredo)
Desejei de te ver; mas com desgôsto,
Inda te não quizera ver tão cedo.
  Prestando para cousas de teu gôsto,
Como camaleão não mudo côres;
Qual he meu coração, tal he meu rosto.
            LIMIANO.
  Não são logo assi, não, outros pastores,
Que de promessas vãas te fazem rico,
E nunca fructo dão: tudo são flores.
  Mas desejo saber com quem pratíco,
Porque não caia em falta, e porque entenda
A quem tamanho amor devendo fico.
            ANZINO.
  Antes que tempo nisso se dispenda,
Busquemos hum lugar mais fresco e frio,
Que da calma, que cahe, bem nos defenda.{254}
            LIMIANO.
  Vamos alli, que alli bosque sombrio
Nos dara fresco abrigo, assento o prado,
Formosa vista o valle, o monte, o rio:
  O rio, que verás tão socegado,
Que te parecerá que se arrepende
De levar ágoa doce ao mar salgado.
  Nem cabra, nem ovelha alli offende
Herva, folha, nem flor, ou ferro duro:
A planta polo ar livre se estende.
  Verás cahindo em gottas crystal puro
No vão d'huma caverna carcomida,
Por entre o musgo molle, verde-escuro.
            ANZINO.
  Quem traz á saudade a alma rendida,
A saudade busca, onde descansa;
Maso descanso della encurta a vida.
  Com tudo, quem do ceo na terra alcansa
Poder gozar-se desta liberdade,
Que mais deseja ter? que mais o cansa?
  Affirmo-te de mi esta verdade,
Que muitos valles vi, muitas ribeiras;
Mas esta me dobrou a saudade.
  Oh que viçosas murtas! que oliveiras!
Que freixos! como estão d'hera cingidos!
Quantas voltas lhes dá de mil maneiras!
  Os lirios junto d'ágoa bem nascidos
Quanta graça que t~ee entre as boninas,
Sem ordem, com mais graça, entremetidos!
  Vem encrespando as ágoas crystallinas
A branda viração; a fôlha treme;{255}
O movimento apenas determinas.
  A rôla seu amor suspira e geme;
Escondida se queixa Philomella:
Parece que do campo inda se teme.
  Espanta a quem se atreve, ver aquella
Rocha por cima d'ágoa pendurada
Como ja se não deixa cahir nella.
  Ó ribeira do Lima, celebrada
De mil brandos espritos sempre sejas,
Sempre de brandas Nymphas povoada.
  Fujão longe de ti duras invejas;
Peçonha de pastores, morte sua:
Tudo sintas amor, tudo amor vejas.
  De dia o claro sol, de noite a lua,
Em teu favor inspirem de maneira,
Que sempre fertil seja a praia tua.
  Tornando, emfim, á prática primeira,
Por dar-te, como queres, de mi conta,
Larga ta quero dar e verdadeira.
  Apartar-te do gado leva em conta;
Que, pois com elle fica o pegureiro,
Que te detenha hum pouco, pouco monta.
  O meu nome he Anzino: fui vaqueiro
Na grã serra da Estrella, que não tive;
Não sei se natural, ou se estrangeiro.
  Hum pastor me criou, que ja não vive;
De todos por seu filho era julgado;
E eu tambem neste engano hum tempo estive.
  Até que delle soube ser achado
Em huma anzina envolto em pobres panos;
E daqui veio, que Anzino fui chamado.{256}
  Neste meu desengano outros enganos
Fundou de novo a pouca dita minha,
Com que o vim a servir mais de sete annos.
  Tinha muito de seu, e mais não tinha
De filhos, que huma filha bem formosa,
Á qual por morte delle tudo vinha.
  Conversação doméstica e damnosa,
Na livre formosura e tenra idade,
Em ambos accendeu chamma amorosa.
  Como ella de mi soube esta verdade,
Com outro amor, com outros exercicios,
Nella ganhei de novo outra vontade.
  Amor mestre me fez de mil officios
Para meio do fim que desejava;
E delle sinal davão mil indicios.
  Tecia alvos cestinhos, quando andava
Com as vaccas no prado: á noite hum cheio
De fructa, outro de flores lhe levava.
  Nas mangas muitas vezes e no seio
As nozes lhe levei com as castanhas,
Quer do souto do pae, quer d'outro alheio.
  Nos intricados bosques, nas montanhas,
Por seu amor as feras perseguia,
Fôrças agora usando, agora manhas.
  Vivos os mansos cervos lhe trazia;
Vivas medrosas lebres fugitivas:
Ligeireza de pés não lhes valia.
  Mas, se lhe dava as mansas feras vivas,
Mortas lhe dava as que por natureza,
Sem domar-se, são bravas, ou esquivas.
  Certo dia achei eu n'huma aspereza,{257}
Sem mãe, hum cervo branco e pequenino;
Trouxe-lho; ella o criou; inda hoje o préza.
  Ou ja criação seja, ou ja destino,
Tanto que não o vê, geme e suspira.
Como menos fara o triste Anzino?
  Tangia mal na frauta, mal na lira;
Despois tão bem tangia, qu'era espanto
A quem antes d'amor tanger m'ouvíra.
  Ouvia celebrar sempre em meu canto
Ulina a sua rara formosura:
(Tal nome t~ee aquella, a que amo tanto.)
  Contava-lhe meus males por figura:
Ficava eu, de medroso, frio e mudo;
Ficava ella suspensa; a historia escura.
  Assi com tal temor, com tal estudo,
Amor fui grangeando longamente,
Á conta deste amor perdendo tudo.
  Ella, dos meus desejos innocente,
O mesmo amor me tinha, tanto, digo;
Que no ser era todo differente.
  Praticava seus gostos só comigo;
Seus desgostos tambem, seus pensamentos,
Com rara graça e com saber antigo.
  Outras vezes, confusa nos intentos,
Os modos me notava, e me dizia:
Entre irmãos de que servem comprimentos?
  Eu quizera, Senhora, (respondia)
Que soubesses de mi, qu'irmão não sendo,
Não com menos amor te serviria.
  Tornou-me: Essa resposta não entendo:
O que não quiz o ceo, queres que seja?{258}
Que castellos no vento andas fazendo?
  Se me queres ver leda, não te veja
Soltar essas palavras ociosas:
Materia mais honesta nos sobeja.
  Dizendo assi, nascião-lhe outras rosas
Naquellas proprias suas, sôbre a neve
Das suas faces mais que o sol formosas.
  Destas quebras comigo algumas teve;
Cujas fôrças amor quebrava logo
N'outra conversação mais branda e leve.
  Cresceo desta maneira o vivo fogo,
Que ardendo dentro na alma encurta a vida;
Cujo principio foi hum brinco, ou jôgo.
  Mas ella neste tempo era pedida
De muitos a seu pae em casamento;
Nova dor para mi, mortal ferida!
  Elle lhe nomeava mais de cento:
Delles paternamente lhe rogava
Hum escolhesse a seu contentamento.
  Com mil razões fingidas s'escusava,
Sendo só a razão, não ser contente;
Com que desgôsto ao pae, gôsto a mi dava.
  Estando nós por huma sesta ardente
Á sombra d'huns madronhos repousando,
Affastados da casa e mais da gente,
  Ja d'huma e d'outra cousa praticando;
Soltou com hum suspiro estas palabras:
Desde hontem para cá em mi não ando.
  Logo que nosso pae tornou das labras,
Me disse que assentára de casar-me
Com Tityro, pastor de muitas cabras.{259}
  Que não buscasse causas d'escusar-me,
Como por muitas vezes ja fizera,
Pois tinha muitas mais de contentar-me.
  Que afóra esta tenção, que a sua era,
O mesmo seus parentes lhe dizião,
A quem de seus intentos conta dera.
  As ágoas, que dos olhos me corrião,
Em quanto elle me disse o que te digo,
Por mi, que fiquei muda, respondião.
  Com seu chôro abrandou ao pae amigo;
Qu'emfim, deixando-a menos magoada,
Lhe disse que fallasse isto comigo.
  Assi me disse; e que determinada
Estava a qualquer mal que lhe viesse.
Antes que ser com Tityro casada.
  Que por mais de mil cabras que tivesse,
Jamais esta vontade mudaria;
Que buscava saber, não interesse.
  E que de melhor mente casaria
Com hum qualquer pastor, pobre de gado,
Se nelle as partes visse, que em mi via.
  Por extremo de mi lhe foi louvado
O pensamento seu; e sem detença
Tal resposta lhe dei acautelado:
  Se a dar meu parecer me dás licença,
Hum pastor te darei de qualidade,
Que em nada de mi tenha differença;
  Nem de menos saber, nem mais idade;
Nas manhas outro tal, e em corpo e gesto:
Da fazenda não sei a quantidade.
  Se esse me fazes bom, daqui protesto{260}
De não receber outro por marido:
Me respondia com sembrante honesto.
  Pois sabe (respondi) que ja admittido
Me tens com gôsto teu por teu esposo;
Que com dar-te-me dou o promettido.
  Não pude dizer mais, de vergonhoso,
Nem ella me deixou com ouvir tal,
Suspeitando de mi amor vicioso.
  Logo me respondeo: Ah desleal!
Ah deshonesto irmão! isso pretendes?
Mas não irmão, imigo capital.
  O ceo, que com injusto amor offendes,
Tome, cruel, de ti justa vingança,
Antes que de tamanho error t'emendes.
  Andavas-me enganando na esperança
Com esses falsos e indevidos meios
Ao sangue nosso e minha confiança?
  Fizeste verdadeiros os receios,
A que confusamente me levavas
De sombras enganosas com rodeios.
  Desejo no teu peito agasalhavas
Tão torpe, tão infame, tão alheio
Do puro amor, a que obrigado estavas?
  Não te desculpes, não; que ja não creio
Lagrimas, nem palavras, nem desculpas
De quem imaginou caso tão feio.
  Timido respondi: De que me culpas?
Se ouvido me não dás, não tens razão;
Acaba de me ouvir o fim das culpas.
  T~ee-me, Ulina, por teu, não por irmão:
Se me não queres crer esta verdade,{261}
De teu pae saberás se minto, ou não.
  Por filho me criou: a flor da idade
Gastei em o servir por teu respeito:
Ólha o que te merece esta vontade.
  Se com ser isto assi tenho êrro feito
Em grangear-te; que a ti só desejo;
Eis este ferro aqui, eis este peito.
  Isto ouvindo, mostrou hum ledo pejo,
Pondo os olhos no chão, formosa e branda;
E cuido qu'inda assi nos meus a vejo.
  Disse-me: Em que revoltas o amor anda!
No bem, como no mal, tambem me enleia:
Inda agora o senti, ja reina e manda.
  Como queres, Anzino, qu'eu te creia
Cousa que nem sonhada foi tégora?
Não sabes de quem ama, o que receia?
  Fallarei com meu pae: fica-t'embora:
No desengano seu teu bem consiste;
Da palavra que dei não estou fóra.
  Com isto me deixou alegre e triste.
O comêço ja ouviste de meu dano,
Amigo Limiano: o fim amargo,
Em que não serei largo, escuita agora.
Fulgencia, outra pastora, que vizinha
Era d'amada minha e grande amiga,
(Não sei como isto diga que não moura)
Pastora branca e loura, que na serra
Era a segunda guerra dos pastores,
Por mal dos meus amores me quiz bem.
Fundava-se porém em casamento;
E deste fundamento lhe nascia,{262}
Que, como me não via, o valle, o monte,
O bosque, o rio, a fonte rodeava.
Em busca minha andava aquella sesta;
Entrou pola floresta, onde nos vio;
E tudo nos ouvio quanto fallámos,
Entre huns espessos ramos escondida.
Cruelmente ferida dos ciumes,
Foi-se a fazer queixumes (descobrindo
Mais do qu'esteve ouvindo) ao pae d'Ulina.
Eis logo desatina o triste velho;
Eis que sem mais conselho a filha entrega,
Que com chôro se nega e com palabras,
Ao simple guarda cabras, por esposa.
Ah hora desditosa! ah sorte dura!
Daquella formosura desusada,
De tantos desejada, e de mi tanto
Servida com espanto e puro amor,
Quizeste, por mais dor, enriquecer
Quem não sabe entender o preço della?
Ó tu, serra d'Estrella, que tal viste,
Como te não abriste; e no teu centro
Me não cerraste dentro, estando vivo,
Porque mal tão esquivo não sentíra?
Oh cega, oh cruel ira! oh pae fingido!
Para me ver perdido me criaste?
Porque me não deixaste no deserto?
Menos crueza, certo, então usáras,
Inda que me deixáras (não te aggraves)
Ás cruas feras e aves da montanha.
Não vês que o ceo estranha isso que tratas?
Não vês que a ti te matas cobiçoso?{263}
Na porta o novo esposo tropeçou;
Na casa não entrou co'o pé direito:
Gritou sobolo teito a noite inteira
A ave, qu'he mensageira de fins tristes.
O mesmo vós sentistes, cães da aldeia,
Quando por má estreia, juntos todos,
Com differentes modos huiviastes.
Serranas, qu'esperastes nestas vodas
Cantar alegres todas Hymeneos,
Dos vossos alvos seios, alvas flores,
Em lugar dos licores mais custosos,
Por cima dos esposos derramando;
Ou vendo estar bailando, estando quedas,
Ao som das gaitas ledas no terreiro
O moço tão ligeiro á maravilha,
Que quasi o pé não trilha o junco mole;
Qual será que console a triste amiga,
A quem a fôrça obriga do pae duro,
A quem o Amor puro obriga tanto,
Que n'hum contino pranto se consume?
Assi do grande cume da esperança
Com subita mudança derribado,
Me poz em tal estado a triste nova,
Como sabe por prova quem bem ama.
Levou a leve fama a minha dor
A Sincero pastor, meu grande amigo,
Que com rogos comsigo me levou,
Do monte, onde me achou, ja noite escura,
Chorando a desventura em que me via.
As vaccas, vindo o dia, derramadas,
De mi desamparadas, vem bramando,{264}
Sinal n'aldeia dando em seu bramido
De qu'era ja perdido o pastor seu.
Tamanha pena deo á bella Ulina
(Bella, porém mofina) a pena minha,
Sôbre quantas ja tinha no seu peito,
Que mais do triste leito não s'ergueo.
Seu pae adoeceo tambem de nojo:
Da morte foi despojo ao dia quinto.
A dor que daqui sinto he sem medida.
Pois m'apartou da vida, a vida acabe,
Ou n'alma, onde não cabe, faça pausa.
Fulgencia, que foi causa destes males,
Des que montes e valles descobrio,
Despois que me não vio em toda a serra,
Deixou, deixando a terra, mágoa aos pais,
Que della nunca mais novas souberão.
Emfim, tal fim tiverão meus amores.
Chorárão os pastores juntamente
D'Ulina descontente a triste sorte,
Do pae a breve morte, e de Fulgencia
A vingadoura ausencia de seu êrro;
De mi este destêrro em que me pôs.
  Mas mais chorastes vós, meus olhos tristes,
Quando de vossa luz, sem a do dia,
Por terras tão estranhas vos partistes.
  Cuido que meia noite então seria;
Cantando os gallos ja na triste aldeia,
Chorava só quem della se partia.
  Casa de meus suspiros sempre cheia,
(Disse eu, quando passei pela de Ulina)
Tal fructo colhe quem amor semeia!{265}
  Fortuna, a mi cruel, sempre benina
Em tudo seja áquella, que em ti mora,
Indaqu'em outros braços se reclina.
  Fica-te aqui, minha alma, fica embora,
Que, pois assi o quiz fado inimigo,
Jamais te não verei dia nem hora.
  Dalli nos ricos campos dei comigo,
Que das ágoas do Tejo são regados;
Onde te vi mais ledo, como digo.
  Por ver se posso agora a meus cuidados
Achar algum repouso, algum socêgo,
Atravessando vou montes e prados.
  Passei as claras ágoas do Mondego,
Das Lusitanas Musas charo ninho;
As do Douro despois em turvo pégo.
  Daqui continuando meu caminho,
Espero ver a casa aos ceos acceita,
Na terra que da nossa aparta o Minho.
  Onde vou visitar na urna estreita
Os santos ossos do Varão divino,
Que pretendeo do Mestre o mão direita.
  Assi, d'hum lugar n'outro de contino,
O bem que ja cantei, chorando venho;
Tornei-me de vaqueiro, peregrino:
  Tal hábito me vês, tal vida tenho.
            LIMIANO.
  Anzino, he breve o dia
Para poder contar
O que sinto de tua desventura.
E sei bem qu'erraria,
Se quizesse louvar{266}
O grave estylo teu, tua brandura.
Aquella formosura,
Por quem alegre fôras;
Que tu ledo cantaste,
E que despois choraste
Tão triste, qu'ind'agora triste choras;
Vivendo eterna nella,
Será mágoa commum, e louvor della.
  As mágoas deixo enfim;
Tambem louvores deixo,
Por grandes ellas, elles por pequenos.
Tu, por amor de mim,
(Dir-te-hei de que me queixo)
Repousa hoje comigo, quando menos:
Assi vejas serenos
Esses teus tristes lumes.
Abranda a dura mágoa,
Que tira fontes de ágoa
Do fogo em que chorando te consumes;
Dar-te-hei conta mais larga
Da vida que aqui passo tão amarga.
  E mais saber desejo
Se a fama nos engana,
Que diz, que o grão pastor dos Lusitanos,
Com todos os do Tejo,
E com fato e cabana,
Reside ja nos campos Africanos;
Onde mil soberanos
Triumphos, delle dinos,
Lh'ordena a fatal sorte,
Com grande estrago e morte{267}
Dos brutos mal nascidos Sarracinos,
Que de si despejados
Os curraes deixão ja cheios de gados.
  Que sendo assi, te digo
Que não espero mais
Nesta para mi sempre ingrata terra.
Quem traz guerra comsigo
Entre seus naturais,
Não deve d'estranhar estranha guerra.
Sem mi de serra a serra
(O ceo assi o queira)
Logrem meus inimigos
Os valles e pacigos
Desta, donde nasci, fresca ribeira;
Na qual (se não m'engano)
Inda será chorado Limiano.
            ANZINO.
  Limiano, ja bem tenho entendido
Quanto sentes meu mal; mas eu te digo
Que o teu mal he de mi menos sentido.
  Ácerca de ficar hoje comtigo,
Farei pois (ja qu'assi nos detivemos)
Tudo o que tu quizeres, como amigo.
  E, pois o dia ja passado temos,
Vamos-nos mais chegando para o gado;
E lá nas outras cousas fallaremos.
  Todavia de funda e de cajado
Te vai apercebendo a som de guerra;
Que não foi tal pastor cá do ceo dado,
  Para não dar ao ceo tão larga terra.{268}

ECLOGA XII.

INTERLOCUTORES.

DELIO, ALCIDO, GALASIO.

          DELIO.
  Agora, Alcido, em quanto o nosso gado
Pasce diante nós manso e seguro,
Sentemos-nos aqui neste abrigado.
  Logremos este sol sereno e puro,
Que livre se nos dá, antes que venha
A noite fria com seu manto escuro.
  O rico com seu ouro lá se avenha;
Não se farta a cobiça co'a riqueza:
Mais arde o fogo quando t~ee mais lenha.
  Com pouco se contenta a natureza.
Quem isto bem olhasse, certifico
Que não fugisse tanto da pobreza.
  O sol tambem m'aquenta, como ao rico;
A fonte ágoa me dá, fructos a terra:
Com pouco mantimento farto fico.
  Ah! que a má vaidade nos faz guerra!
(Para que gasto tempo em mais palabras?)
Os olhos da razão esta nos cerra.
  Alcido, tens ovelhas, e tens cabras,
De que tiras da lãa, tiras do leite;
E não te faltão campos em que labras.
  Inda tu queres mais? Amigo (eu hei-te
De fallar claro e sem lisongerias:
Não hajas medo tu, qu'eu as affeite){269}
  Tu cantavas amor, amor tangias;
Faltava a tua frauta; agora he muda:
Que mal te mudou tanto em poucos dias?
            ALCIDO.
  Muda-se a idade, Delio; e se se muda
Com ella a condição, nada m'espanto;
O gôsto m'ajudou, ja não m'ajuda.
  Se ja cantei amor, se amor não canto,
Culpas do tempo são, que vai mudando
O meu cantar alegre em triste pranto.
  O tempo, que tão leve vai voando,
Delio, não torna mais; e assi fugindo,
Mil claros desenganos nos vai dando.
  Pouco a pouco se veio descobrindo
O mal d'huma esperança vãa e incerta,
Que me deixou chorando, e foi-se rindo.
  Quem nasce sem ventura, ou quem acerta
De fazer fundamento em peito alheio,
De mil contas que faz nenhuma he certa.
            DELIO.
  Pois se isso entendes tu, donde te veio
Sentir tão de verdade as sem-razões,
Não sendo d'outra cousa o mundo cheio?
            ALCIDO.
  Não queres tu que sintão corações
Obrigados com dor a sentimento,
Vendo a razão vencida d'affeições?
            DELIO.
  Emfim, todas as cousas querem tento:
Encobre a dor, e guarda-te d'extremos;
Que sempre trazem arrependimento.{270}
  Ao nosso doce canto nos tornemos:
Das nossas Nymphas, bellas inimigas,
Crueza e formosura celebremos.
            ALCIDO.
  Como cantarei eu novas cantigas
Em terra tão esteril, cheia d'ira,
Que nega flores, e que nega espigas?
  Pendurei n'hum salgeiro a minha lira:
Ouvi-la ao som do vento he h~ua mágoa:
Em lugar de tanger, geme e suspira.
  A Amarilia pintei, pintada trago-a
Aqui neste meu seio, e tambem chora:
Seus olhos me dão fogo, os meus dão-lhe ágoa.
  Mas vejo vir Galasio.
            DELIO.
                        Venha embora.
Galasio, queres tu cantar comigo?
            GALASIO.
  Eu nunca me roguei: menos agora.
            DELIO.
  Cantaremos d'Amor cruel imigo,
Ou brando e amoroso, em razão pôsto,
Tyranno e cego, e cego até comsigo?
            GALASIO.
  Cada qual cante do que for seu gôsto;
Quer mimos, quer rigores d'Amor fero;
Ou d'olhos verdes cante, ou d'alvo rosto.
            ALCIDO.
  Em quanto vós cantais, recolher quero
O gado; que são horas de ordenhar:
Á noite na malhada vos espero.{271}
            GALASIO.
  Isso não: has d'ouvir para julgar
Qual de nós melhor canta e melhor sente.
            DELIO.
  Eu ja não cantarei, sem apostar.
  Aposto o meu rafeiro, que Valente
Se chama, e com razão; que o lobo affasta,
Se não cantar mais branda e docemente.
            GALASIO.
  Hum cervo manso aposto.
            DELIO.
                          Isso não basta:
Põe mais hum par da cabras.
            GALASIO.
                             Deos me guarde;
Porque, Delio, este gado he da madrasta.
            ALCIDO.
  Fazeis-me vós juiz? Quereis que aguarde?
Ora cantae sem preço e sem inveja;
E seja logo, porque ja he tarde.
            DELIO.
  Learda minha, branca mais que a neve,
E muito mais corada que a grãa fina;
S'inda Amor a vencer-te não se atreve,
Que fara quem d'Amor por ti se fina?
Eu morro; e tu meu mal julgas por leve?
Não vês tu como ja me desatina?
Ai triste! que me vem valles e montes,
Regados de meus olhos feitos fontes.
            GALASIO.
  Marfida, branca mais que o branco leite;{272}
Vermelha muito mais que a rosa pura;
Assi descuido em ti nunca suspeite,
Assi me trates inda com brandura;
Que a cabana, que a vida e a alma engeite
Por ti, quando tu mais que marmor dura.
Testimunhas serão montes e valles,
A quem dou larga conta de meus males.
            DELIO.
  Quando a minha Learda desencolhe
Os seus cabellos d'ouro, longo, ondado,
O sol, de pura inveja, se recolhe,
Corrido de se ver menos dourado.
Livre pastor não ha, que bem os olhe,
Sem se achar logo nelles enlaçado.
Ai! não soltes, Learda, os teus cabellos,
Pois tanto prendem quantos ousão vellos.
            GALASIO.
  Os tristes corações se tornão ledos,
Ouvindo de Marfida o doce canto;
Os furiosos ventos estão quedos;
Não guia o claro sol seu carro em tanto.
Converte-se a dureza dos penedos
Em brando amor: Amor desfaz-se em pranto,
Vencido dessa voz, doce Marfida;
Mas tu nunca d'Amor foste vencida.
            DELIO.
  O campo de verdura vejo pobre;
O ceo chuivoso sempre, e turvo o rio;
Da sua leve folha a terra cobre
O bosque, que foi ja verde e sombrio.{273}
Mas se Learda o rosto seu descobre,
Logo desapparece o tempo frio:
Comsigo a primavera traz Learda.
Ai quem a visse ja! Ai quanto tarda!
            GALASIO.
  A triste Progne ja despareceo;
A toda flor o frio foi imigo;
A doce Philomela emmudeceo,
Rouca de lamentar seu mal antigo.
Mas venha por aqui quem me venceo
Com hum só volver d'olhos; qu'eu m'obrigo,
Que as aves tornem logo a seus amores,
E os campos se matizem de mil flores.
            DELIO.
  A viva chamma, aquelle vivo ardor,
Que brando sinto ja pelo costume,
De noite dá de si tal resplandor,
Que os pastores vem delle a tomar lume.
Pasmados ficão, vendo em mi d'amor
O fogo, que me queima e não consume:
E tu, por quem eu ardo noite e dia,
Quando vês tal ardor ficas mais fria!
            GALASIO.
  Eu sempre chóro, e tanto ja chorei,
Vencido da grã dor que n'alma tinha,
Que mil vezes de lagrimas fartei
Meu gado, quando a fonte a buscar vinha.
Chorando as duras pedras abrandei;
Mas nunca a ti, cruel imiga minha,
Que, vendo que por ti m'estillo em ágoa,
Nenh~ua mágoa tens de minha mágoa.{274}
            DELIO.
  Quando vires, Learda, o nosso Lima,
Que lá vai de meu chôro acompanhado,
Tornar com suas ágoas para cima,
De seu curso esquecido, costumado;
Então embora julga, então estima
Que tenho n'outra parte o meu cuidado.
Mas deixarão os rios de correr,
Primeiro que deixe eu de te querer.
            GALASIO.
  Estas serras, Marfida, por certeza
De minha firme fé só quero dar-te:
Quando com espantosa ligeireza
Daqui correr as vires a outra parte,
Então cuida que falta em mi firmeza,
Qu'então deixarei eu, meu bem, de amar-te.
Mas mudar-se daqui bem podem ellas,
E eu não mudar de mi graças tão bellas.
            ALCIDO.
  Se esta vontade minha não deseja
A vossos versos dar justos louvores,
Hora nunca na vida alegre veja.
  Acceitae meu desejo, meus pastores:
Mais vos não póde dar quem traz o esprito
De todo entregue a damnos, mágoas, dores.
  Mas porque dê de vós público grito
A leve fama, como vêdes, deixo
O vosso canto e o meu juizo escrito
  No liso tronco deste verde freixo.
Delio neste lugar doce cantou
Com Galasio, que doce respondia:{275}
Hum Learda, Marfida outro louvou,
Com inveja de qual melhor diria.
Alcido, que o seu canto bem notou
Por ver quem a victoria levaria,
Como livre juiz, deo por sentença,
Que não havia entr'elles differença.

ECLOGA XIII.

Phyllis.

Pascei, minhas ovelhas: eu, em quanto
Aquelle passarinho canta ou chora,
Chamarei Corydon com triste pranto.
  Se entre vós, bellas plantas, amor mora
(Plantas, ja vós amastes) tende mágoa
De mi, pois que m'ouvis queixar agora.
  Ai cruel Corydon! cruel a frágoa
Em que vivo por ti! Não tens piedade
Dever meu peito fogo, os olhos ágoa?
  Ja não amas a Phyllis? Ah crueldade!
Ai triste! E que farei? Em poucos dias
Mudaste tu de mi tua vontade.
  A Phyllis ja deixaste, a quem trazias
No formoso verão formosas fruitas,
Sinal do grande bem que me querias?
  Sabes, cruel, que tenho causas muitas
Para te convencer, de que queixar-me;
Por isso vás fugindo e não me escuitas.{276}
  Puderão os teus rogos abrandar-me:
Os meus (triste de mi!) mais te endurecem.
Ja não acho em que possa confiar-me.
  Aquelles doces versos ja t'esquecem,
Que tu nos lisos álamos cortavas,
Onde com teus enganos inda crescem?
  Arder por meu amor nelles mostravas:
Eu, crendo que era assi, não entendia
Quanto fingiste amar, quão pouco amavas.
  Tristes meus fados forão, triste o dia
Em que nasci: coitada de mi triste,
Qu'em mágoa se tornou minha alegria!
  Logo que a tua Galatêa viste,
Vi eu deste meu mal grandes agouros;
E tu da parte esquerda hum corvo ouviste.
  E não t~ee Galatêa mais thesouros,
Nem t~ee mais formosura, inda que seja
Ou d'alvo rosto, ou de cabellos louros.
  Á negra violeta t~ee inveja
O branco lirio, porque tal não tem
O cheiro, que vencido não se veja.
  Tityro arde por mi; Tityro, a quem
Mil Nymphas dão capellas de mil flores;
Mas elle a mi só chama, a mi quer bem.
  Eu desprézo por ti muitos pastores,
E tu por Galatêa me desprezas!
Tal pago dás, cruel, a meus amores?
  Em que te mereci tantas cruezas,
Quantas usas comigo? Por ventura
Usei comtigo d'ira, ou d'asperezas?
  Prouvera a Deos que tão isenta e dura{277}
Me víras para ti, que nunca víras
Em mi sinal d'amor, ou de brandura!
  S'eu fugíra de ti, tu me seguiras;
Por mi ardêras, não por huma ingrata,
Por quem choras em vão, em vão suspiras.
  Bem me vinga de ti, pois te maltrata:
Mas eu te quero tanto, que desamo
(Por mais que tu me mates) quem te mata.
  Respondem-me estes montes, quando chamo
Por ti com triste voz; Ecco responde
Das lagrimas, movida, que derramo.
  E tu não me respondes, nem sei onde
Te leva esse desejo; mas bem sei
Que amor e desamor de mi t'esconde.
  Ai triste Phyllis! triste! Onde acharei
Remedio a tanto mal? O fogo puro
Em que m'abrazo, com que abrandarei?
  Ja fugíra daqui por mais que duro
Fosse o deixar o ninho em que nasci:
Mas não ha contra Amor lugar seguro.
  A morte só (mil vezes isto ouvi
Á nossa Celia) por remedio espere
Aquelle que a Amor fez senhor de si.
  Então, porque de todo desespere,
Este cego, a quem cegos nós seguimos,
A mi por ti, e a ti por outra fere.
  S'eu morrêra no ponto em que nos vimos,
Não víra tanto mal. Mas que da sua
Sorte fugisse alguem, nós nunca ouvimos.
  Eu me queixo de ti, e tu da tua
Galatêa te queixas; e não vês{278}
Que mais piedosa te he, quando mais crua.
  Sendo tu tão cruel, (tão cego es!)
Queres achar piedade? Como queres
Que te creião teu mal, se o meu não crês?
  Qu'eu viva com pezar, tu com prazeres,
Não quer o justo Ceo. Ou ambos tristes,
Ou ledos ambos, si: mais não esperes.
  Selvas, que n'outro tempo nos cobristes
Com frescas sombras lá do ardor de cima,
Dizei, se a Corydon dizer ouvistes:
  Primeiro ha de tornar o brando Lima
As ágoas de crystal á fonte clara,
Que no meu peito novo amor s'imprima.
  Primeiro qu'eu te deixe, Phyllis chara,
Me ha de deixar a mi a propria vida.
Mas quem, por não deixar-te, a não deixára!
  Pois tu, Phyllis, ma dás, eu offrecida
A tenho a teu querer; tu della ordena
Como, doce amor meu, fores servida.
  Por ti me será branda a dura pena;
Por ti suave a dor, leve o tormento,
A que m'inclina o fado, ou me condena.
  Ah falso Corydon! teu pensamento
Era enganar-me: dada a fé me tinhas;
E a fé co'as palavras leva o vento.
  Mas (ai triste de mi!) tambem as minhas
O vento vai levando. O sol he pôsto.
Porque, ligeira luz, te não detinhas,
  Em quanto em meu queixume achava gôsto?{279}

ECLOGA XIV.

INTERLOCUTORES.

ERGASTO, DELIO, LAURENO.

            ERGASTO.
  Agora, ja que o Tejo nos redeia,
Neste penedo, donde mansamente
Murmurando se quebra a branda veia,
  Espera, Delio, até que do Occidente
D'azul deixe a ribeira matizada
O sol, levando o dia a outra gente.
  Entretanto daqui verás pintada
A praia de conchinhas d'ouro e prata,
E a ágoa dos mansos sopros encrespada.
  Verás como do monte se desata
A vagarosa fonte por penedos,
Que pouco a pouco cava e desbarata;
  E como move os frescos arvoredos
Favonio, que de flores pinta o prado;
E como s'estão rindo os campos ledos.
  Ditoso o que do Ceo foi tão amado,
Que no campo alcançou passar a vida,
Livre de pena, livre de cuidado.
  O rouxinol na vara, que vestida
De verdes folhas, sombra faz ao rio,
Lhe canta o doce verso sem medida.
  Agora ao pé d'hum alamo sombrio
Vê como dous carneiros s'offerecem,{280}
Os cornos inclinando, a desafio.
  Como ao que vence todos obedecem
E folgão de o ver fóra de perigo;
E outros com face esquiva o aborrecem.
  Ditoso aquelle, que co'o ferro antigo
Lavra os campos do pae, e se contenta,
Nos seus mólhos atando o louro trigo!
  Este a furia do mar não exprimenta,
Nem corre, por achar a pedra rica,
A estranha praia, que outro sol aquenta.
  Onde, quando a esperança o fortifica
Em adquirir mais ouro e mais riqueza,
Ouro, esperança, e vida a muitos fica.
  Este vive quieto na pobreza;
E deste confiarei que a anteponha
A quanto o mundo mais procura e préza.
  Comendo em mesa vil, não s'envergonha:
Antes bebe nas mãos a fonte pura,
Qu'em precioso metal cruel peçonha.
  Oh feliz tempo d'ouro! Ind'aqui dura,
Inda conversa aqui com os humanos
A Justiça, fugindo á gente impura!
  Quem visse bem tão claros desenganos,
E quanto mal nos vicios se apparelha,
No campo gastaria bem os anos.
  Ao dia a nossa vida se assemelha,
Porque quando no mar o sol se banha
Se costuma tingir de côr vermelha.
  Assi, se olharmos bem, sempre se ganha
Lá no occaso da mal gastada vida
Rubicunda vergonha em mágoa estranha.{281}
            DELIO.
  A gloria, Ergasto meu, qu'he possuida,
Nunca sabe de nós ser tida em preço:
Só despois que se perde he conhecida.
  E desta vida os bens, qu'eu não mereço,
Quando os perco e o mal da outra ja m'espera,
Com grandes mágoas d'alma os reconheço.
  Oh se em ditosa sorte me coubera
Por favor ou destino das estrellas,
Qu'entre pastores, eu pastor vivêra!
  Muitas vezes t'ouvira as luzes bellas
Cantar da linda Nise, nas quaes arde
Teu peito, sempre ufano d'arder nellas.
  Buscae pastor, ovelhas, que vos guarde;
Que o Ceo não quer qu'eu mais vos guarde e conte,
E despois vos recolha, sôbre a tarde.
  Nãovos verei saltar junto da fonte,
Cabras minhas, ja meu querido gado,
Nem da rocha pender no verde monte.
            ERGASTO.
  Consente agora, ó Delio, que chorado
Em triste verso seja apartamento,
Que assi me deixa triste e magoado.
            DELIO.
  Não: que se dobrará meu sentimento.
Mas se queres, Ergasto, que m'esqueça
Partida, que lembrada he só tormento,
  Canta aquelle Soneto, que começa:
Quantas vezes do fuso s'esquecia.
Que digas hum dos teus, não sei se o peça.{282}
            ERGASTO.
  Se com m'ouvir, a dor se te allivia,
Eu o direi. Mas eis cá vem Laureno,
Que a cantar vezes mil me desafia.
  Cantando venceo ja Tityro e Almeno:
E eu, inda que sei certo ser vencido,
Apostar a cantar com elle ordeno.
            LAURENO.
  Ergasto, pois o tempo se ha offrecido,
Celebremos amor e formosura,
Emquanto o gado á sombra está acolhido.
            ERGASTO.
  Postoque ja a victoria tens segura,
Não cantarei sem preço, porque saia
Mais ledo quem cantar com mais brandura.
            LAURENO.
  Eu hum vaso porei de lisa faia,
Divina obra de Alceo, que celebrado
Será sempre por claro nesta praia.
  A vide, de que em roda está cercado,
Os roxos cachos cobre; e primor teve
Em pôr no meio a Dama e Pan cansado.
  Parece que a beija-la o deos se atreve,
E que ainda dos beijos mal soffridos
Inclinado lhe foge o tronco leve.
            ERGASTO.
  Outro vaso porei d'hera cingido,
No qual Orpheo das aves esquecidas
E dos suspensos bosques he seguido.
  Não cuido que de faia são sahidas
De tal arte, lavor de tal maneira:{283}
Tambem obra he d'Alceo, das mais polidas.
  Esta, das que me deo, foi a primeira;
Que a dar-ma o velho Alcido emfim s'abranda,
Ouvindo-me cantar nesta ribeira.
  Ouvio-m'então, estando desta banda;
E dando-ma, dizia-me: Este seja
O premio, Ergasto, dessa Musa branda.
            LAURENO.
  Delio o nosso cantar pondere, e veja
Qual dos dous a voz dá mais docemente;
Que huma tal causa tal juiz deseja.
            DELIO.
  Se o meu juizo cada qual consente,
Tu, Ergasto, ao doce canto dá comêço;
Tu responde, Laureno, juntamente:
  E eu fico que nenhum perca o seu preço.
            ERGASTO.
  Alcida, que na côr o leite puro,
E a rosa da manhãa deixas vencida,
Culpa he dos olhos teus, nelles o juro,
Est'amor de qu'estás tão offendida.
Castiga-os com me verem; qu'eu seguro
Que a vingança será delles sentida:
Nem temas tu d'os meus alegres serem,
Vendo tristes taes olhos por me verem.
            LAURENO.
  Violante minha, cuja côr iguala,
Mas antes vence os cravos, vence a neve;
Desta dor, que atéqui minha alma cala,
Teu amoroso riso a culpa teve.
Se só por viver della e por amá-la,{284}
Julgas que algum castigo se me deve,
A ver-te sempre rindo me condena,
Pois crescendo o amor mais, mais cresce a pena.
            ERGASTO.
  Com a mãe, que maçãas colhendo andava,
Inda pequena, a bella Alcida vinha:
Eu os ramos da terra ja tocava,
Ja facil para amar o tempo tinha.
Não sei que fogo ou neve se passava
Daquelles olhos seus a est'alma minha,
Que me deixárão pôsto em tal extremo,
Que até de cuidar nelles ardo e tremo.
            LAURENO.
  No bosque a Violante vi hum dia,
Doce princípio destas doces dores;
A flor cahia nella, e parecia
Dizer cahindo: Aqui reinão amores.
Humilde em tanta gloria ella se ria,
E errando hião sôbre ella as várias flores:
Eu, que vencido fui d'hum error cego,
Áquelle honesto riso est'alma entrego.
            ERGASTO.
  Pastores deste bosque, que buscais,
Anoitecendo, o lume por costume;
Chegae a mi; qu'eu fico, se chegais,
Que destes meus suspiros leveis lume.
Accesos sahem d'alma os doces ais
No ardor, que pouco a pouco me consume;
Mas nem as chammas, qu'em suspiros deito,
Accendérão jamais hum frio peito.{285}
            LAURENO.
  Pastores, que buscais na sombra amada
A fonte, por fugir o ardor do estio,
Vinde a mi, porque d'ágoa destillada
Por meus olhos, se sólta hum largo rio;
Tal, que a sêde d'Amor nunca apagada,
Fartá-la ja de lagrimas confio.
Mas com chôro de tanta quantidade
Não movo aquelles olhos a piedade.
            ERGASTO.
  Se quando a minha Alcida est'alma visse
Nos meus olhos, d'Amor tão maltratada;
Se quando a grave dor fóra sahisse
Entre suspiros mil rôta e quebrada,
Sequer com brandos olhos m'admittisse,
Ficando de vergonha mais córada;
Ditoso fôra, vendo-a, juntamente
Com ser mais bella, deste amor contente.
            LAURENO.
  Se á vista de Violante derramadas
As lagrimas d'amor, que vive nellas,
Tal fôrça lhe fizessem, que orvalhadas
Lhe ficassem de dor ambas estrellas,
E as rosas entre a neve semeadas,
Co'o piedoso orvalho, inda mais bellas;
Ditoso me fizera. Hora ditosa,
Se a víra ser mais bella e ser piedosa!
            ERGASTO.
  Claros olhos, que ao sol fazeis inveja,
Que brandos vos mostreis ja vos não peço;
Mas que poder-vos ver paga me seja,{286}
Se por tamanho amor tanto mereço:
Armados d'esquivança então vos veja
Cheios d'hum não sei que, com que pereço;
Que doce me será tal esquivança.
Doce o morrer, qu'em olhos taes s'alcança!
            LAURENO.
  Olhos, que vos moveis tão docemente,
Que traz vós todo o mundo ides levando,
Eu não sei se tomais do ceo luzente
O movimento seu, se lho estais dando:
Sei certo (e não m'engano,) sei somente
Que a vós de mi minh'alma ides passando:
Mas não posso entender como deixais
Ao descuido o que vós em vós levais.
            ERGASTO.
  Por mais que a minha soberana Alcida
(Minha não, porque só sua belleza
Vem a ser minha em ser de mi querida)
Me trate vezes mil com aspereza;
Huma só vez que della acho admittida
Minha pequena vista na grandeza
Da luz do rosto seu, sinto tal gloria,
Que de todo o penar perco a memoria.
            LAURENO.
  Quando a minha mais que unica Violante
(Se minha póde ser a que he tão sua)
Aquella santa luz hum breve instante
Me deixa ver, por mais que a veja crua;
A vista tanto em mi vejo a diante,
Que não he muito, não, que m'attribua{287}
A soberba de ser hum'aguia nova,
Que do ceo no ôlho claro a vista prova.
            DELIO.
  Pastores, que alcançar pudestes tanto
Com vossa branda Musa, que ja nesta
Idade renovais o antigo canto;
  Para vosso louvor, que verso presta?
Qu'hera digna será? que louro dino
Qu'em premio a cada qual adorne a testa?
  Em parte paga Amor, se de contino
Por dentro a cada hum gasta os espritos,
Pois co'o divino canto o faz divino.
  Nós veremos por annos infinitos
Nos altos troncos destas faias bellas
Os nomes vossos por memoria escritos.
  De unicas flores mereceis capellas:
T~ee Alcida e Violante sós taes flores;
E, pois ellas as t~ee, dem-vo-las ellas.
  Os vossos premios recolhei, pastores:
Cada qual igualmente o seu merece;
E ambos d'Apollo os mereceis maiores.
  Recolhamos o gado; que anoitece.{288}

ECLOGA XV.

INTERLOCUTORES.

SOLISO e SYLVANO.

          SOLISO.
  De quanto alento e gôsto me causava
A vista da manhãa resplandecente,
Com que toda a tristeza s'alegrava;
  Que quando vinha o sol claro e luzente,
Bem claro então em mi se conhecia
Huma nova alegria differente;
  Tanto agora me offende o novo dia,
Vendo que me não mostra a formosura,
De que só me mantinha e só vivia.
  E não me quiz deixar triste ventura
Esperanças de mais tornar a vella!
Oh destino cruel! oh sorte dura!
  Oh querida Natercia! oh Nympha bella,
Em quem, emfim, mostrou a natureza
O mais que se podia esperar della!
  Se lá no assento da maior alteza
Te lembras de quem viste cá na terra,
Para te magoar sua tristeza;
  Lembre-te de contino a cruel guerra,
Que contínua me faz tua lembrança,
Esquecido do gado, valle e serra.
  Lembre-te que perdi a confiança
De ver os olhos teus, e juntamente{289}
De todo o bem d'Amor toda a esperança.
  Lembre-te que por ti de mi ausente
A crystallina fonte me he nojosa,
Com que ja n'outro tempo fui contente.
  Que por ti a manhãa clara e formosa
Males cada momento me accrescenta;
Sendo-me em outros dias deleitosa.
  Por ti o puro sol me descontenta;
Com seu canto m'offende a Philomella:
Mas, porque nelle chora, me contenta.
  Por ti, Natercia pura, Nympha bella,
Na verdura suave deste prado
Os males multiplico só com vella.
  Por ti não curo ja do manso gado:
Com o mesmo qu'então meu bem crescia,
Agora vai crescendo o meu cuidado.
  Não sou ja, ja não sou quem ser sohia;
Mudou-se-me a vontade co'a ventura;
Mudou-se co'os tormentos a alegria;
  Trocou-se o claro dia em noite escura:
Nem he muito que tudo se mudasse,
Pois se mudou a tua formosura.
  Não via outro reparo, que cuidasse
Poder aproveitar ao meu tormento,
Nem outra gloria alguma em qu'esperasse,
  Senão em quanto o triste pensamento
Se punha a contemplar tua beldade,
Sem lhe lembrar tão longo apartamento.
  Agora que me falta a claridade,
Que de ver-te a minha alma recebia,
Ficando-me só della a saudade;{290}
  Qual ficará hum'alma, que sabía
Somente desta gloria contentar-se?
Gloria de que gozar não merecia!
  Qual poderá ficar quem com lembrar-se
Mortalmente do bem qu'he ja passado,
Só t~ee por melhor vida á morte dar-se?
  E qual se póde ver quem hum cuidado
Sostem, que he só da dor certa morada,
E nelle vive só desesperado?
  Qual ha de ver-se, ó Nympha delicada,
Hum'alma que te via; e em te vendo
O fio lhe cortou a Parca irada?
  A causa deste mal eu não a entendo:
Só entendo que, perdida essa luz pura,
Por perdida a não ver, vivo morrendo.
  Vejo que me roubou fortuna escura
Hum bem por quem meu mal me contentava:
Lembra-te tu de tanta desventura.
  Lembra-te tu, que só de ti'sperava
Remedio aos males meus; e então verás
Qual ficou quem em ti só confiava.
  Lembre-te adonde estou, adonde estás,
E que tudo sem ti cá m'aborrece:
Dest'arte o estado meu entenderás.
            SYLVANO.
  Não sei por que razão nos amanhece
Este dia dos outros differente,
Com que toda a alegria s'entristece.
  O manso gado vejo, que contente
Buscando hia nos campos a verdura,
E dos rios a limpida corrente:{291}
Agora triste errar pola espessura,
Alheio d'herva verde e d'ágoa fria;
Sinal d'alguma grande desventura.
  Suspensa está das aves a harmonia;
E em certo modo mostra que lá chora
A mesma sequidão da penedia.
  A candida, rosada, bella aurora,
Que sempre os altos montes vem dourando,
Com hum pallor mortal se mostra agora.
  Está-se nestas hervas enxergando
Tão triste côr, que della se conhece
Que algum mal se nos vai apparelhando.
  Emfim, vejo que tudo s'entristece;
A causa ignoro. O ceo piedoso queira
Que menos seja o mal, do que parece.
  Porque, desde que habíto esta ribeira,
Não m'acórdo de a ver tão carregada,
Nem de a ouvir murmurar desta maneira.
  Não m'acórdo que visse outra alvorada
Tão confusa sahir, como esta vejo,
De profunda tristeza acompanhada.
  Agora aqui tomára quem sem pejo
A causa, se a soubesse, m'ensinasse,
Para satisfazer a meu desejo.
  Porque não posso eu crer que resultasse
D'alguma baixa causa hum tal effeito,
Que até nos duros montes se enxergasse.
  O coração cá dentro no meu peito
M'assegura, que tanta novidade
Não traz a origem de commum respeito.
  Mas, por entre a confusa claridade,{292}
Lá vejo vir Soliso com seu gado:
Delle espero entender toda a verdade.
  Mas não posso cuidar neste cuidado,
Que nos olhos não mostre onde me chega
A dor de o ver de dores traspassado.
  Mas aquelle, que a Amor cruel s'entrega,
Não he muito que passe hum tal tormento;
Porque todo mal dá, todo bem nega.
  Em quanto este pastor o pensamento
Logrou, sem qu'em amores o empregasse,
Senão só em buscar contentamento;
  Festa não se fazia em que faltasse
A sua frauta, qu'elle assi tangia,
Que outra nunca se ouvio que lhe igualasse.
  Ja agora não he aquelle que sohia;
Vejo-o na condição todo mudado;
Mudada tambem delle está a alegria.
  Não cura ja do seu querido gado;
Aborrecem-lhe as plantas, hervas, flores;
Aborrece-lhe a gente e o povoado.
  Não lhe lembrão as festas dos pastores;
Apartando se vai pola espessura,
Enlevado somente em seus amores.
  Contenta-se da noite triste e escura;
Odio t~ee com o sol puro e luzente.
Quem vio nunca tamanha desventura?
  Com esta vai passando tão contente,
Que diz que, quando o mal mais o atormenta,
Se gôsto sentirp óde, então o sente.
  Neste bosque huma Nympha se aposenta,
Por quem elle na vida anda morrendo;{293}
E he causa desta dor que lhe contenta.
  E segundo o que delle agora entendo,
Se a vista não m'engana o pensamento,
Ou de vãa phantasia estou pendendo;
  Quando fôra maior o grão tormento,
Que Soliso padece, não pudera
Igualar-se com seu merecimento.
  Quero chegar-me a elle, em quanto espera
Que vá descendo o vagaroso gado:
Saberei delle o que saber quizera.
  Venho, Soliso, a ti com hum cuidado,
Que todo m'entristece; e com grão medo
De grão mal sôbre nós inopinado.
  Vês tu como está agora este arvoredo
Triste e pezado, lugubre e sombrio?
Como o vento parece que está quedo?
  Vês a commum corrente deste rio
Que ora tanto se pára, ora anda tanto,
Deixando de seu curso o certo fio?
  Vês como a Philomella deixa o canto,
Com que incita os pastores namorados,
E multiplica Progne o triste pranto?
  E vês, emfim, por todos esses prados
Desmaiadas as hervas, que sohião
Viçoso pasto dar aos nossos gados?
  Todos estes sinaes, que não se vião
Nas Auroras a esta antecedentes,
Algum damno mortal nos annuncião.
  Eu não sinto o que seja: se o tu sentes,
Não te seja o dizer-mo mui penoso;
E entenderei por ti taes accidentes.{294}
            SOLISO.
  N'outro tempo me fôra deleitoso
Por extremo, Sylvano, gôsto dar-te;
Mas todo gôsto agora me he nojoso.
  Bem quizera poder communicar-te
A causa deste horror; mas antes quero
Anojar-me a mi proprio, que anojar-te.
  Porém ja sinto o fado tão severo,
Que quanto mais me ponho a declará-lo,
Mais então d'entendê-lo desespero.
  E se acaso o entender para contá-lo,
Se quero começar, quer a ventura
Á fôrça de soluços atalhá-lo.
  Que despois que me falta a formosura
Daquella illustre Nympha, que contente
Pudera bem fazer a noite escura,
  Foi-me faltando o esprito juntamente:
Em suspirar só gasto a noite e dia,
Sem me fartar de ver-me descontente.
            SYLVANO.
  Novidade maior em mi sería
O espantar-me de ver-te estar queixando,
Que o ver em ti desejos d'alegria.
  Responde-me ao que t'hia perguntando
Da causa desta singular tristeza:
Não gastes todo o tempo lamentando.
            SOLISO.
  Sempre em ti conheci huma dureza,
E austera inclinação, que bem declara
Quão conforme he teu nome á natureza.
  Porque se o meu tormento t'alcançára,{295}
O mor bem para ti o mor mal fôra;
E todo o mal maior te contentára.
  Deixa que chore quem com gôsto chora:
Deixa-me lamentar meu triste fado;
Que a hum triste a hora de chôro he melhor hora.
  Tu não trazes agora outro cuidado
Mais que buscar no valle a sombra fria,
Quando te offende o sol mais empinado.
  Coitado de quem passa a noite e dia
Porfiando em morrer, e a sorte dura
Em fugir-lhe co'a morte só porfia!
  Oh formosa Natercia! a excelsa altura
Do glorioso Olympo andas pizando;
E eu ausente da tua formosura!
            SYLVANO.
  Qu'he isso, que do ceo estás fallando?
Parece-me que ja não es Soliso,
Ou que de puro amar vás delirando.
            SOLISO.
  Quem ja perdeo aquelle doce riso,
Que siso produzia e dava vida,
Não he muito que perca a vida e siso.
            SYLVANO.
  Declara-me que cousa tens perdida,
De que tanto te queixas; que ao que sento,
Natercia destes valles he partida.
            SOLISO.
  Quão livre falla aquelle que o tormento
Alheio vê de fóra, mas não sente
Onde chega tamanho sentimento!
  A gloria qu'eu perdi não me consente{296}
Palavras naturaes, razões expertas,
Que possão declarar a dor presente.
  Mas nesse teu error vejo que acertas;
Porque com nenhum mal deve turbar-se
Quem só delle esperanças logra certas.
            SYLVANO.
  A quem, Soliso meu, de declarar-se
Com outro em casos taes falta vontade,
Nunca faltão razões para escusar-se.
  Não sei donde te vem tal novidade;
Pois negando-me agora o que te peço,
Suspeito que me negas a amizade.
  Se pola que te guardo te aborreço,
Sabe que só hum cego entendimento
Ás amizades faz perder o preço.
  Eu te deixarei só com teu tormento;
Mas não sem dor de ver que tanto a peito
Tomes hum tão damnoso pensamento.
            SOLISO.
  Outra he, certo, a razão, outro o respeito
Que negar-te me fez o que pedias:
Não creias que de ti tão mal suspeito.
  Bem sei que o meu descanso pretendias;
E a mesma confiança faz negar-te
O que destes sinaes saber querias.
            SYLVANO.
  Não queiras mais, Soliso, prolongar-te;
Pois pende o gôsto meu da tua vida:
Se corre risco, dá-me delle parte.
            SOLISO.
  De todo a sinto ja desfallecida{297}
Nas lembranças daquella breve historia,
Que foi para meus males tão comprida.
  Ja me vence a tristissima memoria
Da gloria que presente me animava.
Quem pudera voar traz tanta gloria!
  Natercia qu'estes montes alegrava,
E que á casta Diana fez inveja,
E que com sua vista o sol cegava;
  Aquella a quem render-se só deseja
Aquelle que de bella mãe presume,
E a quem as armas dá com que peleja;
  Natercia, que no mundo foi hum lume,
Onde a belleza de maior estado
Incendios aprendia por costume;
  Natercia, por quem ando acompanhado
De mágoa tal, que só da morte dura
Espero o feliz fim de meu cuidado;
  Ao ceo se foi co'aquella formosura,
Qu'era mostra do ceo, gloria da terra;
Qu'era o sogeito mor da mor ventura.
  Ja não fara no prado ás almas guerra
Com a vista, senão com a lembrança;
Guerra em que o damno mais cruel s'encerra.
  Ja de vê-la não tenhas esperança;
Qu'esta vida trocou de mal cercada
Por outra, em que do bem não ha mudança.
  E a causa vês aqui de que a alvorada
Visses desta manhãa tão differente
De outra qualquer, de ti mais ponderada.
  Dizer-te o mais não posso, porque sente
Est'alma no que disse tal tormento,{298}
Qu'esta memoria apenas me consente.
  O espirito ja debil, sem alento,
No pouco que te tenho referido,
Nas azas se sostem do pensamento.
  Oh mundo! qual he aquelle tão perdido,
Qu'em ti crê, qual aquelle tão insano,
Vendo-te todo em damno instituido?
  Deixas passar hum gôsto d'anno em ano,
Porque, com nosso opprobrio e tua gloria,
Nos faças mais patente o teu engano.
  Sempre assi vai comtigo a mor victoria,
Deixando-nos somente por herança
D'hum possuido bem triste memoria.
  Quem faz de ti alguma confiança,
Sabendo ja que quem de ti confia,
D'hum engano penoso emfim se alcança?
  Aquelle da belleza novo dia
Cegaste, quando mais resplandecente
Triumphos mil d'Amor nos promettia.
  De qual tigre cruel peito inclemente
Não se rompe de mágoa, morta aquella,
Que a tristeza mil vezes fez contente?
  Quem, que vê eclipsada a vista bella,
Despois de visto haver sua beldade,
E não sabe morrer por hir traz ella?
  Como não te applacou tão tenra idade
Ao cortar do seu fio, ó Parca dura,
Que agora o mundo matas de saudade?
  Deixae, deixae, pastores, a verdura;
As frautas deixae ja, e os mansos gados;
E chorae todos vossa desventura.{299}
  E vós, sylvestres Faunos namorados,
Tambem chorar podeis, pois ja perdêrão
O objecto mais gentil vossos cuidados.
  Nymphas, a quem os deoses concedêrão
Destes sagrados bosques a morada,
E em quem tamanhas graças escondêrão;
  Se aquella piedade costumada,
De que mais vos prezais, não esquecestes,
Que sempre foi de vós tão venerada;
  Se ja d'alheio damno vos doestes,
Do vosso proprio vos doei agora,
Pois com Natercia todo o bem perdestes.
  Oh Naiades! das ágoas sahi fóra;
E de vós ágoa saia em mal tão forte,
Pois de vê-lo tambem o monte chora.
  Oh Napêas! chorae a triste sorte
Dos miseros pastores, a quem nega
O fado por mais pena o mortal córte.
  Oh Dryas! vós, a quem Amor s'entrega,
Tomae todo o cuidado deste pranto,
Pois sabeis onde a causa delle chega.
  Deixae, ó Amadryas, entretanto
As plantas que guardais, por ajudar-me,
Pois deixa a Philomella o doce canto.
  E vós, ó vida minha, pois curar-me
Ja não podeis, deixae-me juntamente,
Porque lembranças taes possão deixar-me.
  Mas se dellas morreis, morro contente.{300}