Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II

ODES.

ODE I.

Detem hum pouco, Musa, o largo pranto
Que Amor te abre do peito;
E vestida de rico e ledo manto,
Demos honra e respeito
Áquella, cujo objeito
Todo o mundo allumia,
Trocando a noite escura em claro dia.
  O Delia, que a pezar da nevoa grossa,
Co'os teus raios de prata
A noite escura fazes que não possa
Encontrar o que trata,
E o que n'alma retrata
Amor por teu divino
Raio, por qu'endoudeço e desatino:
  Tu, que de formosissimas estrellas
Corôas e rodeias
Tua candida fronte e faces bellas;
E os campos formoseias
Co'as rosas que semeias,
Co'as boninas que gera
O teu celeste humor na primavera:
  Para ti guarda o sítio fresco d'Ilio{361}
Suas sombras formosas;
Para ti o Erymantho e o lindo Pylio
As mais purpureas rosas;
E as drogas mais cheirosas
Desse nosso Oriente
Guarda a felice Arabia mais contente.
  De qual panthera, ou tigre, ou leopardo
As asperas entranhas
Não temêrão teu fero e agudo dardo,
Quando por as montanhas
Mais remotas e estranhas
Ligeira atravessavas,
Tão formosa que a Amor d'amor matavas?
  Pois, Delia, do teu ceo vendo estás quantos
Furtos de purídades,
Suspiros, mágoas, ais, musicas, prantos,
As conformes vontades,
Humas por saudades,
Outras por crus indicios
Fazem das proprias vidas sacrificios:
  Ja veio Endymião por estes montes
O ceo, suspenso, olhando,
E teu nome, co'os olhos feitos fontes,
Em vão sempre chamando,
Pedindo (suspirando)
Mercês á tua beldade,
Sem que ache em ti hum'hora piedade.
  Por ti feito pastor de branco gado
Nas selvas solitarias,
Só de seu pensamento acompanhado,
Conversa as alimarias,{362}
De todo Amor contrárias,
Mas não como ti duras,
Onde lamenta e chora desventuras.
  Das castas virgens sempre os altos gritos,
Clara Lucina, ouviste,
Renovando-lhe as fôrças e os espritos:
Mas os daquelle triste,
Ja nunca consentiste
Ouvi-los hum momento,
Para ser menos grave o seu tormento.
  Não fujas, não de mi! Ah não t'escondas
D'hum tão fiel amante!
Ólha como suspirão estas ondas,
E como o velho Atlante
O seu collo arrogante
Move piedosamente,
Ouvindo a minha voz fraca e doente.
  Triste de mi! Qu'alcanço por queixar-me,
Pois minhas queixas digo
A quem ja ergueo a mão para matar-me,
Como a cruel imigo?
Mas eu meu fado sigo,
Que a isto me destina,
E qu'isto só pretende e só m'ensina.
  Oh quanto ha ja que o Ceo me desengana!
Mas eu sempre porfio
Cada vez mais na minha teima insana.
Tendo livre alvedrio,
Não fujo o desvario;
Porque este em que me vejo
Engana co'a esperança o meu desejo.{363}
  Oh quanto melhor fôra que dormissem
Hum somno perennal
Estes meus olhos tristes, e não vissem
A causa de seu mal
Fugir, a hum tempo tal,
Mais que d'antes proterva,
Mais cruel que ursa, mais fugaz que cerva!
  Ai de mi, que me abrazo em fogo vivo,
Com mil mortes ao lado;
E quando morro mais, então mais vivo!
Porque t~ee ordenado
Meu infelice fado,
Que quando me convida
A morte, para a morte tenha vida.
  Secreta noite amiga, a que obedeço,
Estas rosas (por quanto
Meus queixumes me ouviste) te offereço,
E este fresco amaranto,
Humido ja do pranto,
E lagrimas da esposa
Do cioso Titão, branca e formosa.

ODE II.

Tão suave, tão fresca e tão formosa,
Nunca no ceo sahio
A Aurora no princípio do verão,
Ás flores dando a graça costumada,{364}
Como a formosa mansa fera, quando
Hum pensamento vivo m'inspirou,
Por quem me desconheço.
  Bonina pudibunda, ou fresca rosa,
Nunca no campo abrio,
Quando os raios do sol no Touro estão,
De côres differentes esmaltada,
Como esta flor, que os olhos inclinando,
O soffrimento triste costumou
Á pena que padeço.
  Ligeira, bella Nympha, linda, irosa,
Não creio que seguio
Satyro, cujo brando coração
D'amores commovesse fera irada,
Qu'assi fosse fugindo e desprezando
Este tormento, donde Amor mostrou
Tão próspero comêço.
  Nunca, emfim, cousa bella e rigorosa
Natura produzio,
Qu'iguale aquella fórma e condição,
Que as dores em que vivo estima em nada.
Mas com tão doce gesto, irado e brando,
O sentimento, e a vida m'enlevou,
Que a pena lhe agradeço.
  Bem cuidei d'exaltar em verso, ou prosa,
Aquillo que a alma vio
Entre a doce dureza e mansidão,
Primores de belleza desusada;
Mas quando quiz voar ao ceo cantando,
Entendimento e engenho me cegou
Luz de tão alto preço.{365}
  Naquella alta pureza deleitosa
Que ao mundo s'encobrio;
E nos olhos Angelicos, que são
Senhores desta vida destinada;
E naquelles cabellos, que soltando
Ao manso vento, a vida me enredou,
M'alegro e m'entristeço.
  Saudade e suspeita perigosa,
Que Amor constituio
Por castigo daquelles que se vão;
Temores, penas d'alma desprezada,
Fera esquivança, que me vai tirando
O mantimento que me sustentou,
A tudo me offereço.
  Amor isento a huns olhos m'entregou,
Nos quaes a Deos conheço.

ODE III.

Se de meu pensamento
Tanta razão tivera d'alegrar-me,
Quanto de meu tormento
A tenho de queixar-me,
Puderas, triste lyra, consolar-me.
  E minha voz cansada,
Qu'em outro tempo foi alegre e pura,
Não fôra assi tornada,
Com tanta desventura,
Tão rouca, tão pezada, nem tão dura.{366}
  A ser como sohia,
Pudera levantar vossos louvores;
Vós, minha Hierarchia,
Ouvíreis meus amores,
Qu'exemplo são ao mundo ja de dores.
  Alegres meus cuidados,
Contentes dias, horas e momentos,
Oh quanto bem lembrados
Sois de meus pensamentos,
Reinando agora em mi duros tormentos!
  Ai gostos fugitivos!
Ai gloria ja acabada e consumida!
Ai males tão esquivos!
Qual me deixais a vida!
Quão cheia de pezar! quão destruida!
  Mas como não he morta
Ja esta vida? como tanto dura?
Como não abre a porta
A tanta desventura,
Qu'em vão com seu poder o tempo cura?
  Mas para padecê-la
S'esforça o meu sogeito e convalece;
Que só para dizê-la,
A fôrça me fallece,
E de todo me cansa e m'enfraquece.
  Oh bem affortunado
Tu, que alcançaste com lyra toante,
Orphêo, ser escutado
Do fero Rhadamante,
E co'os teus olhos ver a doce amante!
  As infernaes figuras{367}
Moveste com teu canto docemente;
As tres Furias escuras,
Implacaveis á gente,
Applacadas se vírão derepente.
  Ficou como pasmado
Todo o Estygio Reino co'o teu canto;
E quasi descansado
De seu eterno pranto,
Cessou de alçar Sisypho o grave canto.
  A ordem se mudava
Das penas que regendo está Plutão;
Em descanso se achava
A roda de Ixião,
E em glória quantas penas alli são.
  De todo ja admirada
A Rainha infernal e commovida,
Te deo a desejada
Esposa, que perdida
De tantos dias ja tivera a vida.
  Pois minha desventura,
Como ja não abranda hum'alma humana,
Qu'he contra mi mais dura,
E inda mais deshumana,
Que o furor de Callirrhoë profana?
  Oh crua, esquiva e fera,
Duro peito, cruel e empedernido,
D'alguma tigre fera
Lá na Hircania nascido,
Ou d'entre as duras rochas produzido!
  Mas que digo, coitado!
E de quem fio em vão minhas querellas?{368}
Só vós, ó do salgado,
Humido Reino bellas
E claras Nymphas, condoei-vos dellas.
  E d'ouro guarnecidas
Vossas louras cabeças levantando
Sôbre as ondas erguidas,
As tranças gottejando,
Sahindo todas, vinde a ver qual ando.
  Sahi em companhia,
E cantando e colhendo as lindas flores;
Vereis minha agonia,
Ouvireis meus amores,
E sentireis meus prantos, meus clamores.
  Vereis o mais perdido
E mais infeliz corpo qu'he gerado;
Qu'está ja convertido
Em chôro, e neste estado
Somente vive nelle o seu cuidado.

ODE IV.

Formosa fera humana,
Em cujo coração soberbo e rudo
A fôrça soberana
Do vingativo Amor, que vence tudo,
As pontas amoladas
De quantas settas tinha t~ee quebradas:
  Amada Circe minha,{369}
Postoque minha não, com tudo amada;
A quem hum bem que tinha
Da doce liberdade desejada,
Pouco a pouco entreguei,
E se mais tenho, mais entregarei;
  Pois natureza irosa
Da razão te deo partes tão contrárias,
Que sendo tão formosa,
Folgues de te queimar em flammas várias,
Sem arder em nenh~ua
Mais qu'em quanto allumia o mundo a l~ua;
  Pois triumphando vás
Com diversos despojos de perdidos,
Que tu privando estás
De razão, de juizo e de sentidos,
E quasi a todos dando
Aquelle bem que a todos vás negando;
  Pois tanto te contenta
Ver o nocturno moço, em ferro envolto,
Debaixo da tormenta
De Jupiter em ágoa e vento sôlto,
Á porta, que impedido
Lhe t~ee seu bem, de mágoa adormecido;
  Porque não tens receio
Que tantas insolencias e esquivanças
A deosa, que põe freio
A soberbas e doudas esperanças,
Castigue com rigor,
E contra ti se accenda o fero Amor?
  Ólha a formosa Flora;
De despojos de mil suspiros rica,{370}
Por o Capitão chora,
Que lá em Thessalia, emfim, vencido fica,
E foi sublime tanto,
Que altares lhe deo Roma e nome santo.
  Ólha em Lesbos aquella
No seu salteiro insigne conhecida;
Dos muitos que por ella
Se perdêrão, perdeo a chara vida
Na rocha que se infama
Com ser remedio extremo de quem ama.
  Por o moço escolhido,
Onde mais se mostrárão as tres Graças;
Que Venus escondido
Para si teve hum tempo entre as alfaças,
Pagou co'a morte fria
A má vida que a muitos ja daria.
  E, vendo-se deixada
Daquelle por quem tantos ja deixára,
Se foi, desesperada,
Precipitar da infame rocha chara:
Que o mal de mal querida
Sabe que vida lhe he perder a vida.
  Tomae-me, bravos mares;
Vós me tomae, pois outrem me deixou.
Disse: e dos altos ares
Pendendo, com furor s'arremessou.
Acude tu, suave,
Acude, poderosa e divina ave.
  Toma-a nas azas tuas,
Menino pio, illesa e sem perigo,
Antes que nestas cruas{371}
Ágoas cahindo apague o fogo antigo.
He digno amor tamanho
De viver, e ser tido por estranho.
  Não: qu'he razão que seja
Para as lobas isentas, que amor vendem,
Exemplo onde se veja
Que tambem ficão presas as que prendem.
Assi o deo por sentença
Nemesis, que Amor quiz que tudo vença.

ODE V.

Nunca manhãa suave
Estendendo seus raios por o mundo,
Despois de noite grave,
Tempestuosa, negra, em mar profundo
Alegrou tanto nao, que ja no fundo
Se vio em mares grossos,
Como a luz clara a mi dos olhos vossos.
  Aquella formosura,
Que só no virar delles resplandece;
E com que a sombra escura
Clara se faz, e o campo reverdece;
Quando o meu pensamento se entristece,
Ella e sua viveza
Me desfazem a nuvem da tristeza.
  O meu peito, onde estais,
He para tanto bem pequeno vaso;{372}
Quando acaso virais
Os olhos, que de mi não fazem caso,
Todo, gentil Senhora, então me abraso
Na luz que me consume,
Bem como a borboleta faz no lume.
  Se mil almas tivera
Que a tão formosos olhos entregára,
Todas quantas pudera
Por as pestanas delles pendurára;
E, enlevadas na vista pura e clara,
(Postoque disso indinas)
Se andárão sempre vendo nas meninas.
  E vós, que descuidada
Agora vivereis de taes querellas,
D'almas minhas cercada,
Não pudesseis tirar os olhos dellas;
Não póde ser que, vendo a vossa entr'ellas
A dor que lhe mostrassem,
Tantas huma alma só não abrandassem.
  Mas, pois o peito ardente
Huma só póde ter, formosa Dama,
Basta que esta somente,
Como se fossem mil e mil, vos ama,
Para que a dor de sua ardente flama
Comvosco tanto possa,
Que não queirais ver cinza hum'alma vossa.{373}

ODE VI.

Póde hum desejo immenso
Arder no peito tanto,
Que á branda e á viva alma o fogo intenso
Lhe gaste as nodoas do terreno manto;
E purifique em tanta alteza o esprito
Com olhos immortais,
Que faz que leia mais do que vê'scrito.
  Que a flamma, que se accende
Alto, tanto allumia,
Que se o nobre desejo ao bem s'estende
Que nunca vio, o sente claro dia;
E lá vê do que busca o natural,
A graça, a viva côr,
N'outra especie melhor que a corporal.
  Pois vós, ó claro exemplo
De viva formosura,
Que de tão longe cá noto e contemplo
N'alma, que este desejo sobe e apura;
Não creais que não vejo aquella imagem
Que as gentes nunca vem,
Se de humanos não tem muita vantagem.
  Que se os olhos ausentes
Não vem a compassada
Proporção, que das côres excellentes
De pureza e vergonha he variada;
Da qual a Poesia, que cantou{374}
Atéqui só pinturas
Com mortaes formosuras igualou;
  Se não vem os cabellos
Que o vulgo chama de ouro;
E se não vem os claros olhos bellos,
De quem cantão que são de sol thesouro;
E se não vem do rosto as excellencias,
A quem dirão que deve
Rosa, e crystal, e neve as apparencias;
  Vem logo a graça pura,
A luz alta e severa,
Que he raio da divina formosura,
Que n'alma imprime e fóra reverbera;
Assi como crystal do sol ferido,
Que por fóra derrama
A recebida flamma esclarecido.
  E vem a gravidade,
Com a viva alegria
Que misturada t~ee de qualidade,
Que huma da outra nunca se desvia;
Nem deixa de ser huma receada
Por leda e por suave,
Nem outra, por ser grave, muito amada.
  E vem do honesto siso
Os altos resplandores
Temperados co'o doce e ledo riso,
A cujo abrir abrem no campo as flores;
As palavras discretas e suaves,
Das quaes o movimento
Fara deter o vento e as altas aves:
  Dos olhos o virar{375}
Que torna tudo raso,
Do qual não sabe o engenho divisar
Se foi por artificio, ou feito acaso;
Da presença os meneios e a postura,
O andar e o mover-se,
Donde póde aprender-se formosura.
  Aquelle não sei que,
Que aspira não sei como,
Qu'invisivel sahindo, a vista o vê,
Mas para o comprender não lhe acha tomo;
E que toda a Toscana Poesia,
Que mais Phebo restaura,
Em Beatriz, nem Laura nunca via:
  Em vós a nossa idade,
Senhora, o póde ver,
S'engenho, se sciencia e habilidade,
Iguaes á vossa formosura der,
Qual a vi no meu longo apartamento,
Qual em ausencia a vejo.
Taes azas dá o desejo ao pensamento!
  Pois se o desejo afina
Hum'alma accesa tanto,
Que por vós use as partes de divina;
Por vós levantarei não visto canto,
Que o Betis me ouça, e o Tibre me levante:
Que o nosso claro Tejo,
Envolto hum pouco o vejo e dissonante.
  O campo não o esmaltão
Flores, mas só abrolhos
O fazem feio; e cuido que lhe faltão
Ouvidos para mi, para vós olhos.{376}
Mas faça o que quizer o vil costume;
Que o sol, qu'em vós está,
Na escuridão dara mais claro lume.

ODE VII.

A quem darão de Pindo as moradoras,
Tão doctas como bellas,
Florecentes capellas
De triumphante louro, ou myrto verde;
Da gloriosa palma, que não perde
A presumpção sublime,
Nem por fôrça de pêzo algum se opprime?
  A quem trarão nas faldas delicadas,
Rosas a roxa Cloris,
Conchas a branca Doris;
Estas, flores do mar; da terra aquellas,
Argenteas, ruivas; brancas e amarellas,
Com danças e corêas
De formosas Nereidas e Napêas?
  A quem farão os Hymnos, Odes, Cantos,
Em Thebas Amphion,
Em Lesbos Arion,
Senão a vós, por quem restituida
Se vê da Poesia ja perdida
A honra e gloria igual,
Senhor Dom Manoel de Portugal?
  Imitando os espritos ja passados,{377}
Gentis, altos, Reais,
Honra benigna dais
A meu tão baixo, quão zeloso engenho.
Por Mecenas a vós celebro e tenho;
E sacro o nome vosso
Farei, se alguma cousa em verso posso.
  O rudo canto meu, que resuscita
As honras sepultadas,
As palmas ja passadas
Dos bellicosos nossos Lusitanos
Para thesouro dos futuros anos,
Comvosco se defende
Da lei Lethêa, á qual tudo se rende.
  Na vossa árvore ornada d'honra e glória
Achou tronco excellente
A hera florecente
Para a minha atéqui de baixa estima:
Nelle, para trepar, s'encosta e arrima;
E nella subireis
Tão alto, quanto os ramos estendeis.
  Sempre forão engenhos peregrinos
Da Fortuna invejados;
Que quanto levantados
Por hum braço nas azas são da Fama,
Tanto por outro aquella, que os desama,
Co'o pêzo e gravidade
Os opprime da vil necessidade.
  Mas altos corações dignos d'Imperio,
Que vencem a Fortuna,
Forão sempre coluna
Da sciencia gentil: Octaviano,{378}
Scipião, Alexandre e Graciano,
Que vemos immortais;
E vós, que o nosso seculo dourais.
  Pois, logo, em quanto a cithara sonora
S'estimar por o mundo,
Com som docto e jucundo;
E em quanto produzir o Tejo e o Douro
Peitos de Marte e Phebo crespo e louro,
Tereis glória immortal,
Senhor Dom Manoel de Portugal.

ODE VIII.

Aquelle unico exemplo
De fortaleza heroica e ousadia,
Que mereceo no templo
Da Fama eterna ter perpétuo dia;
O grão filho de Thetis, que dez anos
Flagello foi dos miseros Troianos;
  Não menos ensinado
Foi nas hervas e Medica polícia,
Que destro e costumado
No soberbo exercicio da Milicia:
Assi que as mãos que a tantos morte derão,
Tambem a muitos vida dar puderão.
  E não se desprezou
Aquelle fero e indomito mancebo
Das Artes qu'ensinou{379}
Para o languido corpo o intonso Phebo;
Que se o temido Heitor matar podia,
Tambem chagas mortaes curar sabía.
  Taes Artes aprendeo
Do semiviro Mestre e docto velho,
Onde tanto cresceo
Em virtude, e em sciencia e em conselho,
Que Telepho, por elle vulnerado,
Só delle pôde ser despois curado.
  Pois vós, ó excellente
E illustrissimo Conde, do ceo dado
Para fazer presente
D'altos Heroes o seculo passado;
E em quem bem trasladada está a memoria
De vossos ascendentes, a honra e glória:
  Postoque o pensamento
Occupado tenhais na guerra infesta,
Ou co'o sanguinolento
Taprobano, ou Achem, que o mar molesta,
Ou co'o Cambaico, occulto imigo nosso,
Que qualquer delles teme o nome vosso;
  Favorecei a antiga
Sciencia que ja Achilles estimou;
Olhae que vos obriga
O ver qu'em vosso tempo rebentou
O fructo daquell'Orta onde florecem
Plantas novas, que os doctos não conhecem.
  Olhae qu'em vossos anos
Huma Orta produze várias hervas
Nos campos Indianos,
As quaes aquellas doctas e protervas,{380}
Medêa e Circe, nunca conhecêrão,
Postoque a lei da Magica excedêrão.
  E vêde carregado
D'annos e traz a vária experiencia
Hum velho, qu'ensinado
Das Gangeticas Musas na sciencia
Podaliria subtil, e arte sylvestre,
Vence ao velho Chiron, d'Achilles mestre.
  O qual está pedindo
Vosso favor e amparo ao grão volume,
Qu'impresso á luz sahindo,
Dara da Medicina hum vivo lume;
E descobrir-nos-ha segredos certos,
A todos os Antiguos encobertos.
  Assi que não podeis
Negar a que vos pede benigna aura:
Que se muito valeis
Na sanguinosa guerra Turca e Maura,
Ajudae quem ajuda contra a morte;
E sereis semelhante ao Grego forte.

ODE IX.

Fogem as neves frias
Dos altos montes quando reverdecem
As árvores sombrias;
As verdes hervas crecem,
E o prado ameno de mil côres tecem.{381}
  Zephyro brando espíra;
Suas settas Amor afia agora;
Progne triste suspira,
E Philomela chora:
O ceo da fresca terra se namora.
  Ja a linda Cytherêa
Vem, do côro das Nymphas rodeada;
A branca Pasitêa Despida e delicada,
Com as duas irmãas acompanhada.
  Em quanto as officinas
Dos Cyclopas Vulcano está queimando,
Vão colhendo boninas
As Nymphas, e cantando,
A terra co'o ligeiro pé tocando.
  Desce do aspero monte
Diana, ja cansada da espessura,
Buscando a clara fonte,
Onde por sorte dura
Perdeo Actêo a natural figura.
  Assi se vai passando
A verde Primavera e o sêcco Estio;
O Outono vem entrando;
E logo o Inverno frio,
Que tambem passará por certo fio.
  Ir-se-ha embranquecendo
Com a frigida neve o sêcco monte;
E Jupiter chovendo
Turbará a clara fonte:
Temerá o marinheiro a Orionte.
  Porque, emfim, tudo passa;{382}
Não sabe o Tempo ter firmeza em nada;
E a nossa vida escassa
Foge tão apressada,
Que quando se começa he acabada.
  Que se fez dos Troianos
Heitor temido, Enêas piedoso?
Consumírão-te os anos,
Ó Cresso tão famoso,
Sem te valer teu ouro precioso.
  Todo o contentamento
Crias qu'estava em ter thesouro ufano!
Oh falso pensamento!
Que á custa de teu dano
Do sabio Solon crêste o desengano.
  O bem que aqui se alcança,
Não dura por passante, nem por forte:
Que a bem-aventurança
Duravel, de outra sorte
Se ha de alcançar na vida para a morte.
  Porque, emfim, nada basta
Contra o terrivel fim da noite eterna;
Nem póde a deosa casta
Tornar á luz superna
Hippolyto da escura sombra averna.
  Nem Thesêo esforçado,
Ou com manha, ou com fôrça valerosa,
Livrar póde o ousado
Perithoo da espantosa
Prisão Lethêa escura e tenebrosa.{383}

ODE X.

Aquelle moço fero
Nas Pelethronias covas doctrinado
Do Centauro severo;
Cujo peito esforçado
Com tutanos de tigres foi criado.
  N'ágoa fatal menino
O lava a mãe, presaga do futuro,
Para que ferro fino
Não passe o peito duro
Que de si mesmo a si se t~ee por muro.
  A carne lh'endurece,
Porque não seja d'armas offendida.
Cega! pois não conhece
Que póde haver ferida
N'alma, e que menos doe perder a vida.
  Que donde o braço irado
Dos Troianos passava arnez e escudo,
Alli se vio passado
Daquelle ferro agudo
Do menino qu'em todos póde tudo.
  Alli se vio captivo
Da captiva gentil que serve e adora;
Alli se vio que vivo
Em vivo fogo mora,
Porque de seu senhor a vê senhora.
  Ja toma a branda lyra{384}
Na mão que a dura Pelias meneára;
Alli canta e suspira,
Não como lh'ensinára
O velho, mas o moço que o cegára.
  Pois, logo, quem culpado
Será, se de pequeno offerecido
Foi todo a seu cuidado;
No berço instituido
A não poder deixar de ser ferido?
  Quem logo fraco infante
D'outro mais poderoso foi sujeito,
E para cego amante
Desd'o princípio feito,
Com lagrimas banhando o tenro peito?
  Se agora foi ferido
Da penetrante ponta e fôrça d'herva;
E se Amor he servido
Que sirva á linda serva,
Para quem minha estrella me reserva?
  O gesto bem talhado;
O airoso meneio e a postura;
O rosto delicado,
Que na vista figura
Que s'ensina por arte a formosura,
  Como póde deixar
De render a quem tenha entendimento?
Que quem não penetrar
Hum doce gesto, attento,
Não lhe he nenhum louvor viver isento.
  Aquelles, cujos peitos
Ornou d'altas sciencias o destino.{385}
Se vírão mais sujeitos
Ao cego e vão menino,
Arrebatados do furor divino.
  O Rei famoso Hebreio,
Que mais que todos soube, mais amou;
Tanto, que a deos alheio
Falso sacrificou.
Se muito soube e teve, muito errou.
  E o grão Sabio qu'ensina,
Passeando, os segredos da Sophia,
Á baixa concubina
Do vil Eunuco Hermia
Aras ergueo, que aos deoses só devia.
  Aras ergue a quem ama
O Philosopho insigne namorado.
Doe-se a perpétua fama,
E grita qu'he culpado:
Da lesa divindade he accusado.
  Ja foge donde habita;
Ja paga a culpa enorme com destêrro.
Mas, oh grande desdita!
Bem mostra tamanho êrro
Que doctos corações não são de ferro.
  Antes na altiva mente,
No subtil sangue e engenho mais perfeito
Ha mais conveniente
E conforme sogeito,
Onde s'imprima o brando e doce affeito.{386}

ODE XI.

Naquelle tempo brando
Em que se vê do mundo a formosura,
Que Thetis descansando
De seu trabalho está, formosa e pura,
Cansava Amor o peito
Do mancebo Peleo d'hum duro affeito.
  Com impeto forçoso
Lhe havia ja fugido a bella Nympha,
Quando no tempo aquoso
Noto irado revolve a clara lympha,
Serras no mar erguendo,
Que os cumes das da terra vão lambendo.
  Esperava o mancebo,
Com a profunda dor que n'alma sente,
Hum dia em que ja Phebo
Começava a mostrar-se ao mundo ardente,
Soltando as tranças d'ouro,
Em que Clicie d'amor faz seu thesouro.
  Era no mez que Apolo
Entre os irmãos celestes passa o tempo:
O vento enfreia Eolo,
Para que o deleitoso passatempo
Seja quieto e mudo;
Que a tudo Amor obriga, e vence tudo.
  O luminoso dia
Os amorosos corpos despertava
Á cega idolatria,
Que ao peito mais contenta e mais aggrava;{387}
Onde o cego menino
Faz que os humanos crêão que he divino:
  Quando a formosa Nympha,
Com todo o ajuntamento venerando,
Na crystallina lympha
O corpo crystallino está lavando;
O qual nas ágoas vendo,
Nelle, alegre de o ver, s'está revendo:
  O peito diamantino,
Em cuja branca teta Amor se cria;
O gesto peregrino,
Cuja presença torna a noite em dia;
A graciosa boca
Que a Amor com seus amores mais provoca;
  Os rubins graciosos;
As pérolas qu'escondem vivas rosas
Dos jardins deleitosos,
Que o ceo plantou em faces tão formosas;
O transparente collo,
Que ciumes a Daphne faz d'Apollo;
  O subtil mantimento
Dos olhos, cuja vista a Amor cegou;
A Amor que, com tormento
Glorioso, nunca delles se apartou,
Pois elles de contino
Nas meninas o trazem por menino;
  Os fios derramados
Daquelle ouro que o peito mais cobiça,
Donde Amor enredados
Os corações humanos traz e atiça,
E donde com desejo{388}
Mais ardente começa a ser sobejo.
  O mancebo Peleo,
Que de Neptuno estava aconselhado,
Vendo na terra o ceo
Em tão bella figura trasladado,
Mudo hum pouco ficou,
Porque Amor logo a falla lhe tirou.
  Emfim, querendo ver
Quem tanto mal de longe lhe fazia,
A vista foi perder,
Porque de puro amor, Amor não via:
Vio-se assi cego e mudo
Por a fôrça d'Amor que póde tudo.
  Agora s'apparelha
Para a batalha; agora remettendo;
Agora s'aconselha;
Agora vai; agora está tremendo;
Quando ja de Cupido
Com nova setta o peito vio ferido.
  Remette o moço logo
Para ond'estava a chamma sem socêgo;
E co'o sobejo fogo
Quanto mais perto estava, então mais cego:
E cego, e co'hum suspiro,
Na formosa donzella emprega o tiro.
  Vingado assi Peleo,
Nasceo deste amoroso ajuntamento
O forte Larisseo,
Destruição do Phrygio pensamento;
Que, por não ser ferido,
Foi nas ágoas Estygias submergido.{389}

ODE XII.

Ja a calma nos deixou
Sem flores as ribeiras deleitosas;
Ja de todo seccou
Candidos lirios, rubicundas rosas:
Fogem do grave ardor os passarinhos
Para o sombrio amparo de seus ninhos.
  Meneia os altos freixos
A branda viração de quando em quando;
E d'entre vários seixos
O liquido crystal sahe murmurando:
As gottas, que das alvas pedras sáltão,
O prado, como pérolas, esmaltão.
  Da caça ja cansada
Busca a casta Titanica a espessura,
Onde á sombra inclinada
Logre o doce repouso da verdura,
E sôbre o seu cabello ondado e louro
Deixe cahir o bosque o seu thesouro.
  O ceo desimpedido
Mostrava o lume eterno das estrellas;
E de flores vestido
O campo, brancas, roxas e amarellas,
Alegre o bosque tinha, alegre o monte,
O prado, o arvoredo, o rio, a fonte.
  Porém como o menino,
Que a Jupiter por a aguia foi levado,
No cêrco crystallino{390}
For do amante de Clicie visitado;
O bosque chorará, chorará a fonte,
O rio, o arvoredo, o prado, o monte.
  O mar, que agora brando
He das Nereidas candidas cortado,
Logo se irá mostrando
Todo em crespas escumas empolado:
O soberbo furor de negro vento
Fara por toda parte movimento.
  Lei he da natureza
Mudar-se desta sorte o tempo leve:
Succeder á belleza
Da Primavera o fructo; a elle a neve;
E tornar outra vez por certo fio
Outono, Inverno, Primavera, Estio.
  Tudo, emfim, faz mudança
Quanto o claro sol vê, quanto allumia;
Não se acha segurança
Em tudo quanto alegra o bello dia:
Mudão-se as condições, muda-se a idade,
A bonança, os estados e a vontade.
  Somente a minha imiga
A dura condição nunca mudou;
Para que o mundo diga
Que nella lei tão certa se quebrou:
Em não ver-me ella só sempre está firme,
Ou por fugir d'Amor, ou por fugir-me.
  Mas ja soffrivel fôra
Qu'em matar-me ella só mostre firmeza,
Se não achára agora
Tambem em mi mudada a natureza;{391}
Pois sempre o coração tenho turbado,
Sempre d'escuras nuvens rodeado.
  Sempre exprimento os fios
Qu'em contino receio Amor me manda;
Sempre os dous caudaes rios,
Qu'em meus olhos abrio quem nos seus anda,
Correm, sem chegar nunca o Verão brando,
Que tamanha aspereza vá mudando.
  O sol sereno e puro,
Que no formoso rosto resplandece,
Envolto em manto escuro
Do triste esquecimento, não parece;
Deixando em triste noite a triste vida
Que nunca de luz nova he soccorrida.
  Porém seja o que for:
Mude-se por meu damno a natureza;
Perca a inconstancia Amor;
A Fortuna inconstante ache firmeza;
Tudo mudável seja contra mi,
Mas eu firme estarei no qu'emprendi.{392}

{393}

 

NOTAS.

{394}
{395}

NOTAS.

Pag. 4. V. 4. Que rompesse os Mahometicos arnezes] Faria e Sousa. Rompessem os Mahometicos arnezes] 3.ª ed. A primeira lição he viciosa, a segunda correcta; e por isso e por ser mais antiga a adoptámos.

 

P. 14. V. 24. Ha de acabar o mal destes amores.] Todas as ed. Mas o vício he manifesto, porque a tenção, desacompanhada da obra, nada póde acabar. Corrigimos:

Mas se vossa tenção com minha morte
He de acabar o mal destes amores etc.

 

P. 29. V. 13. Mas em vão não vereis, porque vereis] Faria e Sousa. Mas em vão não vireis, porque achareis] 3.ª ed. Adoptámos esta lição, que he a do poeta.

 

P. 30. V. 10. O pensamento da aspereza vossa] Faria e Sousa. O pensamento e a aspereza vossa] 3.ª ed. Porque rejeitaria Faria e Sousa esta lição? ou que entenderia elle por pensamento da aspereza? Seguimos a lição antiga, que he a verdadeira.

 

P. 34. V. 7. Pois a parte maior do entendimento] Faria e Sousa. Pois a parte melhor do entendimento] 3.ª ed. Adoptámos a lição antiga, porque por parte maior, se entende a maior porção.

 

P. 34. V. 9. Se em teu valor contemplo a melhor parte] Faria, e 3.ª ed. Mas he vício, porque o poeta acaba dizer que a melhor parte do entendimento se vê perdida{396} no menos que ha na sua amada, e não he possivel que não quizesse continuar no mesmo encarecimento. Corrigimos:

Se em teu valor contemplo a menor parte.

 

P. 34. V. 25. Em feras mora, em aves, pedras ágoas] Faria e Sousa. Em feras, plantas, aves, pedras, ágoas] 3.ª ed. Só quem for destituido de gosto poderá preferir aquella a esta lição.

 

P. 40. V. 19. A mão tenho mettida no teu seio] Faria e Sousa, e 3.ª ed. He êrro: corrigimos:

A mão tenho mettida no meu seio.

 

P. 69. V. 5. Nunca do vento e ira, que arrancando] Faria e Sousa. He êrro; corrigimos:

Nunca do vento a ira, que arrancando.

 

P. 70. V. 24.
    Com que a morte forçada e gloriosa,
    Faz o vencido etc.
] Faria e Sousa. He êrro: corrigimos:

Com que a morte forçada gloriosa
Faz o vencido etc.

 

P. 86. V. 24.
    Pois se a fortuna o fez por descontar-me
    Esse desgosto etc.
] Faria e Sousa. He lição viciosa, porque o poeta acaba de dizer que a sorte lhe cortou em flor a sua alegria, que era tal, que era de razão, tivesse este desconto, porque se não dissesse que no mundo podia haver bem perfeito; e seria disparate chamar agora desgosto ao que pouco antes chamou summa alegria. Corrigimos:

Mas se a fortuna o fez por descontar-me
Aquelle gosto etc.

 

P. 108. V. 15. Ayúdame, Señora, á ser vingança] Faria e Sousa. He êrro. Corrigimos:

Ayúdame, Señora, á hacer vinganza.{397}

 

P. 111. V. 7. Nem todos para um gôsto são iguaes] Faria e Sousa. He êrro, porque o poeta diz: Vós, ó annos, estes que passais tão ligeiros, nem todos sois iguaes: e se dissesse são, era absurdo. Corrigimos:

Nem todos para um gôsto sois iguaes.

 

P. 113. V. 25. Aunque en esta se llega al natural] Faria e Sousa. He êrro. Corrigimos:

Aunque en esto se llega al natural.

Porque o sentido do poeta he que só n'uma cousa se aproxima ao natural o retrato da sua amada; e vem a ser, que assim ouve, e assim responde o seu pranto como se fôra o proprio original.

 

P. 114. V. 11. En tanto bien no quieras olvidarte] Faria e Sousa. Foi descuido, porque a mesma Rima exige que seja olvidarme.

 

P. 114. V. 21. Cesse vosso louvor, Nymphas formosas] Faria e Sousa. He vicio, porque o poeta não diz ás Nymphas que deixem o seu proprio louvor; mas, sim, o seu lavor; isto he, as telas que estavão lavrando. Corrigimos:

Cesse vosso lavor etc.

 

P. 115. V. 22. Fizeres que se mova a piedade] Faria e Sousa. Fazeres que se mova a piedade] 3.ª ed. Seguimos esta lição, que he a verdadeira.

 

P. 120. V. 15. Em Babylonia sôbre os rios] Faria e Sousa. Mas parece que tambem aqui, como nos outros lugares, se deve ler:

De Babylonia sobre os rios etc.

 

P. 128. V. 13. Ah! que falta mais vezes a ventura] Faria e Sousa; mas a lição do poeta he esta:

Ah! que falte mais vezes a ventura.

 

P. 133. V. 28.
    Que não póde nenhum impedimento
    Fugir do que lhe ordena sua Estrella.]{398}
Lição vulgar. Mas o fugir está aqui por evitar: corrigimos:

Fugir o que lhe ordena etc.

 

P. 134. V. 7. Tão potente será vossa mudança.] Lição vulgar. He viciosa: corrigimos:

Tão patente será etc.

 

P. 136. V. 28. Não o quizera tanto á vossa custa.] Lição vulgar. He vicio, porque se entende a vingança. Corrigimos:

Não a quizera tanto á vossa custa.

 

P. 138. V. 11. Eu quanto mais te vejo, mais te escondes.] Lição vulgar. He absurda: corrigimos:

Eu quanto mais te busco, mais te escondes.

 

P. 139. V. 20. Que mágoas para ouvir! e que figura.] Lição vulgar. He viciosa: corrigimos:

Que mágoas para ouvir! Que tal figura.

 

P. 144. V. 11.
    Mas eu acostumado ao veneno,
    E uso de soffrer meu mal presente.] Lição vulgar. He viciosa: corrigimos:

Assim de acostumado co'o veneno,
O uso de soffrer etc.

 

P. 159. V. 3. Ni dejarán, por mas que el tiempo huya.] Todas as ed. Mas he vicio, porque se entende a memoria. Corrigimos:

Ni dejará, por mas que el tiempo huya.

 

P. 165. V. 12. Seus cabellos] Tod. as ed. Mas quem espalha os cabellos, não são as Nymphas; he a manhãa. Nem as Nymphas podião ter tantos e tão longos cabellos, que os espalhassem pelos montes. Corrigimos: Teus cabellos.

 

P. 167. V. 9. Gaitas, que bem se ouvião] Faria e Sousa. As gaitas que trazião] 3.ª ed. Adoptamos esta lição, que he a do poeta.{399}

 

P. 175. V. 5.
    Com palavras mimosas e forjadas
    Da solta liberdade e livre peito.] Todas as ed. Mas he vicio, porque o sentido he este: Com palavras mimosas e forjadas eu, de solta liberdade e livre peito, as trazia (a ellas Nymphas) contentes e enganadas. Corrigimos:

Com palavras mimosas e forjadas,
De solta liberdade e livre peito etc.

 

P. 184. V. 20. Assim me está tornando o peito frio.] Todas as ed. Mas o temor he que produz todos estes effeitos: impedir a voz, tornar a lingua negligente e o peito frio; e desta lição parece entender-se que o peito frio he quem torna a lingua negligente, ou que a lingua negligente torna o peito frio. Esta amphibologia argue vicio de texto. Corrigimos:

Assim me está tornando, e o peito frio.

Este lugar nos fornece mais uma prova incontestavel de que a emenda que fizemos na Estancia 29, Canto IV dos Lusiadas, he a verdadeira e genuina lição do poeta. E não só neste, mas em todos os mais lugares onde o poeta falla do medo, sempre lhe attribue o effeito de esfriar e gelar: como no mesmo ja citado Canto, Estancia 21:

  Desta arte a gente força e esforça Nuno,
Que com lh'ouvir as ultimas razões,
Removem o temor frio, importuno
Que gelados lhe tinha os corações.

e no Canto I, Estancia 89:

O temor grande, o sangue lhe resfria.

Sempre disse que fazia parar a circulação do sangue, e que seus effeitos se fazião primeiro sentir no coração, como no Canto V, Estancia 38:

Que poz no coração um grande medo.

O mesmo fazem todos os grandes poetas, e com especialidade Virgilio, como se ve nos seguintes exemplos:

Extemplo Aeneae solvuntur frigore membra.
                           Eneida L. I, V. 96.{400}

Solvite corde metum, Teucri.
                           ibi V. 566.

Diffugimus visu exangues.
                           ibi L. 2, V. 212.

At sociis subitâ gelidus formidine sanguis
Diriguit: cecidêre animi.
                           ibi L. III, V. 259.

Gelidus Teucris per dura cucurrit
Ossa tremor.
                           ibi L. VI, V. 54.

E além destes muitos e muitos outros puderamos citar.

Pois se o temor esfria e gela, e primeiro se faz sentir no coração, como diz o nosso Camões e disserão antes, e tem dito depois todos os grandes poetas; com a autoridade do mesmo Camões se prova que, se no campo de Aljubarrota, quando a trombeta Castelhana deo o sinal da batalha, o sangue acudio ao coração dos Portuguezes, e por consequencia se lhes concentrou alli o calor, não foi porque o temor fosse maior, mas, sim, porque era muito menor, que o perigo. E portanto he viciosa a lição vulgar, e a nossa verdadeira.

 

P. 187. V. 30. E vós, pastores deste rudo outeiro] Faria e Sousa. E vós, pastores rudos deste outeiro] 3.ª ed. A lição do poeta he esta.

 

P. 188. V. 30. No tronco de alguma árvore sombria] Faria e Sousa. E no tronco d'uma arvore sombria] 3.ª ed. Esta he a lição verdadeira.

 

P. 190 V. 3. Em vós deixou Minerva o que valia] Faria e Sousa. Em vós deixou Minerva sua valia] 3.ª ed. Porque desprezaria Faria esta lição?

 

P. 198. V. 15. Porque saibas o que he ser amada] Faria e Sousa. Porque saibas que cousa he ser amada] 3.ª ed. Quem hesitará em seguir a lição antiga?

 

P. 199. V. 23. Se humano parecer não se defende] Faria e Sousa. Que ao humano parecer não se defende]{401} 3.ª ed. Ambas estas lições são viciosas. A que nos parece verdadeira ou pelo menos correcta, he esta:

Se ao humano parecer não se defende.

 

P. 200. V. 13. Porque segues em vão esse cuidado?] Faria e Sousa. Não vés que teu fugir he escusado?] 3.ª ed. A lição antiga he a do poeta.

 

P. 200. V. 14. Pois nunca estás sem mim algum momento] Faria e Sousa. Que sem mim não estás um so momento] 3.ª ed. Este verso he incomparavelmente melhor que o de Faria, e tem o cunho do poeta.

 

P. 201. V. 21. A vós se dão, a quem junto se ha dado] Faria e Sousa. A vós se dem, a quem junto se ha dado] 3.ª ed. A lição verdadeira he esta.

 

P. 202. V. 23. E o mais do roxo dia era passado] Faria e Sousa. E o mais do dia ja era passado] 3.ª ed. O epiteto de roxo aqui desnecessario parece introduzido por mão estranha.

 

P. 203. V. 14. Que farão mais que mais endurecer-te?] Faria e Sousa. Que fazem senão mais endurecer-te?] 3.ª ed. Este verso he muito mais natural e melhor que o outro.

 

P. 203. V. 23. Um bronze ja abrandára que não sente] Faria. Ja um peito abrandára que não sente] 3.ª ed. Esta segunda lição he sem duvida alguma a do poeta, por que, alem de que he ocioso dizer do bronze que he insensivel, esta expressão de peito que não sente, he nelle tão frequente que não podemos deixar de a ter por sua.

 

P. 205. V. 6. Em lugar de alegrar-se, se entristecem] Faria. Em vez de se alegrarem, se entristecem] 3.ª ed. Este verso em harmonia he mui superior ao primeiro, e tem mais a seu favor ser das primeiras edições. Pelo que lhe damos a preferencia.{402}

 

P. 211. V. 2. Com rosto baixo, e alto pensamento] Faria e Sousa. Co'o rosto baixo, e alto o pensamento] 3.ª ed. Andando este verso assim nas primeiras ed., tão impossivel parece que Faria o não tivesse visto, como que, depois de o ver, lhe preferisse o primeiro.

 

P. 213. V. 1. E vós, cujo valor em tanto excede] Faria e Sousa. E vós, cujo valor tão alto excede] 3.ª ed. Preferimos a lição antiga, que he correcta, á emenda de Faria, que he viciosa.

 

P. 213. V. 17. Contra o indomito Pãe de toda Hespanha. Todas as ed. Mas he vicio manifesto. Faria e Sousa explica assim este lugar do texto: "Esto es, que los campos estaban sustentados de toda España, contra Don Alonso, padre del Principe, que venciendo, los sustentó contra la fortuna e Hados." Mas a isto temos duas razões que oppor, a primeira he, que não era possivel que um poeta como Camões, para exprimir cousa tão simples fizesse tal geringonça; a segunda he appresentar o texto como o poeta o escreveo:

  Se não sabem as frautas pastoris
Pintar de Toro os campos semeados
D'armas e corpos fortes e gentis,
 
  Por um moço animoso sustentados
Contra o indomito Rei de toda Hespanha,
Contra a Fortuna vãa, e injustos Fados.

Faria devia saber, e por certo não ignorava que ElRei Dom Fernando de Castella foi feliz nas armas, razão por que o poeta lhe dá o epiteto de indomito; e que reunio em si varias corôas, que d'antes erão separadas e independentes, razão por que o poeta lhe chama rei de toda Hespanha. E se em tudo isto reflectisse, em lugar da palavra pae, aqui visivelmente introduzida por mão estranha, teria restabelecido no texto a palavra Rei, que o poeta ahi tinha posto; e com isso nos poupára o trabalho de o fazer agora.{403}

 

P. 214. V. 13. De si ja, não ja só do pobre fato] Faria e Sousa. De si, e do seu gado e pobre fato] 3.ª ed. Assim andava este verso nas primeiras edições; e a verdade he mais antiga, que a mentira. Restituimos a lição antiga. Porque por gado se entende bois etc., e por fato, cabras.

 

P. 217. V. 11. Do som que no Parnaso se deseja] Faria e Sousa. Do som, que pelo mundo se deseja] 3.ª ed. A lição de Faria nos he suspeita, porque no Parnaso residem Apollo e as Musas; e he de lá que os poetas pretendem haver esse desejado som; e como tal a desprezamos, restituindo o verso como se lia nas primeiras edições; que he como o poeta o escreveo.

 

P. 220. V. 1. D'altas nuvens vestido.] Todas as ed. Mas he êrro das copias: deve ler-se:

D'átras nuvens vestido etc.

 

P. 224. V. 31. Quiz descansar á sombra da espessura] Faria. He êrro, porque espessura não rima com manifesta e sesta. Restituimos o verso, como andava nas primeiras edições:

Quiz descansar á sombra da floresta.

 

P. 226. V. 1.
    Sirene e Nyse que das mãos fugirão

    De Tegeo Pan]
Todas as ed. Mas he vicio das copias, porque não consta que Sirene fugisse nunca das mãos de Pan. Restituimos:

Syrinx e Nyse.

 

P. 234. V. 21. Ja no indignado monte se lançava] Faria e Sousa. Ja no indigno monte se lançava] 3.ª ed. Uma e outra lição he viciosa; a do poeta he:

Ja indignado no monte se lançava.

 

P. 236. V. 3. Ainda agora em herva as folhas viras] Todas as ed. Mas he êrro, porque o gira-sol, que he a flor em que foi convertida Clycie, não víra as folhas contra o sol, nem tal disse o poeta: o que elle disse he que esta nympha inda, depois de transformada em planta, segue com{404} os olhos o seu amante; mas a ignorancia ou descuido dos copiadores a olhos substituio folhas. Restituimos:

Ainda agora em herva os olhos viras.

 

P. 284. P. 4. Com as mãos que maçãas colhendo andava.] Todas as ed. Eis-aqui mais um exemplo dos infinitos estragos que nas obras do poeta tem feito a ignorancia dos copiadores. Este verso como elle o escreveo he:

Com a mãe que maçãas colhendo andava.

 

P. 289. V. 15. Como o mesmo que então meu mal crescia.] Faria e Sousa. He êrro: corrigimos:

Com o mesmo etc.

 

P. 302. V. 28. Sabe, Canção, que só porque não vejo.] Todas as ed. Mas o verso como o poeta o escreveo he seguramente assim:

Sabe, Canção, que só porque o não vejo.

 

P. 304. V. 26. Ma figurou nos braços, e assim a tive] Todas as ed. Mas aquelle a está aqui de mais para o sentido e para o verso. Porque o poeta o que diz he, que teve dormindo o que desejou ter acordado. Corrigimos:

Ma figurou nos braços, e assi tive.

 

P. 307. V. 3. Dos montes descobrindo.] Todas as ed. Mas he vicio de cópia; porque descobrir dos montes a escuridão he avistá-la de lá; e o poeta o que diz he que vinha apparecendo a manhãa, e a escuridão ia descobrindo os montes. Corrigimos:

Os montes descobrindo.

 

P. 308. V. 27. Se mo não impedir o meu desejo.] Todas as ed. Mas he êrro. O poeta está gozando a doce visão da sua amada, e deseja morrer antes que se lhe desvaneça; mas ao mesmo tempo teme, que esta gloria que está gozando, lhe impida a de morrer, que era o seu desejo, tornando-lhe a vida. E nesta perplexidade e enleio exclama:{405} Oh ditosa partida! (a morte) oh gloria soberana alta e subida! (a da visão que está gozando) se esta lhe não impedir aquella. E a lição neste lugar he:

Se me não impedir o meu desejo.

 

P. 314. V. 25. Á pena vem pequenos.] Todas as ed. O P. Thomaz d'Aquino corrigio penna. Mal, porque estava bem o texto; e se deve lêr pena.

 

P. 321. V. 24. Pelo que em si se esconde.] Assim se lê este verso nas primeiras ed. Faria e Sousa corrigio em ti. Mal, porque o vicio inda ficou. A verdadeira emenda he:

Pelo que a si se esconde.

 

P. 325. V. 21. Este verso diz Faria e Sousa se lia no manuscripto:

Pelo que em si lhe esconde.

Mas foi êrro de quem o copiou: deve ler-se

Pelo que se lhe esconde.

 

P. 329. V. 19. Não tendo, não, somente por contrarios] Faria e Sousa. Não tendo tãosomente por contrarios] 3.ª ed. A lição antiga he a verdadeira.

 

P. 331. V. 26. Com que a fronte tornada mais serena Torna os tormentos graves.] Todas as ed. Mas he vicio das copias; porque a fronte, por mais serena que esteja não pode serenar as agitações do animo. Corrigimos:

Com que, a fronta tornada mais serena,
Tórno os tormentos graves &c.

 

P. 336. V. 1. Pouco a pouco invenciveis me sahião.] Todas as ed. Mas he êrro grosseiro dos copiadores.

Corrigimos:

Pouco a pouco invisiveis me sahião.

 

P. 339. V. 19. Os olhos na que corre, e não alcança.] Todas as ed. Mas he êrro palpavel das cópias.{406} Sobre este lugar diz Faria: Mirese lo que me viene á embarazar sobre irme desembarazando de tantas difficuldades destes poemas. Dice aqui: quando pone los ojos en la que corre. Qué es la que corre? Arriba queda providencia, y luego consolacion, y despues flaqueza humana; y no hallo que ninguna destas corre, si no es la flaqueza humana á la muerte; y ni asi lo entiendo bien. Mas não tem muito que entender: este lugar está corrompido, como tantos outros que temos visto: a lição do poeta era No que corre: quem copiou poz Na que corre. E o sentido he: Mas a fraqueza humana, quando lança os olhos no que corre; isto he, no muito que corre com os olhos d'alma, e não alcança, senão &c.

 

P. 360. Ode I.ª A primeira cousa que temos a observar nesta Ode he: que a Estancia, que principia: Para ti guarda o sitio fresco d'Ilio, e a outra logo seguinte que principia: De qual panthera ou tigre ou leopardo, se achão em todas as edições depois da que começa: Por ti feito pastor de branco gado, onde são absolutamente estranhas; e procurando nós outro lugar onde pudessem caber, não achamos outro mais proprio, que depois da 3.ª Estancia que começa: Tu que de formosissimas estrellas: para aqui as transportamos; ainda que nos parece que, omittidas inteiramente, fica a Ode mais perfeita.

 

P. 361. V. 2. Para ti no Erymantho o lindo Epilio.] Assim anda este verso nas primeiras edições. Faria e Sousa julga, com razão, que está viciado, porque não ha no Erymantho lugar que se chame Epilio: faz diversas conjecturas, e não sabe determinar-se. Nós julgamos que deve ler-se Pylio, porque por Pylio se entende a Elide, a que os Gregos chamavão Caloscopi (bella vista). E assim lhe quadra o epiteto de lindo que lhe dá aqui o poeta. E o verso todo deve corrigir-se assim

Para ti o Erymantho e o lindo Pylio{407}

 

P. 361. V. 5. Deste nosso oriente.] Todas as ed. Mas he vicio de copia, porque o poeta estava escrevendo em Africa, e não na India, como se infere desta mesma Ode, onde diz:

Olha como suspirão estas ondas,
E como o velho Atlante
O seu collo arrogante
Move piedosamente
Ouvindo a minha voz fraca e doente.

E portanto deve ler-se

Desse nosso Oriente

como Faria diz que vira em um manuscripto.

 

P. 363. V. 12. Meu infelice estado.] Todas as ed. Mas he êrro visivel, porque o estado nada lhe podia ordenar, propriamente fallando: e a verdadeira lição está saltando aos olhos:

Porque tem ordenado
Meu infelice Fado &c.

 

P. 363. V. 19. Humido inda do pranto.] Todas as ed. Mas he vicio, porque os sacrificios e offrendas á Noute de noute devem ser feitos; e este humido inda do pranto e lagrimas da esposa do cioso Titão denota que ja o sol era nado. E portanto a verdadeira lição he a que Faria diz encontrára n'um manuscripto:

Humido ja do pranto,

o que dá a entender que era sobre manhãa.

 

P. 368. V. 13. E assentareis meus prantos, meus clamores.] Todas as ed. Mas a verdadeira lição deste lugar he a que nos dá o P. Thomaz d'Aquino.

E sentireis meus prantos, meus clamores.

Porque o poeta não chama as Nymphas para que venhão applacar os seus prantos e clamores (que esse poder só tinha aquella, que os motivava); chama-as para que os venhão ouvir, e para que vejão a que estado o tem reduzido o seu amor, e a esquivança da sua amada.{408}

 

P. 380. V. 19. Ajuda quem ajuda contra a morte.] Todas as ed. He vicio: corrigimos

Ajudai quem ajuda &c.

 

P. 385. V. 17. E grita que culpado.] Todas as ed. Mas deve ler-se

E grita qu'he culpado,

porque do modo que está, não faz sentido.

 

P. 388. V. 21.
    Remette o moço logo
    Para onde estava a chaga sem socêgo.]
Todas as ed. Mas que he vicio, não ha duvida, porque a chaga devia elle ter no corpo, e não podia correr para ella: correo para a chamma, isto he, para a Nympha donde vinha o fogo que o abrasava. Corrigimos

Para onde estava a chamma sem socêgo.{409}