Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II

 

Notas de transcrição:

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CLASSICOS

PORTUGUEZES.

TOMO II.


CAMÕES.

II.

 

 

 

 


PARIZ.—NA OFFICINA TYPOGRAPHICA DE FAIN E THUNOT,
Rua Racine, 28, junto ao Odeon.{V}

 

OBRAS COMPLETAS

DE

LUIS DE CAMÕES,

CORRECTAS E EMENDADAS

PELO CUIDADO E DILIGENCIA

DE

J. V. Barreto Feito e J. G. Monteiro.

TOMO SEGUNDO.

 

Armas de Portugal

 

LISBOA.

ACHA-SE TAMBEM EM PARIZ,
NA LIVRARIA EUROPEA DE BAUDRY,
3, quai Malaquais, près le pont des Arts.

1843

{VI}
{VII}

 

 

PREFAÇÃO.

Os que são versados na historia terão feito esta observação, que em todos os povos que no mundo tem figurado, as armas precedêrão sempre ás letras. Para haver Homeros, necessario foi que houvesse primeiro Achilles. O amor da patria e da liberdade, e aquelle innato desejo, que mais ou menos violento segundo as diversas indoles, arde no coração de todo homem, de se elevar acima de seus iguaes por meio de acções grandiosas e sublimes, excitárão as almas nobres a tentar grandes empresas; e as façanhas dos heroes impellirão depois os bons engenhos a transmitti-las aos vindouros, elegantemente escrevendo em prosa ou verso. E nunca vimos que prosperassem muito as letras n'um povo indigno de historia. Assim que bem se póde dizer que sempre a penna dos Escritores foi aparada pela espada dos Guerreiros: testimunhas Grecia e Roma.

Portugal, des de o berço educado para as armas e endurecido na guerra, a todas as nações modernas se avantajou em gloria militar. Com poucas forças e meios não somente sustentou longas e terriveis{VIII} guerras, mas não contente de reconquistar e manter gloriosamente a sua independencia, emprehendeo mores cousas: devassou mares virgens, descobrio novas regiões, venceo e sujeitou a seu jugo muitos e mui poderosos Reis e povos; e tendo estendido o seu imperio até aos ultimos confins da terra, excitando a admiração das gentes com nunca vistos prodigios de industria, de valor, e de constancia por espaço de quasi cinco seculos, longo tempo se manteve no apice da grandeza e gloria humana: até que o ultimo Henrique, dessemelhante em tudo do primeiro, preparada ja nos dous antecedentes reinados a encosta por onde a illustre nação devia descer da altura a que subira; reunindo em si o Bago e o Sceptro e manchando as mãos sagradas nas cousas temporaes, a despenhou no abysmo, donde até hoje não ha podido mais levantar-se.

Tendo, pois, florescido tanto nas armas, razão era que florescesse tambem nas letras. E com effeito, despertados os engenhos com o estrondo dos feitos militares, um pouco mais tarde começárão ellas de nascer, e achando o chão propicio, pouco a pouco se forão arraigando de maneira, que ja no decimo terceiro seculo, reinando ElRei Dom Denis, desabrochárão suas primeiras flores; tendo aquelle grande Rei a gloria de lhes haver dado o primeiro impulso, escrevendo elle mesmo com summa elegancia para o tempo algumas obras, como um Tratado entitulado Dos{IX} principaes deveres da Milicia, e dous Cancioneiros, um dos quaes appareceo em Roma, reinando em Portugal João III. E no decimo quarto produzírão ja um tão sazonado fructo, como o Amadis de Gaula, obra de Vasco de Lobeira, que traduzida por Bernardo Tasso, pae do Epico Italiano, tamanho brado deo na Italia, e da qual o mesmo Epico diz (Defens. di Goffredo): Per giudizio di molti e mio particularmente è la più bella che si legga fra quelle di queste genere.... Perche nell'affetto e nei costumi se lascia addietro tutte l'altre, e nella varietá de gli accidenti non cede ad alcuna, che dapoi nè daprima fosse stato scritta. E como tal a exceptuou Miguel de Cervantes na revista que fez o Cura dos livros de Dom Quixote, dizendo: Este livro fué el primero de Caballarías que se escrevió en España, y todos los demas han tenido principio y origen deste.... Es el mijor de todos los que deste genero se han compuesto.

No decimo quarto se escreveo a Chronica do Condestavel e grande capitão Dom Nuno Alvares Pereira (primeiro ensaio historico de que temos noticia) que se imprimio em Lisboa em 1520.

No decimo quinto escreveo ElRei Dom Duarte O Leal Conselheiro, que se conserva na bibliotheca Real de París, e dous tratados entitulados, um Da Misericordia, outro Do Regimento da justiça{X} e Officiaes della etc. Seu irmão o Infante Dom Pedro, Duque de Coimbra, que veio a ser depois Regente do Reino durante a menoridade de Affonso 5.º, tambem escreveo algumas obras politicas e moraes em prosa e verso, algumas das quaes se imprimírão em Leiria 6 annos depois da invenção da imprensa, e traduzio do Latim e dedicou a seu irmão Dom Duarte Cicero de Officiis, e Vegetius de re militari. Ayres Telles de Menezes, que por esse mesmo tempo floresceo, foi elegante poeta; e delle nos conservou Rezende no seu Cancioneiro algumas poesias; e para que se veja a que estado de cultura e perfeição havia ja então chegado a nossa bella lingua, transcreveremos aqui a seguinte

                  ODE

  De pungentes estimulos ferido
O Regedor dos ceos e humilde terra,
Sôbre ti manda, desastrada Lysia,
        Effeitos da sua íra.

  A peste armada destruir teu povo
A um seu leve aceno vôa logo:
Estraga, fere, mata sanguinosa,
        Despiedada e crua.

  Despenhada no abysmo da ruina,
Fugir pretendes aos accesos raios,
Qual horrida phantasma, porém logo
        Desfallecida cahes.{XI}

  O açoute do Ceo lamenta, ó Lysia,
Mas inda muito mais os teus errores
Que provocar fizerão contra ti
        Contagião mortal.

  Dos Ceos apagar cuida a justa sanha
Da penitencia com as bastas ágoas,
Ja que revel e surda te mostraste

        A seus mudos avisos.
  Então verás ornada a nobre frente,
Como nos priscos tempos que passárão,
De esclarecidos louros, sinal certo
        De teus almos triumphos.

Por esse mesmo tempo Fernão Lopes, Duarte Galvão, Gomes Eanes de Zurara começárão a encommendar á memoria as façanhas dos Portuguezes, escrevendo regularmente as Chronicas dos nossos Reis des de a fundação da monarchia.

No principio do decimo sexto seculo Bernardim Ribeiro e Gil Vicente introduzírão, aquelle o estilo bucolico, este as representações theatraes. Francisco de Moraes escreveo o seu excellente Romance de Cavalleria, O Palmeirim de Inglaterra, do qual o mesmo Cervantes (que erradamente o attribue a ElRei Dom Duarte) faz o seguinte elogio: Esta palma de Inglaterra se guarde y se conserve, como cosa unica; y se haga para ella otra caja de oro como la que halló Alejandro en los despojos de Dario, que{XII} la diputó para guardar en ella las obras del poeta Homero. Este libro, Señor compadre, tiene autoridad por dos cosas; la una porque él por si es muy bueno, y la otra porque es fama que le compuso un Rey de Portugal. Todas las aventuras del castillo de Miraguarda son bonisimas y de grande arteficio, las razones cortesanas y claras, que guardan y miran el decoro dei que habla con mucho entendimiento. Digo pues.... que este y Amadis de Gaula queden libres del fuego; y todos los demas, sin hacer mas cala ni cata, perescan. Fernão Lopes de Castanheda e João de Barros, cognominado o Livio Portuguez, escrevêrão a historia das nossas descobertas e conquistas d'Asia. Sá de Miranda introduzio a verdadeira Comedia e a Satyra dos costumes, em que sobretudo he insigne. E finalmente, quando ja Portugal se avizinhava á fatal epocha da sua decadencia, veio tambem a produzir, como Roma, o seu Virgilio, dando ás letras um Camões; genio criador e sublime, que nascido para ser grande em tudo, se com soberano alento embocou a trombeta heroica, não pulsou com menor destreza a lyra, nem tirou da frauta sons menos harmoniosos e suaves.

Do seu Poema Epico ja n'outro lugar dissemos, não o que poderiamos dizer, mas o que julgámos bastante. Diremos tambem agora alguma cousa de suas poesias lyricas. E começaremos por observar que{XIII} se nenhum escritor foi mais desprezado e perseguido de seus compatriotas, tambem nenhuma nação ha sido tão castigada, como a Portugueza das perseguições e desprezos, que soffreo este grande homem, não della, mas do seu governo, e dos grandes e poderosos, de cujos crimes he quasi sempre o povo quem vem a pagar as penas. Porque não lhe tendo sido possivel, pela miseria em que viveo, dar á luz as suas poesias sôltas, não as polio nem limou, nem deixou collecção dellas; e assim as mais se perdêrão, e as outras, espalhadas por mãos de muitos, se forão corrompendo nas copias, de sorte que inda as que menos damno soffrêrão, andão hoje nas impressões mui diversas do que erão, quando sahírão da penna de seu autor. E assim veio esta culpa de alguns a ter para nós as mesmas consequencias, que teve a de Adam para a humanidade; isto he, cahir dos culpados sôbre os innocentes e estender-se a todas as gerações. E se não foi mais amplo este castigo, a Fernão Rodrigues Lobo Surrupita o devemos. Este, com incansavel diligencia juntando algumas obras varias, que pôde alcançar, as deo pela primeira vez á luz no anno de 1595, assim desfiguradas como as achou: com o que não só evitou perderem-se estas, mas com o seu exemplo instigou outros a proseguir na mesma diligencia: e assim se forão descobrindo mais algumas, que pelo tempo adiante se forão dando ao prelo.{XIV} De modo que podemos dizer que em todos os estilos nos ficou do nosso poeta apenas uma pequena amostra, para que pelo dedo se conhecesse o gigante. Porém de tal quilate he o ouro, que essas pequenas reliquias bástão para elevar o cume do nosso Parnaso a tal altura, que lhe não fique superior o de nenhuma outra nação estranha.

Porque nos Sonetos he eminente o nosso poeta; e para lhe obter a palma sôbre quantos neste genero de composição se tem exercido, bastaria, quando outros muitos não tivesse de igual belleza, só este, que he o 72:

                    SONETO

  Quando de minhas mágoas a comprida
Maginação os olhos me adormece,
Em sonhos aquella alma me apparece,
Que para mim foi sonho nesta vida.

  Lá n'uma soidade, onde estendida
A vista pelo campo desfallece,
Corro apos ella; e ella então parece
Que de mim mais se alonga, compellida.

  Brado: Não me fujais, sombra benina.
Ella, os olhos em mim co'um brando pejo
Como quem diz que ja não pode ser,

  Torna a fugir-me: tórno a bradar: Dina...
E antes que diga mene, acordo, e vejo
Que nem um breve engano posso ter.{XV}

Diante deste desapparece toda a caterva de Sonetos que tem inundado Italia e Hespanha. Impossivel parece que com palavras tão vulgares se podesse pintar tão bella imagem, exprimir tal sentimento. Da outra banda do Lethes, confinando com os Elysios, descortinou a imaginação de Virgilio umas dilatadas campinas, a que na sua Lingua Latina chamou Lugentes campi, que o nosso Franco Barreto traduzio: Campos sem luz, e nós diremos: Campos da Saudade. Nestes campos e pela mesma Saudade parece que foi ditado este maravilhoso Soneto, que em nossa fraca opinião inda não foi igualado, nem será nunca excedido. E como este puderamos citar muitos.

Nas Canções deixou a perder de vista a Petrarca, Bembo, e a quantos a este genero de composição se tem dado: o que melhor poderá ver quem quizer comparar umas com outras.

Nas Odes, como em todo outro genero de poesia, todos sabem que ha diversos estilos para os diversos assumptos. O que a cada um destes convem, a mesma natureza delle o indica; e tanto erraria o que descrevesse um prado florido, um ribeiro socegado, as graças de uma pastora, ou Diana exercendo as dansas e choreas de suas nymphas pelos cabeços do monte Cynthio, no mesmo estilo em que se deve descrever o mar impetuoso, o combate dos Athletas, ou Jove fulminando os gigantes, como vice versa.{XVI} Pindaro, Anacreonte, e Horacio são os tres poetas que neste genero se nos propõe por modelos. Mas que differença de estilo entre Horacio, Anacreonte, e Pindaro! Certamente não he menor que a que vai do bucolico ao lyrico, ou do lyrico ao epico. O nosso Camões, profundo conhecedor da natureza, e mestre em todos os estilos, habilmente soube escolher aquelle que mais convinha ás materias que tratava, sempre natural e facil, sempre elegante e florido, e muitas vezes sublime. E as suas Odes, ainda que não tenhão o requisito, que hoje se tem por essencial, de serem inintelligiveis, são pelos entendedores summamente louvadas, e até não falta quem as prefira ás Canções; mas desta opinião não somos, ainda que pensamos com Faria e Sousa, que a 4.ª, 6.ª, 9.ª e 10.ª tarde serão excedidas; e o mesmo diriamos da 1.ª se não andára viciada.

No estilo bucolico, de que o poeta parece mais se aprazia, e em que des de a puericia exerceo a sua Musa, he onde alguns lhe querem negar a palma, para a concederem a Bernardes. Verdade he que Bernardes, depois da morte de Camões, appareceo em publico mui bem ataviado; mas os que lhe conhecião os cabedaes, admirados de o verem tão ricamente vestido, logo disserão uns para os outros: Donde vem a Pedro fallar gallego? e Manoel de Faria e Sousa o chamou a juizo, e convencendo-o de furto,{XVII} o condemnou a despir na praça e restituir a seu dono parte dos vestidos roubados; sendo justo e de razão que quem o alheio veste, na praça o dispa. Mas deixando a Bernardes para outro processo, que intentamos fazer-lhe sobre estes mesmos roubos, passemos a examinar se he ou não exacto o juizo, que Luis de Camões se não mostrára tão grande poeta no genero pastoril, como no lyrico e heroico.

Surropita no seu prologo á primeira edição das Rimas foi o primeiro que emittio esta opinião desfavoravel ao poeta, quanto ao estilo bucolico, dizendo, depois de o louvar devidamente nos mais: Oxalá pudera humilhar a grandeza do seu engenho, conformando-se mais com o estilo bucolico! Da mesma sorte o julgou Faria e Sousa, a quem seguírão depois o Padre Thomaz de Aquino e outros, que sem se darem ao trabalho de profundar as cousas, querem decidir de tudo, sem appellação nem aggravo. Vejamos se tem razão.

Assenta este juizo principalmente sobre a Egloga 1.ª, que o poeta reputava pela melhor de quantas havia feito, e sobre a 6.ª, que elle de certo não tinha pela peor. E este voto do mesmo autor, que era tão grande homem, e no julgar de suas proprias obras nenhum interesse podia ter em exaltar umas para abater outras, ja he de algum momento. Porque, sendo a poesia, como a pintura, uma imitação da natureza,{XVIII} segue-se necessariamente que os melhores poetas e pintores são os mais profundos observadores e conhecedores da natureza, porque ninguem a póde perfeitamente imitar, sem que profundamente a conheça. Grandes imitadores, e portanto profundos conhecedores da natureza forão na poesia Homero, Virgilio, Camões etc., e na pintura Apelles, Raphael e Miguel Angelo; e mais val o voto de qualquer destes poetas ou pintores, que o de muitos milhões de versejadores ou borradores. Disse Camões que a sua Egloga de Umbrano e Frondelio, que Surropita e Faria tachárão de lavantada no estilo mais do que convinha ao genero bucolico, lhe parecia a elle a melhor de quantas fizera, isto he, que nella estava melhor imitada a natureza, que em todas as mais; e nós (se tambem nos he permittido interpor nossa humilde opinião) a temos não só pela melhor de quantas o poeta escreveo, mas de quantas havemos lido. E diremos o porque.

Preceito he, ditado pela mesma natureza, que tenha cada genero de poesia seu estilo particular, e que o som da frauta se não confunda com o da lyra ou da trombeta; mas tambem he preceito da natureza que, pois a choça e o throno estão igualmente sujeitos aos revezes da fortuna, e na vida pastoril pódem occorrer varios casos que dem assumpto ao poeta; se levante ou abaixe o estilo segundo for mais ou menos{XIX} alto o assumpto, e que se o pastor se propõe louvar o Consul se tornem as florestas dignas delle.

Si canimus sylvas, sylvae sint Consule dignae.

Assim o entendeo e fez Virgilio, assim o entendeo e fez Camões, e assim o estabeleceo depois em preceito o judicioso Boileau na sua arte poetica.

                 L'Églogue quelquefois
Rend dignes du Consul la campagne et les bois.

E contra estas autoridades e a razão em que se ellas fundão mal podem sustentar-se em campo os que pretendem que neste genero de poesia se não possa tratar senão assumptos de lana caprina na lingoagem dos trivios.

Na sua Egloga 1.ª lamenta o nosso poeta as mortes de Dom Antonio de Noronha e do Principe Dom João, que profundamente sentio, aquella como verdadeiro amigo, esta como optimo cidadão, que ja de longe previa as consequencias de tão desastrado acontecimento. E como o forte sentir produz o forte e elevado pensar, algumas vezes se eleva, assim na sentença como na dicção, até tocar as raias prescriptas a esta especie de poesia, mas não as transcende nunca; nem as figuras e imagens de que se serve, as estranha o estilo bucolico; e muito mais n'uma lingua, em que essas mesmas imagens e figuras de tal sorte estão recebidas, que até os mais rudos camponezes rara vez se exprimem sem ellas. Mas inda{XX} quando fossem alheias da linguagem vulgar, quem as estranharia na poesia, que de sua natureza se deve levantar do uso commum de fallar? Permitte-se a Virgilio dizer n'uma Egloga:

                   Ipsae te, Tityre, pinus,
Ipsae te fontes, ipsae haec arbusta vocabant.


  Estes pinheiros, Tityro, estas fontes,
  Estes mesmos arbustos te chamavão.

e não se hade consentir a Camões dizer:

Canta agora, pastor, que o gado pasce
Entre as humidas hervas socegado,
E lá nas altas serras onde nasce,
O sacro Tejo á sombra recostado
Com seus olhos no chão, a mão na face,
Está para te ouvir apparelhado;
E com silencio triste estão as Nymphas
Dos olhos destillando claras lymphas?

Emfim nesta admiravel Egloga nada falta da parte do poeta; se alguma cousa faltar, será da parte do leitor. Passemos agora á 6.ª

Nesta Egloga mistura o poeta o estilo pastoril e o piscatorio, de que elle foi entre nós o primeiro introductor, e que levou a tal perfeição, que desanimou os que depois se seguírão a ponto, que ficou quasi de todo esquecido. He o seu argumento uma contenda entre um pastor e um pescador sobre qual dos estilos deve ter a preferencia, cantando cada um a belleza{XXI} da sua amada. E ja daqui se vê que um e outro deve levantar o estilo quanto puder, e pôr nesta porfia todo o seu cabedal, para não ficar vencido. Esta Egloga he onde Faria mais se funda para dizer que o poeta se não podia domar na força do seu enthusiasmo. Mas tão longe está de justificar este juizo, que della mesma nos queremos servir para mostrar a pasmosa facilidade, com que o poeta sabia variar de tom e passar de um estilo a outro. E sem gastar mais palavras, passemos a analysar cada uma de suas Estancias, porque a verdade he facil de ver-se, e por si mesma saltará aos olhos.

Dá o pastor princípio á contenda, invocando as divindades campestres deste modo:

                    AGRARIO.

  Vós, semicapros deoses do alto monte,
Faunos longevos, Satyros, Sylvanos;
E vós, deosas do bosque e clara fonte,
E dos troncos que vivem largos anos;
Se tendes prompta um pouco a sacra fronte
A nossos versos rusticos e humanos,
Ou me dai ja a capella de loureiro,
Ou penda a minha lyra d'um pinheiro.

Sublime e admiravel invocação! Mas ouçamos agora o pescador

                    ALICUTO.

  Vós, humidas deidades deste pégo,
Tritões ceruleos, Próteo, com Palemo;{XXII}
Vós, Nereidas do sal em que navego,
Por quem do vento a furia pouco temo;
Se a vossas sacras aras nunca nego
O congro nadador na pá do remo,
Não consintais que a musica marinha
Vencida seja aqui na lyra minha.

Que terão que dizer esses Senhores a estas duas Estancias? Dirão que são demasiado sublimes, e que estão fóra do natural, porque a este simples, a este natural, a este sublime não podem elles chegar. Mas não lhes demos ouvidos, e continuemos a prestar attenção aos nossos contendores. Vejamos com que despejo entrão na lide.

                    AGRARIO.

  Pastor se fez um tempo o moço louro
Que do pae as carretas move e guia;
Ouvio o rio Amphryso a lyra d'ouro,
Que o seu claro inventor alli tangia.
Io foi vacca, Jupiter foi touro
Mansas ovelhas junto d'ágoa fria
Guardou formoso Adonis, e tornado
Em bezerro Neptuno foi ja achado.

A esta formosa Estancia em louvor da vida campestre oppõe o pescador a seguinte, exaltando a sua profissão.

                    ALICUTO.

  Pescador ja foi Glauco, e deos agora
He do mar, e Protêo phocas guarda;{XXIII}
Nasceo no pégo a deosa, qu'he senhora
Do amoroso prazer, que sempre tarda.
Se foi bezerro o deos que cá se adora,
Tambem ja foi delphim. Se se resguarda,
Vê-se que os moços pescadores erão,
Que o escuro enigma ao primo vate derão.

Agora passa o vaqueiro a queixar-se da frieza com que a sua pastora recebe as suas finezas.

                    AGRARIO.

  Formosa Dinamene, se dos ninhos
Os implumes penhores ja furtei
Á doce philomela, e dos murtinhos
Para ti (fera!) as flores apanhei;
E se os crespos madronhos nos raminhos
Com tanto gosto ja te presentei,
Porque não dás a Agrario desditoso
Um só revolver d'olhos piedoso?

Responde-lhe o seu adversario com uma Estancia do mesmo genero, segundo os preceitos do canto amebeo, ou alternado.

                    ALICUTO.

  Para quem trago d'ágoa em vaso cavo
Os curvos camarões vivos saltando?
Para quem as conchinhas ruivas cavo
Na praia, os brancos buzios apanhando?
Para quem de mergulho no mar bravo
Os ramos de coral vou arrancando,
Senão para a formosa Lemnoria,
Que co'um só riso a vida me daria?{XXIV}

Agora vão descrever, um as furias do ciume, outro as da desesperação de ver galardoado o seu amor. Vejamos como sahem da empresa.

                    AGRARIO.

  Quem vio o desgrenhado e crespo Inverno,
D'átras nuvens vestido, horrido e feio,
Ennegrecendo á vista o ceo superno,
Quando os troncos arranca o rio cheio;
Raios, chuvas, trovões, um triste inferno
Que ao mundo mostra um pallido receio:
Tal o amor he cioso a quem suspeita
Que outrem de seu trabalho se aproveita.

                    ALICUTO.

  Se alguem vê, se alguem ouve o sibilante
Furor lançando flammas e bramidos,
Quando as pasmosas serras traz diante,
Horrido aos olhos, horrido aos ouvidos;
A braços derribando o ja nutante
Mundo co'os elementos destruidos;
Assim me representa a phantasia
A desesperação de ver um dia.

Estas Estancias diz Faria que as estranha o estilo bucolico. Mas se as estranha necessariamente ha de ser ou pelos pensamentos ou pela dicção. Pelos pensamentos seguramente não he, porque ninguem dirá que está fóra do alcance de um pastor ou de um pescador o sentir a semelhança que tem as furias do ciume, ou da desesperação com as tempestades do inverno,{XXV} ou com o mar agitado pelos ventos. Pela dicção tambem não, porque se o pensamento não he estranho, tambem esta o não póde ser, quando tão perfeitamente se lhe accommoda e ajusta, como aqui se observa; e muito mais quando as mesmas figuras e imagens de que o poeta aqui usa, andão na boca do povo de sorte, que nada he mais ordinario que ouvir dizer a um camponez que o ceo está toldado de negras nuvens etc., ou a um marinheiro ou pescador que o vento traz todo o mar em serras diante de si; que parece querer destruir a terra etc. A differença está em que onde o pastor diria coberto ou toldado, diz o poeta vestido, e onde o marinheiro diria abalado, diz o poeta nutante, para se levantar um pouco do uso commum de fallar. E portanto não ha aqui impropriedade alguma; antes summa conveniencia de pensamentos e palavras. E desta mutua conveniencia e propriedade resulta esta viveza de pintura, esta sublimidade, de que se espanta Faria. Porém sem razão se espanta, porque fóra do natural não ha sublime, e o que he natural não se estranha. Nem se persuada ninguem que se o poeta aqui se elevou, foi porque não podia domar-se; que mui de proposito o fez, por assim julgar que o devia fazer. Porque não ha poeta, que melhor soubesse variar de tom, pintar os objectos com propriedade e viveza, e seguir com a phrase o pensamento. Senão veja-se nas{XXVI} Estancias logo seguintes como ja serpeia manso regato o que inda ha pouco era rio caudaloso.

                    AGRARIO.

  Minha alva Dinamene, a primavera
Que os deleitosos campos pinta e veste,
E rindo-se uma côr aos olhos gera,
Que em terra lhes faz ver o Arco celeste;
As aves, as boninas, a verde hera,
E toda a formosura amena agreste
Não he para os meus olhos tão formosa,
Como a tua, que abate o lirio e rosa.

 

                    ALICUTO.

  As conchinhas da praia, que presentão
A côr das nuvens, quando nasce o dia;
O canto das Sirenas, que adormentão;
A tinta que no murice se cria;
O navegar por ondas, que se assentão
Co'o brando bafo, com que o sol s'enfria,
Não podem, Nympha minha, assi aprazer-me,
Como o ver-te, se em tanto chego a ver-me.

 

                    AGRARIO.

  A deosa, que na Lybica lagôa
Em fórma virginal appareceo,
Cujo nome tomou, que tanto sôa,
Os olhos bellos t~ee da côr do ceo:
Garços os tem; mas uma, que a corôa
Das formosas do campo mereceo,{XXVII}
Da côr do campo os mostra graciosos.
Quem não diz que são estes os formosos?

 

                    ALICUTO.

  Perdoem-me as deidades, mas tu diva
Que no liquido marmore es gerada,
A luz dos olhos teus, celeste e viva,
Tens por vicio amoroso atravessada:
Nós petos lhe chamâmos: mas quem priva
De luz o dia, baixa e socegada
Traz a dos seus nos meus, qu'eu o não nego,
E com toda esta luz sempre estou cego.

Agora diga quem nasceo para sentir as bellezas da natureza, se ha em Theocrito ou Virgilio, ou algum outro poeta antigo ou moderno, um desafio igual a este, ou se póde chegar a mais a perfeição humana. E eis-aqui as duas Eglogas com que alguns individuos, que tendo olhos e tempo para ler muito, os não tiverão para observar a natureza, e conhecer com que ampliações ou restricções se devem entender e applicar os preceitos de Aristoteles e Horacio, pretendêrão provar que o nosso poeta não possuia o estilo bucolico. Certo que não ha na republica das Letras sevandijas mais nojentas, que certos homens de espirito acanhado, que enfatuados com graos de Doutores e titulos de Academicos, sem nunca terem produzido nem serem capazes de produzir cousa alguma, se arrogão o direito de taxar o merecimento e preço das obras dos grandes homens.{XXVIII}

Mas inda quando fosse verdade que da frauta se não podesse tirar mais que um som unico, e a respeito destas Eglogas a razão da parte delles, e não da nossa estivesse, ousarião esses Aristarchos dizer que em todas as mais, e com especialidade na 8.ª, 9.ª, 10.ª, 11.ª, 13.ª, 14.ª se não encontra o verdadeiro estilo bucolico, e em tal perfeição que nenhuma inveja podemos ter a Theocrito ou Virgilio? E se estes dous poetas que neste genero se recommendão como modelos, julgárão não offender os preceitos d'arte, aquelle em levantar o estilo a ponto de poder celebrar na humilde avena os louvores de Ptolomeo Philadelpho e alguns dos trabalhos de Hercules, que parecião mais proprio assumpto para uma Ode Pindarica, este de tornar a selvas dignas do Consul, sem que por isso deixassem de ser olhados como oraculos; por que lei ou com que autoridade pretendem esses guarda-portões do Parnaso expulsar o nosso poeta do lugar que ao lado desses primeiros mestres, lhe assinou o mesmo Apollo.

Doze Elegias temos do nosso poeta, (porque as que nas edições posteriores á de Faria se forão introduzindo, assim como os tres Cantos da Criação do homem e alguns Sonetos, que atéqui andavão com o titulo de Obras Attribuidas, evidentemente não são delle, e por isso os rejeitamos nesta edição) e ainda que destas doze apenas quatro ou cinco se podem{XXIX} propriamente chamar Elegias; dellas se vê que tambem neste estilo era excellente.

Temos tambem tres Comedias suas, a de ElRei Seleuco, que he um pequeno Drama, daquelles a que os nossos antigos chamavão Autos, a dos Amphytriões, que não he, como diz Severim de Faria, uma traducção de Plauto, mas sim uma composição sua, e a de Filodemo, ambas em cinco actos: as quaes se não podem appresentar-se como modelos de verdadeira Comedia, todavia he preciso confessar que ha nellas muito que admirar. E muito mais se considerarmos que forão escritas nos seus primeiros annos, antes de sahir do Reino, e não para se representarem em Theatro publico, que nesse tempo não havia, mas para divertimento particular.

E se nos versos maiores deixou a perder de vista todos os mais poetas peninsulares, tambem nas Redondilhas e outras composições de verso menor (nas que de impulso proprio escreveo; que muitas andão impressas, que elle, se fosse vivo, não dera á luz) se lhes avantajou muito. E assim por consenso universal lhe foi conferido o titulo de Principe dos poetas heroicos e lyricos de Hespanha.

Emfim poucas nações se podem gloriar de haverem produzido um homem como Luis de Camões; raras vezes se vírão reunidos n'um só sujeito tantos talentos e dotes da natureza, tão vasta erudição e doutrina,{XXX} tanta facilidade em exprimir seus pensamentos. Igualmente versado nas artes da paz e da guerra, Achilles e ao mesmo tempo Homero, com a espada e com a penna toda a vida trabalhou por illustrar a sua patria: e se a Fortuna lhe impedio igualar a fama dos grandes capitães, não lhe pôde estorvar (porque nas obras de engenho não tem imperio a Fortuna) igualar a dos summos escritores, e levar a nossa gloria literaria a ponto de hombrear com a militar.

Porém desgraçadamente, quando uma ia emparelhando com a outra, confundio tudo a Fortuna, que a seu arbitrio dispõe das cousas humanas; e ambas desapparecêrão com a nossa liberdade e independencia. Se nenhuma nação subio mais alto, tambem nenhuma deo maior quéda. Cumprida está a primeira parte da prophecia do fundador da monarchia: resta cumprir-se a segunda; que tambem se ha de cumprir. Quando expurgados os vicios que nos ficárão da antiga prosperidade, e reformados nossos costumes na frágoa da desgraça, tiver renascido no coração de todos os Portuguezes aquelle amor de patria, que tanto distinguio nossos maiores, brilharemos outra vez nas armas, brilharemos nas letras; tornaremos a ser o que ja fomos. E para isso nada póde tanto contribuir, como a contínua e reflectida lição das obras do nosso immortal Camões, que, se foi grande escritor, inda foi melhor cidadão. Por isso com tanto cuidado as estamos{XXXI} alimpando dos muitos erros e vicios das primeiras edições, para que melhor sejão entendidas e gostadas: na esperança de que o seu poema dos Lusiadas virá a ser uma trombeta, que assim mesmo enrouquecida como está pela abominavel Censura, fara um dia resurgir os mortos.{XXXII}

VIDA
DE
LUIS DE CAMÕES.

Muitos tempos se esteve em duvida ácerca do anno e do lugar em que nasceo Luis de Camões; o que deo causa a que algumas villas e cidades disputassem entre si a gloria de lhe haverem dado o berço, para que em tudo o Lusitano Homero corresse a sorte do Grego. Pedro Mariz, o primeiro que nos deo algumas noticias da vida do poeta, pela maior parte mal averiguadas e falsas, nada nos diz a este respeito; e Severim de Faria o deo primeiramente nascido em 1517, porém depois reparando que o poeta quando escrevia a Estancia 9.ª do Canto X, ia caminhando para os seus cincoenta (que isso quer dizer o passar do estio para o outono) e computando melhor o tempo, veio a concluir que devia ter quando morreo 55 de idade, e que portanto havia nascido em 1524: o que depois comprovou Faria e Sousa com um assento, que descobrio no livro de Registo da Casa da India, onde o mesmo poeta, allistando-se para passar a servir naquelle Estado no anno de 1550, declarou, estando alli presente seu pae, ter 25 de idade. E do mesmo assento constava serem seus paes moradores em Lisboa no bairro da Mouraria: com o que se tirárão todas as duvidas assim ácerca do anno, como do lugar do seu nascimento.{XXXIII}

Quem fossem seus ascendentes, cousa he que aos olhos do philosopho mui pouco importa saber-se, porque o homem he filho das proprias obras, e verdadeiramente nasce para os outros, quando lhes principia a ser util; como o sol, que então dizemos que nasce, quando começa a raiar por cima do horizonte. Mas, pois vivemos no mundo, e forçado he conformarmo-nos com os prejuizos delle, daremos tambem aqui a nossos leitores a sua genealogia.

A familia dos Camões, uma das mais antigas de Hespanha, tinha o seu Solar na Galiza, onde era senhora de muitas terras e gozava de muitas regalias. Vasco Pires de Camões, ultimo representante desta familia, fôra um dos fidalgos que Dom Fernando, 9.º Rei de Portugal, trouxera a seu partido, quando aspirava á coroa de toda a Hespanha. Mas, como se malograsse a empresa, teve este fidalgo de abandonar a antiga patria e passar-se a Portugal, onde aquelle Rei, em recompensa do muito que por seu respeito perdêra, lhe fez mercê das villas do Sardoal e Punhete, Marvão e Amendoa, com o Concelho Géstaço e as terras e herdades, que em Estremôz e Avís forão da Infanta Dona Beatriz; e o fez Alcaide mor de Portalegre e membro do seu conselho.

Casou Vasco Pires neste Reino com uma filha de Gonçalo Tenreiro, capitão mor das armadas, a quem Dom João 1.º, sendo ainda Defensor do Reino, deo depois a capitania de Lisboa, pola muita confiança que tinha ha sua honra e valor. E della houve a Gonçalo e João Vas de Camões. Mas a inconstancia do pae cortou depois a fortuna aos filhos. Porque na{XXXIV} guerra, que por morte de Dom Fernando veio a ter lugar por causa da successão, como Vasco Pires seguisse a voz de Castella, como antes seguíra a de Portugal, e na batalha de Aljubarrota fosse tomado com as armas na mão, lhe forão tiradas todas as terras e fortalezas que Dom Fernando lhe dera, deixando-lhe apenas a clemencia do vencedor as herdades de Estremôz e Avís, com algumas propriedades que tinha em Alemquer.

João Vas de Camões, que era o segundo genito, e veio depois a ser Vassallo de Affonso 5.º (titulo então mui honorifico) pelos relevantes serviços que lhe fez nas guerras de Africa e contra Castella, casou com Ignez Gomes da Silva, filha bastarda de Jorge da Silva, filho de Gonçalo Gomes da Silva e irmão de João Gomes da Silva, que em tempo de Dom João 1.º, fôra Alferes mor do Reino e Senhor de muitas terras: e deste matrimonio houve a Antão Vas de Camões, que, desposando a Guiomar da Gama (da familia do Descobridor) della teve a Simão Vas de Camões, que casou com Anna de Macedo, pessoa mui illustre da villa de Santarem. E destes nasceo o nosso poeta.

Robusto e agil de corpo, e dotado de grande engenho e de uma prodigiosa memoria, logo des de os primeiros annos deo mostras de que viria a ser insigne, assim nas armas, como nas letras. Pelo que seus paes se empenhárão em lhe dar uma boa educação, com tanto maior desvelo, quanto se vião faltos de meios, na esperança de que viria a ser o bordão de sua velhice. Instruido nas primeiras letras e habilitado para maiores estudos, de mui tenra idade o{XXXV} mandárão para a Universidade que de Lisboa (para onde a trouxera Dom Fernando) acabava de ser então restituida a Coimbra por João III, e florescia em todas as sciencias sob a direcção e disciplina de homens doutos, naturaes e estrangeiros, que este Rei com largos premios de toda a parte attrahíra. Com tão felizes disposições e tão sabios preceptores, não podia Luis de Camões deixar de fazer agigantados progressos, e de vir a ser o que foi.

Aqui teve elle os seus primeiros amores, e se começou a dar ao commercio das Musas, que encantadas de tão gentil alumno, o prendárão des de logo com aquella doce lyra, que depois lhe adquirio mais fama que ventura. E desse tempo de Coimbra he a sua Egloga 5.ª, que parece ter sido o seu primeiro ensaio no estilo pastoril, pois que nas primeiras edições se entitula da sua puericia, por se haver encontrado com esse titulo em todos os manuscriptos, e tambem o Soneto 111, que segundo delle se infere, foi feito quando voltava de férias, ja ferido de outra paixão.

Concluidos os seus estudos, voltou á Corte: e com que saudade se apartasse daquella deliciosa habitação, onde lhe ficava o doce emprêgo de seus cuidados, se póde ver do Soneto 133, feito nesta despedida. Restituido á patria, cheio de tão saudosas lembranças, ahi escreveo aquella maviosa Canção que principia:

Vão as serenas ágoas
Do Mondego descendo etc.

Mas em quanto ao som da lyra entoava este harmonioso canto, lhe estava Amor preparando novo assumpto.{XXXVI} Fazia então o principal ornamento do paço uma Dama, illustre por nascimento, e mais ainda por sua rara belleza, Dona Catharina de Ataide, que estava destinada a ser Laura de maior Petrarca. Vio-a Luis de Camões em um templo, que dos Sonetos 77 e 123 se infere ser o das Chagas; e o mesmo foi vê-la, que ficar perdido de amores. Des de então não soube mais parte de si; e ufano de se ver vencido de tão peregrina formosura, divinamente inspirado, compoz a maravilhosa Canção 7.ª; e como quem desejava que este passo, o mais notavel da sua vida, ficasse dignamente celebrado; com ser aquella Canção uma das mais sublimes producções do espirito humano, inda não satisfeito della, a procurou reformar na 8.ª: mas, não sendo possivel subir-se a mais, uma e outra sahírão tão iguaes, que não he possivel saber-se qual dellas seja melhor, ou a qual dava o poeta a preferencia. Cansa-se Faria e Sousa em nos provar que estes amores erão puramente Platonicos; mas disso não ficamos por fiadores, porque o poeta rara vez se afastou do natural; e se usava desta lingoagem, era para melhor insinuar-se a fim de obter seu intento, porque o lascivo desejo, que manifesta na Canção 15 onde diz:

Des que com gentil arte
Vestís de flores bellas
A terra, que tocais co'a bella planta,
Quantas vezes com vê-las,
Quiz n'uma dessas flores transformar-me!
Porque vendo pisar-me
Desse candido pe, que a neve espanta,
Póde ser que na flor mudado fòra
Que deo a Juno irada a linda Flora.{XXXVII}

não deixa a este respeito duvida alguma a quem tiver noticia da maneira por que Marte foi gerado.

Aos extremos e finezas do seu amor não foi a Nympha insensivel: e assim, amante e amado, se reputava o mais feliz dos homens: quando, por pouco acautelado em occultar esta fatal paixão (como elle mesmo confessa, Egloga 3.ª) que lhe occasionou depois todas as desgraças da sua vida, foi desterrado da Corte para Santarem, ou outra povoação das que ficão sobre o Tejo, como se colhe da Elegia 1.ª E que neste meio tempo estivesse tambem alguns dias hospedado em casa de um seu amigo, nas vizinhanças do Zezere, se infere da Canção 13. Depois ou porque este desterro se lhe tornasse insoffrivel, ou porque tivesse ja fallecido Dona Catharina (que segundo affirma Faria e Sousa, pouco tempo viveo depois do princípio destes amores) determinou passar a Africa, onde seu pae então militava; e ahi, peleijando a seu lado, em um combate naval com os Mouros junto a Ceuta perdeo o olho direito. E porque no fogo de Amor trazia sempre o coração abrazado, e agora do fogo de Marte recebêra aquella offensa; no escudo que trazia em branco, como cavalleiro donzel, mandou pintar por divisa a ave Phenix ardendo sobre as chammas, como elle mesmo diz, Canção XI, Estancia 10.ª

Agora exprimentando a furia rara
De Marte, que nos olhos quiz que logo
Visse e tocasse o acerbo fructo seu.
E neste escudo meu
A pintura verão do infesto fogo.{XXXVIII}

Depois de alli servir algum tempo, voltou á patria, onde por travessuras amorosas e brigas com seus rivaes se lhe movêrão taes perseguições, que para fugir aos laços que se lhe ormavão, não encontrou melhor meio, que o de passar a servir na India. No anno de 1550 se alistou, como dissemos, para sahir na mesma nao, em que ia o Viso-Rei Dom Affonso de Noronha: mas esta nao, pelo mao estado em que ia, depois de sahir, arribou ao porto de Lisboa para se concertar, e o poeta, se acaso estava a seu bordo, tornou a desembarcar; e ou por falta de saude, ou por outro impedimento se deixou ficar em terra; e não veio a sahir para o seu destino, senão dous annos depois, no de 1553, como consta de outro assento do ja citado livro de Registo, tambem achado por Faria e Sousa: e foi na mesma nao, em que ia Fernão Alvares Cabral, capitão mor de quatro, que então sahírão do Tejo, das quaes só esta pôde chegar no mesmo anno a Goa, depois de haver soffrido grandes tormentas. E tão anojado ia o poeta contra a patria, que as derradeiras palavras que disse na despedida, forão (como se ve de uma carta que de Goa escreveo) as de Scipião Africano: Ingrata patria, non possidebis ossa mea.

Na occasião da sua chegada a Goa, como o Viso-Rei Dom Affonso estivesse aprestando uma grossa armada para ir em soccorro do Rei de Porcá, nosso alliado, a quem o da Pimenta ou Chembé havia tomado uma ilha, o acompanhou o poeta nesta expedição, cujo successo elle mesmo brevemente refere na Elegia 3.ª; e com elle voltou a Goa. Em Setembro do{XXXIX} seguinte anno de 1554 chegárão as naos do Reino, em que ia Dom Pedro Mascarenhas succeder a Dom Affonso; e então se divulgou a triste noticia das mortes de Dom Antonio de Noronha, sobrinho do Viso-Rei, e do Principe Dom João, as quaes o poeta profundamente sentio; aquella como verdadeiro amigo, esta como optimo cidadão, que ja de longe previa as consequencias de tão funesto acontecimento: e a este assumpto escreveo a Egloga 1.ª e o Soneto 12 que enviou a um seu amigo de Lisboa em uma carta com data de Janeiro de 1555.

E tão bem-quisto e estimado de todos estava então alli o poeta, que nessa mesma carta se dava por feliz em haver passado á India, dizendo: Emfim, Sñr., eu não sei com que me pague saber tão bem fugir aos laços que nessa terra me armavão os acontecimentos, como com vir para esta, onde vivo mais venerado que os touros de Merciana, e mais quieto que a cella de um frade prégador. Mas esta felicidade e socego não lhe durou muito, porque logo no anno seguinte, vindo a fallecer Dom Pedro Mascarenhas, e succedendo-lhe no governo Francisco Barreto, que não era affecto ao poeta, o desterrou de Goa. Sobre a causa deste procedimento e tempo em que teve lugar, não concordão os autores. Manoel Correa no seu commento á Est. 128 do Canto X diz que tendo Luis de Camões exercido na China o Officio de Provedor mor dos defuntos, em que fôra provido pelo Viso-Rei, quando voltára a Goa, fôra preso por Francisco Barreto, pela fazenda dos defuntos que trazia comsigo e perdêra em um naufragio, que miseravelmente{XL} soffrêra na costa de Camboja. Pedro Mariz he da mesma opinião, e acrescenta que Fransisco Barreto o mandára preso e capitulado para o reino. E nem um nem outro fazem menção do desterro. Manoel Severim nega que o Viso-Rei Dom Pedro Mascarenhas o provesse em tal Officio, e he de parecer, que tendo o poeta ido na armada que este Viso-Rei mandára ao Estreito do mar roxo a cargo de Manoel de Vasconcellos, voltando a Goa, fizera aquella Satyra contra os que havião festejado a successão de Francisco Barreto; do que este resentido, ou por zelo da justiça, ou por queixas dos motejados, o desterrou no anno de 1556: e a este parecer se encosta Manoel de Faria e Sousa. Mas em tudo isto não ha de verdadeiro, senão que Luis de Camões foi desterrado por Francisco Barreto, como passâmos a demonstrar.

Chegou Luis de Camões a Goa em Setembro de 1553; acompanhou o Viso-Rei Dom Affonso de Noronha na expedição contra o Rei de Chembé, e com elle voltou a Goa; em Janeiro de 1555 ahi estava, porque ahi escreveo a Egloga, Soneto e Carta que dissemos; em 16 de Junho do mesmo anno, em que succedeo no governo Francisco Barreto, ainda ahi estava, como se prova com a mesma Satyra, em que descreve as festas que por essa occasião se fizerão, como testimunha ocular. Logo não foi Luis de Camões provido pelo Viso-Rei Pedro Mascarenhas no cargo de Provedor mor dos defuntos para a China, como affirmão Manoel Correa e Pedro Mariz, nem sahio para o Estreito de Meca na armada de Manoel de Vasconcellos, como conjectura Severim de Faria, porque essa armada voltou a Goa{XLI} em Outubro, e Francisco Barreto entrou no governo em Junho do mesmo anno, como dissemos. Tambem he falso que Luis de Camões, voltando de Macao a Goa, fosse preso por Francisco Barreto, pelo dinheiro das partes que perdêra no naufragio, porque nem isso lhe podia ser imputado a crime, não estando em sua mão evitar um tal desastre, nem Francisco Barreto o podia mandar prender, porque em Setembro de 1558 entregou elle o governo ao Viso-Rei Dom Constantino, e Camões voltou a Goa depois do anno de 1560. E a falsidade da asserção de Mariz, que o poeta viera preso e capitulado para o Reino, se prova com a outra sua asserção, que Pedro Barreto, indo por governador de Çofala, e desejando levar a Luis de Camões na sua companhia, lhe fizera largas promessas e o movêra a isso, dando-lhe logo duzentos cruzados para os seus arranjos de viagem, porque se tudo isto foi necessario para o mover, certo he que estava em sua plena liberdade.

Vejamos agora se este desterro do poeta seria, como pensão Manoel Severim e Manoel de Faria e Sousa, em consequencia da Satyra ou das Redondilhas, que andão nas suas Rimas com o titulo de Disparates na India.

Pelas Redondilhas não podia ser, porque se o poeta alguns vicios ahi reprehende, o faz de um modo tão geral, que ninguem em particular se poderia dar por offendido; e pela Satyra tambem não; e as razões em que nos fundamos são estas: O desterro de Camões foi uma cousa notoria a seus contemporaneos, assim porque muitos havião sido testimunhas do mesmo{XLII} facto, como porque o poeta em seus escritos o publicou ao mundo inteiro; e se o motivo delle tivesse sido esta satyra, com a pena constára juntamente a culpa. Mas nem Manoel Correa, nem Pedro Mariz, que para desculpar a Barreto não poupou a Camões, lhe assinárão esta causa; prova evidente de que não tiverão della noticia alguma, porque, se a tivessem, não andárão inventando outras. Domingos Fernandes descobrio um fragmento della, com duas cartas em prosa, que ajuntou na 3.ª edição das Rimas em 1607; e logo Manoel Severim, por achar sem fundamento as causas que se davão deste desterro, o attribuio a esta; que tão innocente foi a vida de Camões, que com ter tantos inimigos, nenhum delles lhe pôde descobrir crime ou falta, sôbre que recahisse um tal castigo. Mas além desta razão, que nos parece mui ponderosa, para acreditarmos que esta Satyra não havia sido publicada, nem para isso tinha sido escrita, temos ainda outra, e he, que na carta 2.ª, a que ella andava unida, começa Luis de Camões por pedir ao amigo a quem a dirigio, o mais inviolavel segredo, dizendo: Esta vai com a candeia na mão morrer nas de V. M.; e se dahí passar seja em cinzas etc. donde se deve suppor que vai a fazer alguma revelação de alta importancia; e em todo o seu conteudo não apparece cousa, que se não podesse dizer em publico: por onde nos inclinâmos a crer que nella vinha incluso algum outro papel, que fazia necessaria aquella recommendação; e não podia ser senão a Satyra. Ajuda esta conjectura a grande probabilidade que ha, de serem uma e outra escritas na mesma occasião; porque{XLIII} só duas teve o poeta, de escrever para o Reino depois da sua chegada á India, e antes de ser desterrado: em 1555 pelas naos que trouxerão a carta que tratava das mortes de Dom Antonio de Noronha e do Principe Dom João, ou pelas que de lá vierão em 1556, governando ja Francisco Barreto; e na primeira occasião de certo não foi escrita, nem tambem depois do desterro, por ser em estilo jocoso e não fazer menção alguma destes acontecimentos, que tanto o magoárão. Acresce mais que na mesma carta parece alludir á enfatuação e soberba do governador, quando diz: Principes de condição, ainda que o sejão de sangue, são mais enfadonhos que a pobreza: fazem com suas fidalguias, com que lhe cavemos fidalguias de seus avós, onde não ha trigo tão joeirado, que não tenha alguma hervilhaca. Ora se o segredo que o poeta recommendava ao seu amigo, era (como parece) por causa desta Satyra, não he verosimil que elle mesmo fizesse publico em Goa o que tão secreto queria a tantas mil legoas de distancia. Além de que se Luis de Camões quizesse publicamente satyrizar a Francisco Barreto, certo he que lhe assentára mais de rijo a espada do ridiculo, que melhor que ninguem sabia manejar. E tambem he certo que, se Francisco Barreto alcançasse este papel, ou tivesse algum outro crime de que arguir o poeta, não deixára de o mandar julgar conforme as leis; nem um homem tão comedido, como Luis de Camões, quando tivesse merecido um tal castigo, se queixára tão amargamente deste desterro em tantos lugares das suas obras, como nos Lusiadas, Canto VII, Est. 81.{XLIV}

E ainda, Nymphas minhas, não bastava
Que tamanhas miserias me cercassem,
Senão que aquelles que eu cantando andava
Tal premio de meus versos me tornassem!
A trôco dos descansos que esperava,
Das capellas de Louro que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventárão,
Com que em tão duro estado me deitárão.

e na Canção XI:

Emfim, não houve trance de fortuna,
Nem perigos nem casos duvidosos,
Injustiças daquelles, que o confuso
Regimento do mundo, antigo abuso,
Faz sobre os outros homens poderosos,
Que eu não passasse, atado á fiel columna
Do soffrimento meu, que a importuna
Perseguição de males em pedaços
Mil vezes fez á força de seus braços.

e naquellas admiraveis Redondilhas, em que paraphraseando o Psalmo 136, compara as suas calamidades ás que padecêrão os Israelitas no captiveiro de Babylonia:

A pena deste desterro,
Que eu mais desejo esculpida
Em pedra ou em duro ferro etc.

Nem com tanta vehemencia pedíra aos Ceos vingança, como ahi mesmo:

No grão dia singular
Que na lyra em douto som
Hierusalem celebrar,
Lembrai-vos de castigar
Os ruins filhos de Edom.
Aquelles que tintos vão{XLV}
No pobre sangue innocente,
Soberbos co'o poder vão,
Arrazá-los igualmente:
Conheção que humanos são.

Emfim, que foi arbitrario e injusto este procedimento, não ha duvida, porque se esta pena lhe houvesse sido imposta judicialmente; na mesma sentença lhe fôra limitado o tempo e o lugar do desterro, segundo as leis do Reino e a prática de todos os tribunaes: e o poeta andou peregrinando por varias terras, como elle mesmo diz, Canto VII, Est. 79, fallando com as Tagides:

Olhai que ha tanto tempo que cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos
A fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo e novos danos.

e Est. 80:

Agora com pobreza aborrecida
Por hospicios alheios degradado.

Primeiro esteve no monte Feliz, na Arabia do mesmo nome, como se vê da Canção X, que o poeta escreveo ja no desterro, e não andando em expedição, como suppõe Manoel Severim, e Manoel de Faria e Sousa, porque se assim fosse não diria elle, nem teria razão para dizer:

Aqui me achei gastando uns tristes dias,
Tristes, forçados, maos e solitarios,
De trabalho, de dor, e de ira cheios.

porquanto nem os dias que em serviço da sua patria gastasse, serião forçados, porque a servia por gôsto, nem solitarios, porque não havia de ir só á guerra,{XLVI} nem cheios de ira, porque esta só póde nascer de alguma injúria ou violencia soffrida.

Dalli passou á Ilha de Ternate, uma das Molucas, onde militou alguns annos e recebeo algumas feridas, como consta da Canção 6.ª

Aqui minha ventura
Quiz qu'uma grande parte
Da vida que não tinha se passasse,
Para que a sepultura
Nas mãos do fero Marte
De sangue e de lembranças matizasse.

E que tambem esta foi escrita no desterro, he fóra de toda a duvida, não só porque isso mesmo consta do remate della

Canção, neste desterro viverás,
Voz nua e descoberta,
Até que o tempo em eco te converta.

mas muito principalmente porque o não podia ser antes; sendo certo, como ja fizemos ver, que até ao anno de 1556 não sahio de Goa o poeta, ou se sahio em alguma expedição, não foi longa a sua ausencia.

De Ternate passou emfim a Macao, do que ainda hoje faz fé uma gruta que ahi existe, chamada a gruta de Camões. Com o que julgâmos ter demonstrado que o poeta foi arbitrariamente expulso de Goa, e portanto sem haver commettido crime, sôbre que recahisse uma tal pena. Donde se segue ser falso quanto a este respeito tem dito os que nos precedêrão neste trabalho. E assim se ha de ter por certo que a unica e verdadeira causa das perseguições e trabalhos, que soffreo este grande homem, foi a mesma{XLVII} grandeza do seu merecimento e virtude. E a Satyra, unica acção reprehensivel que na sua vida se encontra, não serve senão para provar que entre Camões e Barreto havia inimizade. Nem em tal disparidade de sentir e de pensar podia haver perfeita concordia. Francisco Barreto, homem soberbo e mediocre, posto que não desajudado da Fortuna, que sempre se inclina mais a esta especie de gente, não podia amar nem soffrer um homem tão superior, como Luis de Camões: desejava-o longe de si, para que não fosse testimunha e juiz das suas acções; e apenas se vio com o poder na mão, o prendeo e desterrou, deixando-se arrastar da sua paixão, ou dando ouvidos a mexericos e calumnias, como affirma o commentador Manoel Correa, que o ouvio da propria boca do poeta: o que perfeitamente se ajusta com o que elle mesmo nos diz nos ultimos dous versos da ja citada Estancia 81 do Canto VII:

Trabalhos nunca usados me inventárão,
Com que em tão duro estado me deitárão.

Nem este foi o só acto despotico do governador Francisco Barreto. Porque, tendo mandado destruir por Pedro Barreto Rolim a florescente e populosa cidade de Tatá no reino de Cinde, que tinha grande trato de commercio com a nossa praça de Ormus, como o governador della, Dom João de Ataide, censurasse esta medida cruel, assim por humanidade, como pela deminuição que dahi resultava nos rendimentos daquella Alfandega, e isto chegasse aos ouvidos de Barreto; o mandou autoar por um Desembargador e conduzir{XLVIII} preso a Goa para ser julgado, não obstante haver sido provido por ElRei no governo daquella fortaleza, e ter grande valimento na Corte. E se isto ousou fazer a um poderoso, como teria mais respeito a um desvalido?

Depois de tantos trabalhos, parece que, chegado a Macao, ahi encontrou algum descanso; e ahi concluio o seu Poema: e tambem he tradição que exercêra o Officio de Provedor dos defuntos, em que adquiríra alguma fortuna. O certo he que Luis de Camões das ilhas Molucas passou a Macao, e que de lá voltou a Goa, depois do anno de 1558, quando ja governava aquelle Estado o Viso-Rei Dom Constantino de Bragança; trazendo algum cabedal, fosse adquirido no exercicio daquelle cargo, ou por outros meios, porque isso mesmo se entende da Est. 80 do Canto VII onde diz:

Agora da esperança ja adquirida
De novo mais que nunca derribado.

Porem, chegando á costa de Camboja, de fronte da foz do rio Mecom, deo a nao em uns baixos, onde se fez em pedaços; e deste naufragio, perdida toda a sua fortuna, pôde apenas salvar a vida e o seu Poema, ganhando, como Cesar, a praia a nado. E deste infortunio e da humanidade, com que foi recebido e agasalhado por aquelles povos, se lembra elle no Canto X, Est. 128, onde diz, fallando do rio Mecom:

Este receberá placido e brando
No seu regaço os Cantos, que molhados
Vem do naufragio triste e miserando,{XLIX}
Dos procellosos baixos escapados,
Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado[1]
Naquelle, cuja lyra sonorosa
Será mais affamada, que ditosa.

Neste porto se demorou algum tempo, ou convidado da boa hospitalidade, ou por não achar embarcação em que seguir viagem: e aqui escreveo a paraphrase do Psalmo que dissemos, e talvez, inserio no seu Poema as Estancias que tratão deste naufragio: depois, quando achou opportunidade, partio para Goa,{L} onde chegou no principio do anno de 1561. E como quem se via cercado de inimigos, e tinha exprimentado quão fragil escudo he por si só a innocencia, para captar a benevolencia do Viso-Rei Dom Constantino, cuja administração, com razão ou sem ella, havia sido censurada de alguns, lhe dirigio a Epistola que começa: Como nos vossos hombros tão constantes etc., em que, exaltando as virtudes e boas intenções deste Principe, o exhorta com o exemplo dos grandes homens (e pudera tambem juntar o seu proprio) a desprezar com animo igual as envenenadas settas da inveja e da calumnia: e a Dom Antonio de Noronha (o que depois veio a ser Viso-Rei da India, e não, como suppõe Faria e Sousa, o que foi morto em Africa) escreveo outra sobre o desconcerto do mundo.

Neste vice-reinado chegou Luis de Camões a tal miseria, que se vio na precisão de pedir uma camisa para cobrir o corpo. Que espectaculo!

O Valor e o Saber pedindo vão
Ás portas da cubiça e da vileza!

Todavia muito deveo a Dom Constantino, porque não foi inquietado. Mas no do Conde do Redondo Dom Francisco Coutinho, que lhe succedeo, e que se dizia amigo do poeta, e por elle havia sido louvado em umas Redondilhas, se lhe movêrão novos trabalhos, e foi lançado em tão estreita e rigorosa prisão, que nem espaço tinha para mover-se, nem ar para respirar, como consta da Canção XI, onde fallando desta perseguição, e da que havia soffrido no governo de Francisco Barreto, diz:{LI}

A piedade humana me faltava
A gente amiga ja contraria via
No perigo primeiro; e no segundo
Terra em que pôr os pés me fallecia,
Ar para respirar se me negava.

Qual fosse a natureza da accusação não consta; necessario he que fosse mui grave, pois que a este chama elle o seu segundo perigo. Seus perseguidores tambem ignorâmos quem fossem; mas he de presumir fossem homens poderosos, e que no numero destes entrasse um Miguel Rodrigues Fios Seccos, homem fidalgo e rico; pois que tendo o poeta mostrado a sua innocencia, e estando a ponto de ser sôlto, o embargou na cadeia por certa somma que lhe emprestára, e que muito bem sabia que elle lhe não podia pagar. Neste novo embaraço, rindo-se como Democrito, da loucura e extravagancia dos homens, recorreo Luis de Camões ao Viso-Rei, dirigindo-lhe aquelle jocoso requerimento, que anda entre as suas Rimas; e teve por despacho a soltura.

Livre desta prisão, ainda que de seus serviços não tirava senão perseguições e trabalhos, continuou a servir ainda por alguns annos, sem nunca despir as armas, e portando-se em todas as acções e combates de maneira, que seus proprios inimigos erão os maiores pregoeiros do seu valor: até que, vendo-se ja sobre a idade, e com as fôrças quebradas de tantas privações e fadigas, tomou a resolução de voltar á patria, para terminar a carreira da sua vida no mesmo ponto, onde a havia começado. E nestes pensamentos andava, quando Pedro Barreto se lhe appresentou,{LII} como dissemos, e com rogos e promessas o persuadio a que fosse com elle para Çofala. Mas de tal maneira cumprio o promettido, que o poeta chegando a Moçambique, assentou resgatar-se daquelle captiveiro; e andava procurando meios de se transportar ao Reino, quando, mui a proposito para o seu intento, alli aportou a nao Santa Fe, em que vinhão alguns amigos seus, como Heitor da Silveira e o Chronista Diogo do Couto e outros, que pela honra de trazerem na sua companhia tão grande homem, lhe offerecêrão passagem franca para Lisboa. Mas Pedro Barreto, como lhe chegasse isto aos ouvidos, a exemplo do Fios Seccos, o mandou prender por duzentos cruzados, que na India lhe dera para sua matalotagem, e agora lhe pedia como divida: do que indignados aquelles generosos amigos se fintárão entre si, e satisfazendo a somma exigida, resgastárão o poeta. Assim que (observa Faria e Sousa) a pessoa de Luis de Camões e a honra de Pedro Barreto por duzentos cruzados foi vendida.

Nesta viagem vinha elle escrevendo muito n'um livro entitulado Parnaso de Luis de Camões, que trazia ja mui adiantado: do qual diz Diogo do Couto, a quem o poeta o mostrou, que era obra de inestimavel preço, cheia de erudição e philosophia.

No anno de 1569 chegou emfim a Lisboa, onde então ardia o contagio, que chamárão a grande peste. E não obstante este flagello do Ceo, que tinha todos os animos occupados de terror, tal foi o seu contentamento em ver-se restituido á patria, que escrevendo a um seu amigo do Porto, lhe dizia que ainda não{LIII} podia crer tanta ventura. Pensava Luis de Camões que nella encontraria a felicidade e socego, que fóra della em vão procurára; mas succedeo-lhe bem ao contrario, porque seus inimigos lhe movêrão tão crua guerra, que todas as tormentas passadas lhe parecêrão bonança, como elle expressamente nos diz (Egloga XI):

  Tinha lá para mim que a vida tinha
Mais socegada cá e mais segura
Entre os meus, que com gosto a buscar vinha.
  Foi de outro parecer minha ventura:
Discordias sos achei, achei dureza
Em lugar de socêgo e de brandura.
  Achei as boas leis da natureza
Vencidas do interesse, e a gente cega
Tanto, que mais que o sangue, o gado préza.
  Dizem que quando o mar bonança nega,
Correndo vai aquella nao mor p'rigo.
Que á desejada terra mais se chega.
  Assi me aconteceo a mi comigo:
Seguro sempre ao longe, sempre ledo;
Triste ao perto, e tratado como imigo.

E a razão por que assim foi tratado Camões não he difficil de achar. O escrever dos modernos foi sempre cousa arriscada: todos querem boa fama, poucos fazem pola merecer; todos commettem erros, poucos, depois de os commetterem, gostão de os ouvir contar. E assim para não ser perseguido necessario he ou adular, ou callar. Mas o nosso Camões, que nunca voltou cara aos perigos, se propoz não só fallar dos modernos, mas dos mesmos contemporaneos; fazendo juramento solemne (que religiosamente guardou) de não{LIV} louvar senão quem o merecesse. Donde resultou que censurados e não-louvados se unírão para o desgraçarem e perderem. E se antes de publicar o seu poema, ja na India o perseguírão, muito peor lhe havia de succeder depois; e isso mui bem prevío elle, quando o estava ordindo; pois que, tendo invocado no principio da obra somente as Nymphas do Tejo; no fim do Canto VII, quando ia concluir a narração dos feitos antigos para passar aos contemporaneos, pede auxilio tambem ás do Mondego, dizendo (Est. 78):

               Mas oh cego!
Eu que commetto insano e temerario
Sem vós, Nymphas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão arduo longo e vario!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar com vento tão contrario,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.

e depois (Estancia 83):

Pois logo em tantos males he forçado
Que se vosso favor me não falleça,
Principalmente aqui, que sou chegado
Onde feitos diversos engrandeça.
Dai-mo vós sós, que eu tenho ja jurado
Que não o empregue em quem o não mereça,
Nem por lisonja louve algum subido,
Sob pena de não ser agradecido.

Mas não obstante conhecer a quanto se expunha, respeitando mais a fama posthuma, que a ira dos poderosos, como se vio restituido á patria, cuidou em imprimir o seu Poema. Porém algum obstaculo encontrou, porque dous annos esteve sem sahir com elle á luz.{LV}

Ora, lendo nós muitas vezes e meditando attentamente esta producção divina, sempre nos pareceo que em alguns lugares não estava como seu autor a havia originalmente escrito; e agora achamos confirmada nossa suspeita. Porque, estando ja concluida esta nossa edição, como obtivessemos um exemplar da de 1613 commentada pelo Licenciado Manoel Correa, contemporaneo e amigo do poeta, ahi encontrámos na exposição á Estancia 81 do Canto 9º a seguinte revelação: Se o poeta (diz elle) se não alargára em algumas palavras, que poderia escusar, o fingimento, este he poetico e excellente, como são todas suas cousas. Por isso se lhe emendárão e declarárão algumas Oitavas. E no mesmo Canto, Estancia 71: E assim como aqui vão impressas, as tinha elle emendadas por conselho dos Religiosos de S. Domingos, com quem tinha grande familiaridade. E aqui temos que o Poema achou embaraço na censura da Inquisição, e que para poder passar, foi preciso que seu autor por conselho dos frades de S. Domingos, isto he, por ordem dos mesmos Inquisidores lhe fizesse as alterações e emendas por elles exigidas. E portanto he fóra de toda a duvida que a explicação da allegoria delle posta na boca de Tethys, e o dizer ella mesma (Canto X, Estancia 82):

          Porque eu, Saturno e Jano,
Jupiter, Juno, somos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano;

a historia do milagre e martirio do Apostolo S. Thomé (Estancias 108 e seguintes do mesmo Canto); e Baccho adorando a Christo (Canto II, Estancia 12) são obra{LVI} dos Senhores Inquisidores. Que felicidade não he (dizia o grande Tacito) nascer o homem em tempos, em que lhe he permittido sentir como quizer, e exprimir o que sente!

Compradas por um tal preço as licenças, e obtido privilegio, em 1572 sahio finalmente á luz este maravilhoso e desgraçado Poema, não como queria o poeta, mas como os sabios Censores quizerão que apparecesse; e póde ser que os muitos e notaveis erros de impressão que desfigurão as duas edições que nesse mesmo anno se fizerão, procedessem de que desgostado o autor de ver assim estragada a sua obra, não quizesse cansar-se com a revisão das provas.

Achamos em escritores contemporaneos que ElRei por esta publicação lhe fizera mercê de uma tença de 15$ reis mensaes, com a clausula inaudita de tirar para a sua cobrança provisão cada tres annos, e de residir na Corte. Mas se assim foi, não foi logo, senão alguns annos depois, porque no de 1575 em uma Epistola que o poeta lhe dirigio, juntamente (ao que parece) com um exemplar do seu Poema, por occasião de uma setta que o Papa Gregorio XIII enviou a este Rei, ainda elle lhe supplicava se dignasse dar-lhe algum premio, se não por justiça, ao menos por caridade, como se vê dos seguintes versos:

Estes humildes versos, que pregão
São destes vossos Reinos com verdade,
Tenhão, se não merecem galardão,
Favor sequer da Regia Magestade:
Assim tenhais de quem ja tendes tanto,
Com o nome e reliquia, favor santo.{LVII}

E esta graça, depois de concedida, veio a ser de nenhum effeito; porque os monstros[2] que se havião apoderado da menoridade daquelle fatal Rei, e pouco depois o arrastárão a sepultar comsigo a patria nos campos de Alcacerquivir, tão célebres por essa desgraça nossa, se enraivecêrão contra o poeta, porque tivera o nobre arrojo de aconselhar áquelle Principe, tomasse as redeas do govêrno, e mandasse os frades rezar no côro, e tiverão arte para inutilizar a mercê{LVIII} feita; de sorte que o infeliz, cansado de andar de Herodes para Pilatus, costumava dizer que o só requerimento, que jagora tinha a fazer a S. Magestade, era que lhe commutasse a mercê dos 15$ reis em 15$ açoutes nos ministros a cujo cargo estava o pagamento della. Por outra parte os fidalgos, que estavão acostumados a desfrutar os commodos da inercia e os premios da virtude, vendo que ousára quebrar seus foros submettendo-os a uma rigorosa censura, lhe movêrão guerra de morte, não obstante haver elle supprimido algumas Estancias em que os fustigava mais forte: das quaes Faria e Sousa nos conservou a seguinte:

Oh inimigos maos da natureza,
Que injuriais a propria geração!
Degenerantes, baixos! Que fraqueza
De esforço, de saber e de razão
Vos fez que a clara estirpe, que se préza
De leal, fido e limpo coração,
Esqueçais dessa sorte? Mas respeito,
Que este dos nobres he o menor defeito.

E assim no ultimo quartel da vida se vio desamparado de todos e reduzido a tão esqualida miseria, que um escravo (antes verdadeiro amigo) que de Java trouxera, por nome Antonio, sahia de noute a pedir esmola para o sustentar; e ~ua mulata (Barbara se chamava ella) que pelas ruas de Lisboa andava vendendo mexilhões, condoida do seu desamparo, lhe ia todos os dias levar um pratinho do que trazia a vender, e de quando em quando lhe deixava tambem algum vintem do que havia vendido. Que desengano! De tantos que outrora se dizião seus amigos, só estes{LIX} achou fieis na sua adversa fortuna. Tempora si fuerint nubila, solus eris. E neste estado de desesperação parece que foi escrita aquella incomparavel Canção 11, que he um gemido da natureza, que retumbará no mundo em quanto nelle houver quem falle ou entenda a lingua Portugueza.

Um só da classe dos fidalgos, Rui da Camara, dizem escritores contemporaneos se dignára entrar na sua pobre morada: cuidarão nossos Leitores que iria para o soccorrer? Pois não; foi para o reprehender. Ha tanto (lhe disse o bom do fidalgo) que vos pedi me traduzisseis os sete Psalmos Penitenciaes, e ainda os não traduzistes? Nenhuma desculpa tendes que dar: tendo feito tantos versos e um tão formoso Poema, se me não servis, não he porque não possais; he, sim, porque não quereis. Senhor (lhe respondeo o poeta) quando eu fiz esse Poema e esses versos, era moço e favorecido das Damas, e tinha o necessario á vida; e agora não tenho espirito nem contentamento para nada, porque tudo isso me falta, e em tal miseria me vejo, que ahi está o meu Antonio a pedir-me um vintem para carvão, e não o tenho para lho dar. Sabía este Cavalheiro que Luis de Camões era poeta, para lhe pedir a traducção dos sete Psalmos Penitenciaes, e não sabia que era pobre, para lhe dar uma esmola.

Uma insigne affronta lhe fizerão ainda os Cortezãos: quando ElRei Dom Sebastião ia partir para a sua fatal jornada de Africa, lhe lembrárão levasse comsigo a Diogo Bernardes, para que este novo Tityro fosse testimunha ocular de suas proezas, e sahindo{LX} das selvas, onde andava homiziado, as celebrasse depois na tuba heroica. Mas tão generoso e magnanimo era Luis de Camões, que, não obstante esta injuria, affirma Severim de Faria, estava ja traçando outro poema, que pelos principios promettia não ser inferior ao primeiro, se o resultado da empresa não convertesse o canto em chôro.

Assim foi tratado este grande homem emquanto reinou Dom Sebastião, e muito peor ainda depois que subio ao throno o Cardial Dom Henrique: e como pouco depois viesse a cahir n'uma longa infirmidade, e por cúmulo de desgraça lhe morresse o seu verdadeiro amigo Antonio, que era o unico esteio de seus dias; opprimido de tantos males, o seguio elle poucos mezes depois á sepultura, no anno de 1579, com cincoenta e cinco de idade. Querem uns que morresse na mesma pobre casa onde morava, na rua de S.ta Anna, a qual depois da sua morte nunca mais foi habitada, outros que no Hospital; mas como todos concordão em que de casa de Dom Francisco Manoel lhe mandárão por caridade um lençol para lhe servir de mortalha, he fóra de toda a duvida que não morreo no hospital, porque todos os que morrem naquella piedosa casa, ahi achão mortalha e sepultura.

Em todos os povos, qualquer que fosse a forma de seu govêrno, hão sido sempre odiados e mais ou menos perseguidos, segundo as conjuncturas dos tempos, os summos e verdadeiros Escritores; isto he, os que á força do pensar e á elegancia do dizer unírão em summo grao o amor da verdade e da justiça. Não puderão as leis de Athenas proteger a innocencia{LXI} de Socrates contra as calumnias de um Melito, Seneca em Roma não pôde evitar a morte debaixo da tyrannia de um Nero; e a estes puderamos ajuntar uma infinidade de escritores desta classe, philosophos, poetas e oradores, que em diversos tempos e por diversos modos soffrêrão a mesma sorte. Mas Luis de Camões foi mais infeliz que todos: se lhe não fizerão beber a cicuta, se lhe não abrírão as veias, amargurarão-lhe a vida com toda a especie de desgosto, e depois de o haverem trazido de masmorra em masmorra, e de degredo em degredo envolto na mais esqualida miseria, com um refinamento de tyrannia, cuja descoberta estava reservada aos tempos modernos, o obrigárão a submetter seus escritos a uma junta de idiotas e hypocritas, e escurecer elle mesmo sua propria fama, rejeitando o que lhe agradava, para adoptar o que elles querião; e por fim de tudo o condemnárão a morrer de fome; morte muito mais cruel. E o mais he que, não costumando a inveja apascentar-se em cadaveres, ainda na sepultura não tem cessado de lhe inquietar as cinzas, conspirando-se contra todos os que tem querido levantar o véo que encobre o merecimento deste Escritor insigne. Primeiramente ao poema dos Lusiadas pretendêrão os da facção perseguidora antepor o da Ulyssea que, ainda que não destituido de merecimento, está mui longe não só de se lhe poder comparar em cousa alguma, mas até de dever ser classificado entre as obras de primeira ordem neste genero: depois como tivessem noticia que Manoel de Faria e Sousa estava imprimindo em Madrid os seus commentarios, tiverão a impudencia de{LXII} lhe escrever, pedindo-lhe com todo o empenho desacreditasse a Camões; e como este não désse ouvidos a tão infames supplicas, o denunciárão ao Tribunal da SANTA INQUISIÇÃO; o que constando ao pobre Faria, se foi valer dos Santos Inquisidores de Hespanha, para que mitigassem a santa raiva dos de Portugal, escudando com o seu parecer um folheto que escreveo em sua defesa delle, entitulado:

Informacion en favor de Manuel de Faria y Sousa, Caballero de la Orden de Christo, y de la Casa Real, sobre la acusacion que se hizo en el Tribunal del Santo Oficio de Lisboa, á los Commentarios que docta y judiciosa y Catolicamente escrevió á Las Lusiadas del doctissimo y profundissimo y solidissimo Poeta Christiano Luis de Camoens, unico ornamento de la Academia Española en este genero de Letras.

Deste folheto, que foi impresso em Madrid, anno de 1640, transcreveremos aqui na sua mesma lingua adoptiva a seguinte passagem, para que se veja com quanto encarniçamento foi perseguido pelo odio e pela inveja este grande homem e todos os que o ousárão louvar:

De los Acusadores, los mas declarados son dos, de cuya calidad y talento no diremos algo, asi por ser notorio, como porque nos deban esta piadosa cortesia. Diremos solo (por ser preciso á nuestra justicia) que son enemigos patentes del Acusado, contra quien se levantaron, porque no los celebró en estos Escritos, y les dió en ellos, y por cartas y de palabra á entender su engaño..... Y tambien{LXIII} son enemigos notorios de la luz del Poeta, como aves escuras, pues publican dilatados libelos difamatorios contra él, sobre que tambien el Comentador los abomina en varios lances: y á uno dellos doctrinó libremente por carta en respuesta de otra, con que le persuadia á escrivir contra el proprio Poeta, al tiempo que comenzaba á imprimir los Comentarios. De manera que lo que estos y otros pretenden viendose ofendidos y alcanzados con la luz del Poeta, que de nuevo les dió en los ojos, por haverla el Comentador sacado de la linterna en que estaba escondida, no es vedar este libro por quitar de los ojos Catolicos la representacion de las deidades, y lo osado de algunos discursos; sino por quitar de sus mismos ojos el resplandor que se los hostija y de los de los Letores aquellas cláusulas que descubren su flaquesa de vista.

Ambos ellos son asistidos de personas mayores en nacimiento y fortuna (si bien no mayores en el conocimiento destos estudios) que tambien se dan por ofendidos de que no siguiese el Comentador su parecer en afrentar á un Hombre, que hoy se vé reconocido por admirable de toda la Clase literaria de Europa; porque en toda ella solo ellos deshonran á Luis de Camoens. Solo ellos (ellos solo lo creen) saben mas que las Academias universales, que á una mano publican la excelencia de sus obras.

Tal foi o odio que sobre elle e seus escritos attrahio a justissima censura, que o poeta faz do infame comportamento daquelles, que, tendo mais razão que ninguem para amar e defender sua patria, nos campos{LXIV} de Aljubarrota ousárão tomar as armas contra ella. Mas a maior de todas as insolencias foi a que teve lugar em nossos dias. O notorio Padre Macedo, que nestes ultimos tempos assalariado por estrangeiros e inimigos da patria, como assassino publico, se occupava em denegrir com calumnias a reputação de todo o Portuguez honrado, tomou a si (não sabemos se de seu moto proprio, se instigado) a louca empresa de derribar a Camões, tratando o mesmo assumpto da descoberta da India: fez umas Oitavas ao Gama, e, como a rãa da fábula, perguntou a seus sequazes se sera maior que Camões. Respondêrão-lhe que não. Tornou a fazer outras, e repetindo a mesma pergunta, como lhe dessem a mesma resposta, cheio de raiva pizou aos pés a corneta; e, considerando melhor sua natureza e forças, dos heroes passou a cantar os burros. Com tudo o seu Oriente deve conservar-se como monumento de orgulho, e tambem as suas cartas a Attico, ainda que não seja senão pelo quinao, que ahi deo a Camões naquelles versos da Est. 37 do Canto V:

Quando uma noute estando descuidados
Na cortadora prôa vigiando.

Se estavão descuidados, (diz elle) como estavão vigiando? Que ignorancia! Estavão descuidados, porque o ceo estava limpo e o ar sereno, e não vião indicio de tempestade, nem cousa que lhes désse cuidado; e estavão vigiando, porque navegavão por mares desconhecidos, e porque era costume dos nossos mareantes (o qual inda hoje se conserva, porque os bons costumes não se devem perder) ter sempre de noute{LXV} vigias de prôa. E quem assim sabia a sua lingua, queria ser maior poeta que Camões?

Assim foi tratado em vida e depois de morto este Pregoeiro eterno da gloria nacional por aquelles que no fundo da alma se conhecião reos de lesa-nação, e por uns poucos de fanaticos e hypocritas. Mas da gente popular tão bem recebida e apreciada foi a sua obra, que no mesmo anno se fizerão duas impressões, e os soldados nas batalhas entoavão algumas Estancias della como seu canto de guerra, e elle mesmo tão admirado e respeitado, que quando apparecia em publico (o que era raro, porque nos ultimos tempos vivia em grande retiro) paravão todos, sem tirar os olhos delle, até o perderem de vista. E se morreo em tal desamparo (faça-se esta justiça aos Portuguezes, que em serem compadecidos e generosos a nenhum outro povo cedem) foi não só porque nessa desgraçada epocha se achavão todos os animos possuidos de terror com a recente catastrophe, e as calamidades publicas que se previão futuras, não davão lugar ao sentimento de males particulares, mas muito principalmente porque a sua miseria não era conhecida; pois que se mandava o seu Jao pedir esmola, era de noute, e sem dizer para quem. Este e outros casos taes, não raros n'uma tão grande e populosa cidade, derão causa á instituição de uma piedosa irmandade de homens plebeos, (em quem ordinariamente se encontrão mais virtudes que nos Grandes) a qual inda hoje existe, cujo fim he indagar pelos bairros se ha algum pobre envergonhado, e apregoar de noute pelas ruas sua morada, para que os cidadãos que puderem o{LXVI} mandem soccorrer. E o traductor infiel (Mickle) que ousou arremendar Camões com trapos da sua fábrica, e deste desastrado acontecimento tirou pretexto para desafogar o seu odio contra os Portuguezes, que nenhum mal lhe fizerão, tratando-os de nação barbara e inculta, devêra lembrar-se, que serem os bons sacrificados pelos maos, por lhe conhecerem o merecimento, cousa he, que em toda a parte todos os dias se vê; mas que no seculo desasete um Escritor insigne, com que hoje seus compatriotas tanto blasonão, fosse igualmente infeliz, polo não saberem apreciar, e que o seu livro, antes de impresso, fosse vendido pelo vil preço de cinco Libras, e depois de impresso, jazesse tantos tempos ignorado, de sorte que para saberem que o tinhão, fosse preciso haver quem lho mostrasse, he caso que só em Inglaterra nos consta que succedesse.

Foi Luis de Camões de mediana estatura; cabellos (quando moço) tão louros, que tiravão a açafroados; olhos vivissimos; nariz comprido, alto no meio, e grosso na ponta; rosto cheio, beiços grossos, e um tanto carregado da fronte; pelo que ao primeiro aspecto inculcava severidade; mas na conversação e trato era summamente affavel e jovial. Era liberal com os amigos, honrador dos benemeritos, rigido censor dos vicios, intrepido nos perigos, constante nas adversidades. Em todos os trances de fortuna conservou sempre a mesma serenidade de alma: de maneira que ja no leito da morte escrevendo a um seu amigo, lhe dizia gracejando: Quem ouvio dizer, que em tão pequeno theatro, como o de um pobre leito, {LXVII} quizesse a fortuna representar tão grandes desventuras? E eu, como se ellas não bastassem, me ponho ainda da sua parte; porque procurar resistir a tantos males, pareceria especie de desavergonhamento. Emfim, de todas as virtudes foi ornado este grande homem; e a que nelle mais sobresahia, era um extremoso e desinteressado amor de patria, que da maneira mais evidente se manifestou em todo o discurso da sua trabalhosa vida, e nos ultimos momentos della, como lampada moribunda, inda despedio de si maior clarão: pois ja nos parocismos da morte, passando em resenha todas as suas acções, parece que nenhuma outra mágoa sentia, senão a de haver soltado n'um transporte d'ira aquellas palavras: Ingrata patria, não possuirás meus ossos. Porque julgava elle, que por maiores aggravos que um cidadão haja recebido da sua patria, nunca, nem por pensamento, deve procurar vingança. E querendo na sua derradeira hora deixar-nos um testimunho deste seu arrependimento, vendo-se em tal desamparo, sem ter ninguem a seu lado, escreveo a Dom Francisco de Almeida, que na comarca de Lamego andava allistando gente, uma carta onde se lião estas memoraveis palavras: Emfim, acabarei a vida; e aqui verão todos que tão amante fui da minha patria, que não contente de morrer nella, quiz tambem morrer com ella.

Foi enterrado sem distincção alguma na Igreja das Religiosas de S.ta Anna da Ordem de S. Francisco; e assim jazêrão seus ossos confundidos com os do vulgo sem nome até ao anno de 1595, em{LXVIII} que Dom Gonçalo Coutinho lhe mandou pôr sobre a sepultura uma campa lisa de marmore, e nella gravar este letreiro:

AQUI JAZ LUIS DE CAMÕES,
PRINCIPE
DOS POETAS DE SEU TEMPO.
VIVEO POBRE E MISERAVELMENTE,
E ASSI MORREO
ANNO DE MDLXXIX.
ESTA CAMPA LHE MANDOU AQUI PÔR
DOM GONÇALO COUTINHO, NA QUAL SE
NÃO ENTERRARÁ PESSOA ALGUMA.

Alguns annos depois lhe mandou abrir na mesma campa Martim Gonçalves da Camara o seguinte Epitaphio:

Naso Elegis, Flaccus Lyricis, Epigrammate Marcus,
  Hic jacet heroe carmine Virgilius.
Ense simul calamoque auxit tibi, Lysia, famam.
  Unam nobilitant Mars et Apollo manum.
Castalium fontem traxit modulamine: at Indo
  Et Gangi telis obstupefecit aquas.
India mirata est, quando aurea carmina, lucrum
  Ingenii, haut gazas, ex Oriente tulit.
Sic bene de patria meruit, dum fulminat ense:
  At plus, dum calamo bellicosa facta refert.
Hunc Itali, Galli, Hispani vertere poetam:
  Quaelibet hunc vellet terra vocare suum.
Vertere fas, aequare nefas: aequabilis uni
  Est sibi: par nemo, nemo secundus erit.

Achamos em Pedro Mariz que um fidalgo Alemão escrevêra a um seu correspondente de Lisboa que lhe soubesse que sepultura tinha Camões, e quando{LXIX} a não tivesse sumptuosa, tratasse com a cidade lhe désse licença para trasladar seus ossos para Alemanha, onde lhe faria um tumulo superbissimo, igual aos dos mais famosos antigos. Mas o Senado da Camara attendendo á dignidade da nação, não consentio na proposta, talvez porque tivesse em vista fazer essa mesma honra ás cinzas de tão grande homem. Mas este projecto ficou depois em esquecimento até ao anno de 1775, em que o grande terremoto, sovertendo aquella Igreja, confundio os ossos debaixo das ruinas. Mas tempo virá em que a patria agradecida erija á sua memoria um pomposo monumento, que seja digno della, digno de tão insigne varão.{LXX}
{LXXI}