Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II
Se em mim, ó alma, vive mais lembrança
Que aquella só da gloria de querer-vos,
Eu perca todo o bem que lógro em ver-vos,
E de ver-vos tambem toda a esperança.
  Veja-se em mi tão rustica esquivança,
Que possa indigno ser de conhecer-vos;
E, quando em mor empenho de aprazer-vos,
Vos offenda, se em mi houver mudança.
  Confirmado estou ja nesta certeza:
Examine-me vossa crueldade,
Exprimente-se em mi vossa dureza.
  Conhecei ja de mi tanta verdade;
Pois em penhor e fé desta pureza
Tributo vos fiz ser o que he vontade.{129}

CCLVI.

Ilustre Gracia, nombre de una moza,
Primera malhechora en este caso
Á Mondoñedo, á Palma, al cojo Traso,
Sugeto digno de immortal coroza;
  Si en medio de la Iglesia no reboza
El manto á vuestro rostro tan devaso,
Por vos dirán las gentes recio y paso:
Veis quien con el demonio se retoza.
  Puede mover los montes sin trabajo;
Con palabras el curso al agua enfrena;
Por las ondas hará camino enjuto.
  Averguenza su patria y rico Tajo,
Que por ella hombres lleva, mas que arena,
De que paga al infierno gran tributo.

CCLVII.

Qual t~ee a borboleta por costume,
Qu'enlevada na luz da acesa vella,
Dando vai voltas mil, até que nella
Se queima agora, agora se consume:
  Tal eu correndo vou ao vivo lume
D'esses olhos gentis, Aonia bella;
E abrazo-me, por mais que com cautella
Livrar-me a parte racional presume.
  Conheço o muito a que se atreve a vista,
O quanto se levanta o pensamento,
O como vou morrendo claramente;
  Porém não quer Amor que lhe resista,
Nem a minh'alma o quer; qu'em tal tormento,
Qual em gloria maior está contente.{130}

CCLVIII.

Lembranças de meu bem, doces lembranças
Que tão vivas estais nesta alma minha,
Não queirais mais de mi, se os bens que tinha
Em poder vêdes todos de mudanças.
  Ai cego Amor! ai mortas esperanças
De qu'eu em outro tempo me matinha!
Agora deixareis quem vos sostinha;
Acabarão co'a vida as confianças.
  Co'a vida acabarão, pois a ventura
Me roubou n'hum momento aquella gloria,
Que, quando tão grande he, tão pouco dura.
  Oh se apoz o prazer fôra a memoria!
Ao menos estivera a alma segura
De ganhar-se com ella mais victoria.

CCLIX.

Formosos olhos, que cuidado dais
Á mesma luz do sol mais clara e pura;
Que sua esclarecida formosura,
Com tanta gloria vossa, atraz deixais;
  Se por serdes tão bellos desprezais
A fineza de amor que vos procura,
Pois tanto vêdes, vêde que não dura
O vosso resplandor quanto cuidais.
  Colhei, colhei do tempo fugitivo
E de vossa belleza o doce fruto;
Qu'em vão fóra de tempo he desejado.
  E a mi, que por vós morro, e por vós vivo,
Fazei pagar a Amor o seu tributo,
Contente de por vós lho haver pagado.{131}

CCLX.

Pues siempre sin cesar, mais ojos tristes,
En lágrimas tratais la noche el dia,
Mirad si es lágrima esta que os envia
Aquel sol por quien vos tantas vertistes.
  Si vos me asegurais, pues ya la vistes,
Que es lágrima, será ventura mia;
Por empleadas bien desde hoy tendria
Las muchas que por ella sola distes.
  Mas cualquier cosa mucho deseada,
Aunque viendo se esté, nunca es creida;
Y menos esta, nunca imaginada.
  Pero della aseguro, si es fingida,
Que basta ser por lágrima enviada,
Para que sea por lágrima tenida.

CCLXI.

T~ee feito os olhos neste apartamento
Hum mar de saudosa tempestade,
Que póde dar saudade á saudade,
Sentimentos ao proprio sentimento.
  Em dor vai convertido o soffrimento,
Em pena convertida a piedade;
A razão tão vencida da vontade,
Qu'escravo faz do mal o entendimento.
  A lingua não alcança o qu'a alma sente.
E assi, se alguem quizer em algum'hora
Saber que cousa he dor não comprehendida,
  Parta-se do seu bem, porque exprimente
Qu'antes de se partir, melhor lhe fôra
Partir-se do viver para ter vida.{132}

CCLXII.

A peregrinação d'hum pensamento,
Que dos males fez hábito e costume,
Tanto da triste vida me consume,
Quanto cresce na causa do tormento.
  Leva a dor de vencida ao soffrimento;
Mas a alma está, de entregue, tão sem lume,
Qu'enlevada no bem que haver presume,
Não faz caso do mal qu'está de assento.
  De longe receei (se me valêra)
O perigo que tanto á porta vejo,
Quando não acho em mi cousa segura.
  Mas ja conheço, (oh nunca o conhecêra!)
Qu'entendimentos presos do desejo
Não t~ee remedio mais que o da ventura.

CCLXIII.

Acho-me da fortuna salteado;
O tempo vai fugindo presuroso,
Deixando-me da vida duvidoso,
E cada instante mais desesperado.
  Trocou-se o meu descuido em tal cuidado,
Que donde a gloria he mais, he mais penoso.
Nem vivo de perder-me receoso,
Nem de poder ganhar-me confiado.
  Qualquer ave nos montes mais agrestes,
Qualquer fera na cova repousando,
T~ee horas de alegria: eu todas tristes.
  Vós, saudosos olhos, que o quizestes,
(Pois com tormento Amor me está pagando)
Chorai, como que vêdes, o que vistes.{133}

CCLXIV.

Se no que tenho dito vos offendo,
Não he a intenção minha de offender-vos;
Qu'inda que não pretenda merecer-vos,
Não vos desmerecer sempre pretendo.
  Mas he meu fado tal, segundo entendo,
Que, por quanto ganhava em entender-vos,
Não me deixa atégora conhecer-vos,
Por a mi proprio m'ir desconhecendo.
  Os dias ajudados da ventura
A cada qual de si dão desenganos,
E a outros soe da-lo a desventura.
  Qual destas sirva a mi, dirão os danos
Ou gostos que eu tiver, em quanto dura
Esta vida, tão larga em poucos anos.

CCLXV.

Doce contentamento ja passado,
Em que todo o meu bem só consistia,
Quem vos levou de minha companhia,
E me deixou de vós tão apartado?
  Quem cuidou que se visse neste estado
Naquellas breves horas d'alegria,
Quando minha ventura consentia
Que d'enganos vivesse meu cuidado?
  Fortuna minha foi cruel e dura
Aquella que causou meu perdimento,
Com a qual ninguem póde ter cautella.
  Nem se engane nenhuma creatura;
Que não póde nenhum impedimento
Fugir o que lh'ordena sua estrella.{134}

CCLXVI.

Sempre, cruel Senhora, receei,
Medindo vossa grã desconfiança,
Que désse em desamor vossa tardança,
E que me perdesse eu, pois vos amei.
  Perca-se, em fim, ja tudo o qu'esperei,
Pois n'outro amor ja tendes esperança.
Tão patente será vossa mudança,
Quanto eu encobri sempre o que vos dei.
  Dei-vos a alma, a vida e o sentido;
De tudo o qu'em mi ha vos fiz senhora.
Prometteis, e negais o mesmo Amor.
  Agora tal estou, que de perdido,
Não sei por onde vou, mas algum'hora
Vos dará tal lembrança grande dor.

CCLXVII.

Se a fortuna inquieta e mal olhada,
Que a justa lei do Ceo comsigo infama,
A vida quieta, qu'ella mais dasama,
Me concedêra honesta e repousada;
  Pudéra ser que a Musa, alevantada
Com luz de mais ardente e viva flama,
Fizera ao Tejo lá na patria cama
Adormecer co'o som da lyra amada.
  Porém, pois o destino trabalhoso,
Que m'escurece a Musa fraca e lassa,
Louvor de tanto preço não sustenta;
  A vossa, de louvar-me pouco escassa,
Outro sogeito busque valeroso,
Tal qual em vós ao mundo se apresenta.{135}

CCLXVIII.

Este amor, que vos tenho limpo e puro,
De pensamento vil nunca tocado,
Em minha tenra idade começado,
Tê-lo dentro nesta alma só procuro.
  D'haver nelle mudança estou seguro,
Sem temer nenhum caso, ou duro fado,
Nem o supremo bem, ou baixo estado,
Nem o tempo presente, nem futuro.
  A bonina e a flor asinha passa;
Tudo por terra o inverno e estio deita;
Só para meu amor he sempre Maio.
  Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,
E qu'essa ingratidão tudo me engeita,
Traz este meu amor sempre em desmaio.

CCLXIX.

A formosura desta fresca serra,
E a sombra dos verdes castanheiros,
O manso caminhar destes ribeiros,
Donde toda a tristeza se desterra;
  O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra:
  Em fim, tudo o que a rara natureza
Com tanta variedade nos offrece,
M'está (se não te vejo) magoando.
  Sem ti tudo me enoja, e me aborrece;
Sem ti perpetuamente estou passando
Nas mores alegrias môr tristeza.{136}

CCLXX.

Sustenta meu viver huma esperança
Derivada de hum bem tão desejado,
Que quando nella estou mais confiado,
Mor dúvida me põe qualquer mudança.
  E quando inda este bem na mór pujança
De seus gostos me t~ee mais enlevado,
Me atormenta então ver eu qu'alcançado
Será por quem de vós não t~ee lembrança.
  Assi que, nestas redes enlaçado,
A penas dou a vida, sustentando
Huma nova materia a meu cuidado.
  Suspiros d'alma tristes arrancando,
Dos silvos d'huma pedra acompanhado,
Estou materias tristes lamentando.

CCLXXI.

Ja não sinto, Senhora, os desenganos,
Com que minha affeição sempre tratastes,
Nem ver o galardão, que me negastes,
Merecido por fé ha tantos anos.
  A mágoa chóro só, só chóro os danos
De ver por quem, Senhora, me trocastes;
Mas em tal caso vós só me vingastes
De vossa ingratidão, vossos enganos.
  Dobrada gloria dá qualquer vingança,
Que o offendido toma do culpado,
Quando se satisfaz com causa justa;
  Mas eu de vossos males e esquivança,
De que agora me vejo bem vingado,
Não a quizera tanto á vossa custa.{137}

CCLXXII.

Quando, Senhora, quiz Amor qu'amasse
Essa grã perfeição e gentileza,
Logo deo por sentença, que a crueza
Em vosso peito amor accrescentasse.
  Determinou, que nada me apartasse,
Nem desfavor cruel, nem aspereza;
Mas qu'em minha rarissima firmeza
Vossa isenção cruel se executasse.
  E, pois tendes aqui offerecida
Est'alma vossa a vosso sacrificio,
Acabai de fartar vossa vontade.
  Não lhe alargueis, Senhora, mais a vida;
Acabará morrendo em seu officio,
Sua fé defendendo e lealdade.

CCLXXIII.

Eu vivia de lagrimas isento,
N'hum engano tão doce e deleitoso,
Qu'em qu'outro amante fosse mais ditoso
Não valião mil glorias hum tormento.
  Vendo-me possuir tal pensamento,
De nenhuma riqueza era invejoso;
Vivia bem, de nada receoso,
Com doce amor e doce sentimento.
  Cobiçosa a Fortuna, me tirou
Deste meu tão contente e alegre estado;
E passou-se este bem, que nunca fôra:
  Em trôco do qual bem só me deixou
Lembranças, que me mátão cada hora,
Trazendo-me á memoria o bem passado.{138}

CCLXXIV.

Indo o triste pastor todo embebido
Na sombra de seu doce pensamento,
Taes queixas espalhava ao leve vento,
Co'hum brando suspirar d'alma sahido:
  A quem me queixarei, cego, perdido,
Pois nas pedras não acho sentimento?
Com quem fallo? A quem digo meu tormento?
Que onde mais chamo, sou menos ouvido.
  Ó bella Nympha, porque não respondes?
Porque o olhar-me tanto m'encareces?
Porque queres que sempre me querelle?
  Eu quanto mais te busco, mais te escondes!
Quanto mais mal me vês, mais te endureces!
Assim que co'o mal cresce a causa delle.

CCLXXV.

Dizei, Senhora, da belleza idêa,
Para fazerdes esse aureo crino,
Onde fostes buscar esse ouro fino?
De qu'escondida mina ou de que vêa?
  Dos vossos olhos essa luz Phebêa,
Esse respeito, de hum Imperio dino?
Se o alcançastes com saber divino,
Se com encantamentos de Medéa?
  De qu'escondidas conchas escolhestes
As perlas preciosas Orientais,
Que fallando mostrais no doce riso?
  Pois vos formastes tal, como quizestes,
Vigiai-vos de vós, não vos vejais,
Fugi das fontes; lembre-vos Narciso.{139}

CCLXXVI.

Na ribeira do Euphrates assentado,
Discorrendo me achei pela memoria
Aquelle breve bem, aquella gloria,
Que em ti, doce Sião, tinha passado.
  Da causa de meus males perguntado
Me foi: Como não cantas a historia
De teu passado bem, e da victoria
Que sempre de teu mal has alcançado?
  Não sabes, que a quem canta se lhe esquece
O mal, indaque grave e rigoroso?
Canta pois, e não chores dessa sorte.
  Respondi com suspiros: Quando crece
A muita saudade, o piedoso
Remedio he não cantar, senão a morte.

CCLXXVII.

Chorai, Nymphas, os fados poderosos
Daquella soberana formosura.
Onde forão parar? na sepultura?
Aquelles Reaes olhos graciosos?
  Oh bens do mundo falsos e enganosos!
Que mágoas para ouvir! Que tal figura
Jaza sem resplandor na terra dura
Com tal rosto e cabellos tão formosos!
  Das outras que será! pois poder teve
A morte sôbre cousa tanto bella,
Que ella eclipsava a luz do claro dia.
  Mas o mundo não era digno della,
Por isso mais na terra não esteve,
Ao ceo subio, que ja se lhe devia.{140}

CCLXXVIII.

Senhora ja desta alma, perdoae
De hum vencido de Amor os desatinos,
E sejão vossos olhos tão beninos
Com este puro amor, que d'alma sae.
  A minha pura fé sómente olhae,
E vêde meus extremos se são finos;
E se de alguma pena forem dinos,
Em mim, Senhora minha, vos vingae.
  Não seja a dor que abraza o triste peito
Causa por onde pene o coração,
Que tanto em firme amor vos he sujeito.
  Guardae-vos do que alguns, dama, dirão,
Que sendo raro em tudo vosso objeito,
Possa morar em vós ingratidão.

CCLXXIX.

Doce sonho, suave e soberano,
Se por mais longo tempo me durára!
Ah quem de sonho tal nunca acordára,
Pois havia de ver tal desengano!
  Ah deleitoso bem! ah doce engano!
Se por mais largo espaço me enganára!
Se então a vida misera acabára,
De alegria e prazer morrêra ufano.
  Ditoso, não estando em mi, pois tive
Dormindo o que acordado ter quizera.
Olhae com que me paga meu destino!
  Em fim, fóra de mim ditoso estive.
Em mentiras ter dita razão era,
Pois sempre nas verdades fui mofino.{141}

CCLXXX.

Diana prateada, esclarecida
Com a luz que do claro Phebo ardente,
Por ser de natureza transparente,
Em si, como em espelho, reluzia,
  Cem mil milhões de graças lhe influia,
Quando me appareceo o excellente
Raio de vosso aspecto, diferente
Em graça e em amor do que sohia.
  Eu vendo-me tão cheio de favores,
E tão propinquo a ser de todo vosso,
Louvei a hora clara, e a noite escura,
  Pois nella déstes côr a meus amores:
Donde collijo claro que não posso
De dia para vós ja ter ventura.

CCLXXXI.

Em quanto Phebo os montes accendia
Do ceo com luminosa claridade,
Por conservar illesa a castidade
Na caça o tempo Delia despendia.
  Venus, qu' então de furto descendia
Por captivar de Anchises a vontade,
Vendo Diana em tanta honestidade,
Quasi zombando della, lhe dizia:
  Tu vás com tuas redes na espessura
Os fugitivos cervos enredando;
Mas as minhas enredão o sentido.
  Melhor he (respondia a deosa pura)
Nas redes leves cervos ir tomando,
Que tomar-te a ti nellas teu marido.{142}

CCLXXXII.

N'hum tão alto lugar, de tanto preço,
Este meu pensamento posto vejo,
Que desfallece nelle inda o desejo,
Vendo quanto par mi o desmereço.
  Quando esta tal baixeza em mi conheço,
Acho que cuidar nelle he grão despejo,
E que morrer por elle me he sobejo
E mór bem para mi, do que mereço.
  O mais que natural merecimento
De quem me causa hum mal tão duro e forte,
O faz que vá crescendo de hora em hora.
  Mas eu não deixarei meu pensamento,
Porque inda qu'este mal me causa a morte,
Un bel morir tutta la vita honora.

CCLXXXIII.

Quantas penas, Amor, quantos cuidados,
Quantas lagrimas tristes sem proveito,
De que mil vezes olhos, rosto e peito,
Por ti, cego, me viste ja banhados;
  Quantos mortaes suspiros derramados
Do coração por tanto a ti sujeito,
Quantos males, em fim, tu me tens feito,
Todos forão em mi bem empregados.
  A tudo satisfaz (confesso-te isto)
Huma só vista branda e amorosa
De quem me captivou minha ventura.
  Oh sempre para mi hora ditosa!
Que posso temer ja, pois tenho visto,
Com tanto gôsto meu, tanta brandura?{143}

CCLXXXIV.

Posto me t~ee fortuna em tal estado,
E tanto a seus pés me t~ee rendido!
Não tenho que perder, ja de perdido,
Nem tenho que mudar, ja de mudado.
  Todo bem para mi he acabado:
D'aqui dou o viver ja por vivido;
Que aonde o mal he tão conhecido,
Tambem o viver mais será'scusado.
  Se me basta querer, a morte quero,
Que bem outra esperança não convem:
E curarei hum mal com outro mal.
  E pois do bem tão pouco bem espero,
Ja que o mal este só remedio tem,
Não me culpem em qu'rer remedio tal.

CCLXXXV.

Pues lágrimas tratais, mis ojos tristes,
Y en lágrimas pasais la noche y dia,
Mirad si es llanto este que os envia
Aquella por quien vos tantas vertistes:
  Sentid, mis ojos, bien esta que vistes;
Y si ella lo es, oh gran ventura mia!
Por muy bien empleadas las habria
Mil cuentos que por esta sola distes.
  Mas una cosa mucho deseada,
Aunque se vea cierta, no es creida,
Cuanto mas esta, que me es enviada.
  Pero digo, que aunque sea fingida,
Que basta que por lágrima sea dada,
Porque sea por lágrima tenida.{144}

CCLXXXVI.

Que póde ja fazer minha ventura,
Que seja para meu contentamento?
Ou como fazer devo fundamento
De cousa que o não t~ee, nem he segura?
  Que pena póde ser tão certa e dura,
Que possa ser maior que meu tormento?
Ou como receará meu pensamento
Os males, se com elles mais se apura?
  Como quem se costuma de pequeno
Com peçonha criar por mão sciente,
Da qual o uso ja o t~ee seguro:
  Assim de acostumado co'o veneno,
O uso de soffrer meu mal presente
Me faz não sentir ja nada o futuro.{145}