←
Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II
Crescei, desejo meu, pois que a Ventura
Ja vos t~ee nos seus braços levantado;
Que a bella causa de que sois gerado
O mais ditoso fim vos assegura.
Se aspirais por ousado a tanta altura,
Não vos espante haver ao sol chegado;
Porque he de aguia Real vosso cuidado,
Que quanto mais o soffre, mais se apura.
Ánimo, coração; que o pensamento
Te póde inda fazer mais glorioso,
Sem que respeite a teu merecimento.
Que cresças inda mais he ja forçoso;
Porque se foi de ousado o teu intento,
Agora de atrevido he venturoso.{66}
CXXX.
He o gozado bem em água escrito;
Vive no desejar, morre no effeito:
O desejado sempre he mais perfeito,
Porque t~ee parte alguma de infinito.
Dar a huma alma immortal gôzo prescrito,
Em verdadeiro amor, fôra defeito:
Por modo sup'rior, não imperfeito,
Sois excepção de quanto aqui limito.
De huma esperança nunca conhecida,
Da fé do desejar não alcançada,
Sereis mais desejada, possuida.
Não podeis da esperança ser amada;
Vista podereis ser, e então mais crida;
Porém não, sem aggravo, comparada.
CXXXI.
De quantas graças tinha a natureza
Fez hum bello e riquissimo thesouro;
E com rubis e rosas, neve e ouro,
Formou sublime e angelica belleza.
Poz na boca os rubis, e na pureza
Do bello rosto as rosas, por quem mouro;
No cabello o valor do metal louro;
No peito a neve, em que a alma tenho accesa.
Mas nos olhos mostrou quanto podia,
E fez delles hum sol, onde se apura
A luz mais clara que a do claro dia.
Em fim, Senhora, em vossa compostura,
Ella a apurar chegou quanto sabia
De ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.{67}
CXXXII.
Nunca em amor damnou o atrevimento;
Favorece a Fortuna a ousadia;
Porque sempre a encolhida covardia
De pedra serve ao livre pensamento.
Quem se eleva ao sublime Firmamento,
A estrella nelle encontra, que lhe he guia;
Que o bem que encerra em si a phantasia
São humas illusões que leva o vento.
Abrir se devem passos á ventura:
Sem si proprio ninguem será ditoso:
Os principios somente a sorte os move.
Atrever-se he valor, e não loucura.
Perderá por covarde o venturoso
Que vos vê, se os temores não remove.
CXXXIII.
Doces e claras águas do Mondego,
Doce repouso de minha lembrança,
Onde a comprida e perfida esperança
Longo tempo apos si me trouxe cego,
De vós me aparto, si; porém não nego
Que inda a longa memoria, que me alcança,
Me não deixa de vós fazer mudança,
Mas quanto mais me alongo, mais me achego
Bem poderá a Fortuna este instrumento
Da alma levar por terra nova e estranha,
Offerecido ao mar remoto, ao vento.
Mas a alma, que de cá vos acompanha,
Nas azas do ligeiro pensamento
Para vós, águas, vôa, e em vós se banha.{68}
CXXXIV.
Senhor João Lopes, o meu baixo estado
Hontem vi posto em grao tão excellente,
Que sendo vós inveja a toda a gente,
Só por mi vos quizereis ver trocado.
O gesto vi suave e delicado,
Que ja vos fez contente e descontente,
Lançar ao vento a voz tão docemente,
Que fez o ar sereno e socegado.
Vi-lhe em poucas palavras dizer quanto
Ninguem diria em muitas: mas eu chego
A espirar só de ouvir a doce fala.
Oh mal o haja a Fortuna, e o moço cego!
Elle, que os corações obriga a tanto;
Ella, porque os estados desiguala.
CXXXV.
A Morte, que da vida o nó desata,
Os nós, que dá o Amor, cortar quizera
Co'a ausencia, que he sôbre elle espada fera,
E co'o tempo, que tudo desbarata.
Duas contrárias, que huma a outra mata,
A Morte contra Amor junta e altera;
Huma, Razão contra a Fortuna austera;
Outra, contra a Razão Fortuna ingrata.
Mas mostre a sua imperial potencia
A Morte em apartar de hum corpo a alma,
O Amor n'hum corpo duas almas una;
Para que assi triumphante leve a palma
Da Morte Amor a grão pesar da ausencia,
Do tempo, da Razão, e da Fortuna.{69}
CXXXVI
Árvore, cujo pomo bello e brando
Natureza de leite e sangue pinta,
Onde a pureza, de vergonha tinta,
Está virgineas faces imitando;
Nunca do vento a ira, que arrancando
Os troncos vai, o teu injúria sinta;
Nem por malícia de ar te seja extinta
A côr que está teu fructo debuxando.
E pois emprestas doce e idoneo abrigo
A meu contentamento, e favoreces
Com teu suave cheiro a minha gloria;
Se eu não te celebrar como mereces,
Cantando-te, se quer farei comtigo
Doce nos casos tristes a memoria.
CXXXVII.
O filho de Latona esclarecido,
Que com seu raio alegra a humana gente,
Matar pôde a Phytonica serpente
Que mortes mil havia produzido.
Ferio com arco, e de arco foi ferido,
Com ponta aguda de ouro reluzente:
Nas Thessalicas praias docemente
Por a nympha Penea andou perdido.
Não lhe pôde valer contra seu dano
Saber, nem diligencias, nem respeito
De quanto era celeste e soberano.
Pois se hum deos nunca vio nem hum engano
De quem era tão pouco em seu respeito,
Eu qu'espero de hum ser, qu'he mais que humano?{70}
CXXXVIII.
Presença bella, angelica figura,
Em quem quanto o Ceo tinha nos t~ee dado;
Gesto alegre de rosas semeado,
Entre as quaes se está rindo a Formosura:
Olhos, onde t~ee feito tal mistura
Em crystal puro o negro marchetado,
Que vemos ja no verde delicado
Não esperança, mas inveja escura:
Brandura, aviso, e graça, que augmentando
A natural belleza co'hum desprezo,
Com que mais desprezada mais se augmenta:
São as prizões de hum coração, que prêzo,
Seu mal ao som dos ferros vai cantando,
Como faz a serêa na tormenta
CXXXIX.
Por cima destas águas forte e firme
Irei aonde os Fados o ordenárão,
Pois por cima de quantas derramárão
Aquelles claros olhos pude vir-me.
Ja chegado era o fim de despedir-me;
Ja mil impedimentos se acabárão,
Quando rios de amor se atravessárão
A me impedir o passo de partir-me.
Passei-os eu com ânimo obstinado,
Com que a morte forçada gloriosa
Faz o vencido ja desesperado.
Em qual figura, ou gesto desusado,
Póde ja fazer medo a morte irosa
A quem t~ee a seus pés rendido e atado?{71}
CXL.
Tal mostra de si dá vossa figura,
Sibela, clara luz da redondeza,
Que as fôrças e o poder da natureza
Com sua claridade mais apura.
Quem confiança ha visto tão segura,
Tão singular esmalte da belleza,
Que não padeça mal de mais graveza,
Se resistir a seu amor procura?
Eu, pois, por escusar tal esquivança,
A razão sujeitei ao pensamento,
A quem logo os sentidos se entregárão.
Se vos offende o meu atrevimento,
Inda podeis tomar nova vingança
Nas reliquias da vida que ficárão.
CXLI.
Na desesperação ja repousava
O peito longamente magoado,
E, com seu damno eterno concertado,
Ja não temia, ja não desejava;
Quando huma sombra vãa me assegurava
Que algum bem me podia estar guardado
Em tão formosa imagem, que o traslado
N'alma ficou, que nella se enlevava.
Que credito que dá tão facilmente
O coração áquillo que deseja,
Quando lhe esquece o fero seu destino!
Ah! deixem-me enganar; que eu sou contente;
Pois, postoque maior meu damno seja,
Fica-me a gloria ja do que imagino.{72}
CXLII.
Diversos dões reparte o Ceo benino,
E quer que cada huma alma hum só possua;
Por isso ornou de casto peito a Lua,
Que o primeiro orbe illustra crystallino;
De graça a Mãe formosa do Menino,
Que nessa vista t~ee perdido a sua;
Pallas de sciencia não maior que a tua:
T~ee Juno da nobreza o imperio dino.
Mas junto agora o largo Ceo derrama
Em ti o mais que tinha, e foi o menos
Em respeito do Autor da natureza.
Que a seu pezar te dão, formosa dama,
Seu peito a Lua, sua graça Venos,
Sua sciencia Pallas, Juno sua nobreza.
CXLIII.
Gentil Senhora, se a Fortuna imiga,
Que contra mi com todo o Ceo conspira,
Os olhos meus de ver os vossos tira,
Porque em mais graves casos me persiga;
Comigo levo esta alma, que se obriga
Na mor pressa de mar, de fogo, e d'íra,
A dar-vos a memoria, que suspira
Só por fazer comvosco eterna liga.
Nesta alma, onde a fortuna póde pouco,
Tão viva vos terei, que frio e fome,
Vos não possão tirar, nem mais perigos.
Antes, com som de voz trémulo e rouco
Por vós chamando, só com vosso nome
Farei fugir os ventos, e os imigos.{73}
CXLIV
Que modo tão subtil da natureza
Para fugir ao mundo e seus enganos!
Permitte que se esconda em tenros anos
Debaixo de hum burel tanta belleza!
Mas não póde esconder-se aquella alteza
E gravidade de olhos soberanos,
A cujo resplandor entre os humanos
Resistencia não sinto, ou fortaleza.
Quem quer livre ficar de dor e pena,
Vendo-a ja, ja trazendo-a na memoria,
Na mesma razão sua se condena.
Porque quem mereceo ver tanta gloria
Captivo ha de ficar; que Amor ordena
Que de juro tenha ella esta victoria.
CXLV
Quando se vir com água o fogo arder,
Juntar-se ao claro dia a noite escura,
E a terra collocada lá na altura
Em que se vem os ceos prevalecer;
Quando Amor á Razão obedecer,
E em todos for igual huma ventura,
Deixarei eu de ver tal formosura,
E de a amar deixarei depois de a ver.
Porém não sendo vista esta mudança
No mundo, porque, em fim, não póde ver-se,
Ninguem mudar-me queira de querer-vos.
Que basta estar em vós minha esperança,
E o ganhar-se a minha alma, ou o perder-se,
Para dos olhos meus nunca perder-vos.{74}
CXLVI.
Quando a suprema dor muito me aperta,
Se digo que desejo esquecimento,
He fôrça que se faz ao pensamento,
De que a vontade livre desconcerta.
Assi de êrro tão grave me desperta
A luz do bem regido entendimento,
Que mostra ser engano, ou fingimento,
Dizer que em tal descanso mais se acerta.
Porque essa propria imagem, que na mente
Me representa o bem de que careço,
Faz-mo de hum certo modo ser presente.
Ditosa he, logo, a pena que padeço,
Pois que da causa della em mi se sente
Hum bem que, inda sem ver-vos, reconheço.
CXLVII.
Na margem de hum ribeiro, que fendia
Com liquido crystal hum verde prado,
O triste pastor Liso debruçado
Sôbre o tronco de hum freixo assi dizia:
Ah Natercia cruel! quem te desvia
Esse cuidado teu do meu cuidado?
Se tanto hei de penar desenganado,
Enganado de ti viver queria.
Que foi de aquella fé que tu me déste?
D'aquelle puro amor que me mostraste?
Quem tudo trocar pôde tão asinha?
Quando esses olhos teus n'outro puzeste,
Como te não lembrou que me juraste
Por toda a sua luz que eras só minha?{75}
CXLVIII.
Se me vem tanta gloria só de olhar-te,
He pena desigual deixar de ver-te;
Se presumo com obras merecer-te,
Grão paga de hum engano he desejar-te.
Se aspiro por quem es a celebrar-te,
Sei certo por quem sou que hei de offender-te;
Se mal me quero a mi por bem querer-te,
Que premio querer posso mais que amar-te?
Porque hum tão raro amor não me soccorre?
Oh humano thesouro! oh doce gloria!
Ditoso quem á morte por ti corre!
Sempre escrita estaras nesta memoria;
E esta alma viverá, pois por ti morre,
Porque ao fim da batalha he a victoria.
CXLIX.
Sempre a Razão vencida foi de Amor;
Mas, porque assi o pedia o coração,
Quiz Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso póde haver maior!
Novo modo de morte, e nova dor!
Estranheza de grande admiração!
Pois, em fim, seu vigor perde a affeição,
Porque não perca a pena o seu vigor.
Fraqueza, nunca a houve no querer;
Mas antes muito mais se esforça assim
Hum contrário com outro por vencer.
Mas a razão que a luta vence, em fim,
Não creio que he razão; mas deve ser
Inclinação que eu tenho contra mim.{76}
CL.
Coitado! que em hum tempo chóro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me allegro e me entristeço;
Confio de huma cousa e desconfio.
Vôo sem azas; estou cego e guio;
Alcanço menos no que mais mereço;
Entaõ fallo melhor, quando emmudeço;
Sem ter contradiçaõ sempre porfio.
Possivel se me faz todo o impossivel;
Intento com mudar-me estar-me quedo;
Usar de liberdade, e ser captivo;
Queria visto ser, ser invisivel;
Ver-me desenredado, amando o enredo:
Taes os extremos são com que hoje vivo!
CLI.
Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me, tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado,
E de humanos commercios esquecido.
Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quasi que sôbre elle ando dobrado,
Tenho por baixo, rustico, e enganado
Quem não he com meu mal engrandecido.
Vá revolvendo a terra, o mar, e o vento,
Honras busque e riquezas a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma.
Que eu por amor sómente me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso formoso gesto dentro da alma.{77}
CLII.
Olhos, aonde o Ceo com luz mais pura
Quiz dar de seu poder claros signais,
Se quizerdes ver bem quanto possais,
Vêde-me a mi que sou vossa feitura.
Em mi viva vereis vossa figura
Mais propria que em purissimos crystais,
Porque nesta alma he certo que vejais
Melhor que em hum crystal tal formosura.
De meu não quero mais que o meu desejo,
Se acaso por querer-vos mais mereço,
Porque o vosso poder em mi se asselle.
Do mundo outra memoria em mi não vejo:
Com lembrar-me de vós, delle me esqueço,
Com triumphardes de mi, triumpharei delle.
CLIII.
Criou a natureza Damas bellas,
Que forão de altos plectros celebradas;
Dellas tomou as partes mais prezadas,
E a vós, Senhora, fez do melhor dellas.
Ellas diante vós são as estrellas,
Que ficão com vos ver logo eclipsadas.
Mas se ellas t~ee por sol essas rosadas
Luzes de sol maior, felices ellas!
Em perfeição, em graça e gentileza,
Por hum modo entre humanos peregrino,
A todo bello excede essa belleza.
Oh quem tivera partes de divino
Para vos merecer! Mas se pureza
De amor vai ante vós, de vós sou dino.{78}
CLIV.
Que esperais, esperança? Desespéro.
Quem disso a causa foi? H~ua mudança.
Vós, vida, como estais? Sem esperança.
Que dizeis, coração? Que muito quero.
Que sentis, alma, vós? Que amor he fero.
E, em fim, como viveis? Sem confiança.
Quem vos sustenta, logo? Huma lembrança.
E só nella esperais? Só nella espero.
Em que podeis parar? Nisto em que estou.
E em que estais vós? Em acabar a vida.
E ténde-lo por bem? Amor o quer.
Quem vos obriga assi? Saber quem sou.
E quem sois? Quem de todo está rendida.
A quem rendida estais? A hum só querer.
CLV.
Se como em tudo o mais fostes perfeita,
Foreis de condição menos esquiva,
Fôra a minha fortuna mais altiva,
Fôra a sua altiveza mais sujeita.
Mas quando a vida a vossos pés se deita,
Porque não a acceitais, não quer que eu viva:
Ella propria de si ja a mi me priva;
Que, porque me engeitais, tambem me engeita.
Se nisso contradiz vossa vontade,
Mandai-lhe vós, Senhora, que dê fim
Á minha profundissima tristeza.
Pois ella não mo dá, porque piedade
Tenha deste meu mal, mas porque em mim
Possais assi fartar vossa crueza.{79}
CLVI.
Se algum'hora essa vista mais suave
Acaso a mi volveis, em hum momento
Me sinto com hum tal contentamento,
Que não temo que damno algum me aggrave.
Mas quando com desdem esquivo e grave
O bello rosto me mostrais isento,
Huma dor provo tal, hum tal tormento,
Que muito vem a ser que não me acabe.
Assi está minha vida, ou minha morte
No volver de esses olhos; pois podeis
Dar co'huma volta delles morte, ou vida.
Ditoso eu, se o Ceo quer, ou minha sorte,
Que ou vida, para dar-vo-la, me deis,
Ou morte, para haver morte querida!
CLVII.
Tanto se forão, Nympha, costumando
Meus olhos a chorar tua dureza,
Que vão passando ja por natureza
O que por accidente hião passando.
No que ao somno se deve estou velando,
E venho a velar só minha tristeza:
O chôro não abranda esta aspereza,
E meus olhos estão sempre chorando.
Assi de dor em dor, de mágoa em mágoa,
Consumindo-se vão inutilmente,
E esta vida tambem vão consumindo.
Sôbre o fogo de amor inutil ágoa!
Pois eu em chôro estou continuamente,
E do que vou chorando te vás rindo.
Assi nova corrente
Levas de chôro em foro;
Porque de ver-te rir, de novo chóro.{80}
CLVIII.
Eu me aparto de vós, Nymphas do Tejo,
Quando menos temia esta partida;
E se a minha alma vai entristecida,
Nos olhos o vereis com que vos vejo.
Pequenas esperanças, mal sobejo,
Vontade que razão leva vencida,
Presto verão o fim á triste vida,
Se vos não tórno a ver como desejo.
Nunca a noite entretanto, nunca o dia,
Verão partir de mi vossa lembrança:
Amor, que vai comigo, o certifica.
Por mais que no tornar haja tardança,
Me farão sempre triste companhia
Saudades do bem que em vós me fia.
CLIX.
Vencido está de amor Meu pensamento O mais que póde ser, Vencida a vida, Sujeita a vos servir e Instituida, Oferecendo tudo A vosso intento. Contente deste bem Louva o momento, Ou hora em que se vio Tão bem perdida; Mil vezes desejando, Assi ferida, Outras mil renovar Seu perdimento. Com esta pretenção Está segura A causa que me guia Nesta empreza Tão sobrenatural, Honrosa, e alta. Jurando não querer Outra ventura, Votando só por vós Rara firmeza, Ou ser no vosso amor Achado em falta.{81}
CLX.
Divina companhia, que nos prados
Do claro Eurotas, ou no Olympo monte,
Ou sôbre as margens da Castalia fonte
Vossos estudos tendes mais sagrados;
Pois por destino dos immoveis fados
Quereis qu'em vosso número me conte,
No eterno templo de Belorofonte
Ponde em bronze estes versos entalhados:
Soliso (porque em seculos futuros
Se veja da belleza o que merece
Quem de sábia doudice a mente inflama)
Seus escritos, da sorte ja seguros,
A estas aras em h~ua mão offrece,
E a alma em outra á sua bella dama.
CLXI.
Á la margen del Tajo, en claro dia,
Con rayado marfil peinando estaba
Natercia sus cabellos, y quitaba
Con sus ojos la luz al sol que ardia.
Soliso que, cual Clicie, la seguia,
Lejos de sí, mas cerca della estaba:
Al son de su zampoña celebraba
La causa de su ardor, y así decia:
Si tantas, como tú tienes cabellos,
Tuviera vidas yo, me las llevaras
Colgada cada cual del uno dellos.
De no tenerlas tú me consolaras,
Si tantas veces mil, como son ellos,
En ellos la que tengo me enredaras.{82}
CLXII.
Por gloria tuve un tiempo el ser perdido;
Perdíame de puro bien ganado;
Gané cuando perdí ser libertado;
Libre agora me veo, mas vencido.
Vencí cuando de Nise fuí rendido;
Rendíme por no ser della dejado:
Dejóme en la memoria el bien pasado;
Paso agora á llorar lo que he servido.
Servia al premio de la luz que amaba;
Amándola esperábale por cierto;
Incierto me salió cuanto esperaba.
La esperanza se queda en desconcierto;
El concierto en el mal que no pensaba;
El pensamiento con un fin incierto.
CLXIII.
Revuelvo en la incesable fantasía
Cuando me he visto en mas dichoso estado,
Si agora que de Amor vivo inflamado,
Si cuando de su ardor libre vivia.
Entonces desta llama solo huia,
Despreciando en mi vida su cuidado;
Agora, con dolor de lo pasado,
Tengo por gloria aquello que temia.
Bien veo que era vida deleitosa
Aquella que lograba sin temores,
Cuando gustos de Amor tuve por viento.
Mas viendo hoy á Natercia tan hermosa,
Hallo en esta prision glorias mayores,
Y en perderlas por libre hallo tormento.{83}
CLXIV.
Las peñas retumbaban al gemido
Del misero zagal, que lamentaba
El dolor que á su alma lastimaba,
De un obstinado desamor nacido.
El mar, que las batia, su bramido
Con los retumbos dellas ayuntaba;
Confuso son el viento derramaba,
En cavernosos valles repetido.
Responden a mi llanto duras peñas,
Ai de mí! (dijo) la mar brama y gime;
Los ecos suenan de tristeza llenos:
Y tú, por quien la muerte en mí se imprime,
De oir las ansias mias te desdeñas;
Y cuando lloro mas, te abrando menos.
CLXV.
En una selva al dispuntar del dia
Estaba Endimion triste y lloroso,
Vuelto al rayo del sol, que presuroso
Por la falda de un monte descendia.
Mirando al turbador de su alegría,
Contrario de su bien y su reposo,
Tras un suspiro y otro, congojoso,
Razones semejantes le decia:
Luz clara, para mi la mas escura,
Que con esse paseo apresurado,
Mi sol con tu teniebla escureciste;
Si allà pueden moverte en esa altura
Las quejas de un pastor enamorado,
No tardes en volver á dó saliste.{84}
CLXVI.
Orfeo enamorado que tañia
Por la perdida Ninfa que buscaba,
En el Orco implacable donde estaba,
Con la arpa, y con la voz la enternecia.
La rueda de Ixion no se movia,
Ningun atormentado se quejaba;
Las penas de los otros ablandaba,
Y todas las de todos él sentia.
El son pudo obligar de tal manera,
Que en dulce galardon de lo cantado,
Los infernales Reyes condolidos,
Le mandáron volver su compañera,
Y volvióla á perder el desdichado;
Con que fueron entrambos los perdidos.
CLXVII.
Eu cantei ja, e agora vou chorando
O tempo que cantei tão confiado:
Parece que no canto ja passado
Se estavão minhas lagrimas criando.
Cantei; mas se me alguem pergunta, quando?
Não sei; que tambem fui nisso enganado.
He tão triste este meu presente estado,
Que o passado por ledo estou julgando.
Fizerão-me cantar manhosamente
Contentamentos não, mas confianças:
Cantava, mas ja era ao som dos ferros.
De quem me queixarei, se tudo mente?
Porém que culpas ponho ás esperanças,
Onde a fortuna injusta he mais qu'os erros?{85}
CLXVIII.
Ai amiga cruel! que apartamento
He este que fazeis da patria terra?
Ai! quem do amado ninho vos desterra,
Gloria dos olhos, bem do pensamento?
His tentar da fortuna o movimento,
E dos ventos crueis a dura guerra?
Ver brenhas de ondas? feito o mar em serra
Levantado de hum vento e de outro vento?
Mas ja que vós partis, sem vos partirdes,
Parta comvosco o Ceo tanta ventura,
Que se avantaje áquella qu'esperardes.
E só desta verdade ide segura,
Que fazeis mais saudades com vos irdes,
Do que levais desejos por chegardes.
CLXIX.
Campo! nas syrtes deste mar da vida,
Apos naufragios seus taboa segura;
Claras bonanças em tormenta escura,
Habitação da paz, de amor guarida;
A ti fujo: e se vence tal fugida,
E quem mudou lugar, mudou ventura,
Cantemos a victoria; e na espessura
Triumphe a honra da ambição vencida.
Em flor e fructo de verão e outono;
Utilmente murmurão claras ágoas;
Alegre me acha aqui, me deixa o dia.
Amantes rouxinoes rompem-me o sono
Que ata o descanso: aqui sepulto mágoas
Que ja forão sepulcros de alegria.{86}
CLXX.
Ah minha Dinamene! assi deixaste
Quem nunca deixar pôde de querer-te!
Que ja, Nympha gentil, não possa ver-te!
Que tão veloz a vida desprezaste!
Como por tempo eterno te apartaste
De quem tão longe andava de perder-te?
Puderão essas ágoas defender-te
Que não visses quem tanto magoaste?
Nem somente fallar-te a dura morte
Me deixou, qu'apressada o negro manto
Lançar sôbre os teus olhos consentiste.
Oh mar! oh ceo! oh minha escura sorte!
Qual vida perderei que valha tanto,
Se inda tenho por pouco o viver triste?
CLXXI.
Guardando em mi a Sorte o seu direito.
Em verde me cortou minha alegria.
Oh quanto feneceo naquelle dia,
Cuja triste lembrança arde em meu peito!
Quando mais o imagino, bem suspeito
Que a tal bem tal desconto se devia,
Por não dizer o mundo que podia
Achar-se em seus enganos bem perfeito.
Pois se a Fortuna o fez por descontar-me
Aquelle gôsto, em cujo sentimento
A memoria não faz senão matar-me;
Que culpas póde dar-me o pensamento,
Se a causa qu'elle t~ee de atormentar-me,
Tenho eu de soffrer mal o seu tormento?{87}
CLXXII.
Cantando estava hum dia bem seguro,
Quando passava Sylvio, e me dizia:
(Sylvio, pastor antiguo que sabia
Por o canto das aves o futuro)
Liso, quando quizer o fado escuro,
A opprimir-te virão em hum só dia
Dous lobos; logo a voz e a melodia
Te fugirão, e o som suave e puro.
Bem foi assi; porque hum me degolou
Quanto gado vacum pastava e tinha,
De que grandes soldadas esperava.
E por mais damno o outro me matou
A cordeira gentil, qu'eu tanto amava,
Perpétua saudade da alma minha.
CLXXIII.
O ceo, a terra, o vento socegado,
As ondas que se estendem por a areia,
Os peixes que no mar o somno enfreia,
O nocturno silencio repousado;
O Pescador Aonio que, deitado
Onde co'o vento a água se meneia,
Chorando, o nome amado em vão nomeia,
Que não póde ser mais que nomeado,
Ondas, (dizia) antes que Amor me mate,
Tornae-me a minha Nympha, que tão cedo
Me fizestes á morte estar sujeita.
Ninguem responde; o mar de longe bate;
Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe o vento a voz, qu'ao vento deita.{88}
CLXXIV.
Ah Fortuna cruel! ah duros Fados!
Quão asinha em meu damno vos mudastes!
Com os vossos cuidados me cansastes,
E agora descansais co'os meus cuidados.
Fizestes-me provar gostos passados,
E vossa condição nelles provastes:
Singelos em hum'hora mos levastes,
Deixando em seu lugar males dobrados.
Quanto melhor me fôra que não vira
Os doces bens de Amor? Ah bens suaves!
Quem me deixa sem vós, porque me deixa?
De queixar-te, alma minha, te retira:
Alma, de alto cahida em penas graves,
Pois tanto amaste em vão, em vão te queixa.
CLXXV.
Quanto tempo, olhos meus, com tal lamento
Vos hei de ver tão tristes e aggravados?
Não bástão meus suspiros inflammados,
Que sempre em mi renovão seu tormento?
Não basta consentir meu pensamento
Em mágoas, em tristezas e em cuidados,
Senão que haveis de andar tão maltratados,
Que lagrimas tenhais por mantimento?
Não sei porque tomais esta vingança,
Mostrando-vos na ausencia tão saudosos,
Se sabeis quanto póde huma esperança.
Olhos, não aggraveis outros formosos,
Tornando hum puro amor em esquivança,
Pois ficais por esquivos desdenhosos.{89}
CLXXVI.
Lembranças, que lembrais o bem passado
Para que sinta mais o mal presente,
Deixae-me, se quereis, viver contente,
Morrer não me deixeis em tal estado.
Se de todo, comtudo, está do Fado,
Que eu morra de viver tão descontente,
Venha-me todo o bem por accidente,
E todo o mal me venha por cuidado.
Que muito melhor he perder-se a vida,
Perdendo-se as lembranças da memoria,
Pois fazem tanto damno ao pensamento.
Porque, em fim, nada perde quem perdida
A esperança t~ee ja daquella gloria
Que fazia suave o seu tormento.
CLXXVII.
Quando os olhos emprégo no passado,
De quanto passei me acho arrependido;
Vejo que tudo foi tempo perdido,
Que tudo emprêgo foi mal empregado.
Sempre no mais damnoso mais cuidado;
Tudo o que mais cumpria, mal cumprido;
De desenganos menos advertido
Fui, quando de esperanças mais frustrado.
Os castellos que erguia o pensamento,
No ponto que mais altos os erguia,
Por esse chão os via em hum momento.
Que erradas contas faz a phantasia!
Pois tudo pára em morte, tudo em vento,
Triste o que espera! triste o que confia!{90}
CLXXVIII
Ja cantei, ja chorei a dura guerra
Por Amor sustentada longos anos;
Vezes mil me vedou dizer seus danos,
Por não ver quem o segue o muito que erra.
Nymphas, por quem Castalia se abre e cerra;
Vós que fazeis á morte mil enganos,
Concedei-me ja alentos soberanos
Para que diga o mal que Amor encerra:
Para que aquelle, que o seguir ardente,
Veja em meus puros versos hum exemplo
De quanto em glorias promettidas mente.
Qu'inda qu'em triste estado me contemplo,
Se neste assumpto me inspirais, contente
Darei a minha lyra ao vosso templo.
CLXXIX
Os meus alegres, venturosos dias
Passárão, como raio, brevemente;
Movem-se os tristes mais pezadamente
Apos das fugitivas alegrias.
Ah falsas pretenções! vãas phantasias!
Que me podeis ja dar que me contente?
Ja de meu triste peito a chamma ardente
O tempo reduzio a cinzas frias.
Nellas revolvo agora erros passados;
Que outro fructo não deo a mocidade,
A quem vergonha e dor minha alma deve
Revolvo mais de toda a mais idade,
Desejos vãos, vãos choros, vãos cuidados,
Para que leve tudo o tempo leve.{91}
CLXXX.
Horas breves de meu contentamento,
Nunca me pareceo, quando vos tinha,
Que vos visse mudadas tão asinha
Em tão compridos annos de tormento.
As altas tôrres, que fundei no vento,
Levou, em fim, o vento que as sostinha:
Do mal, que me ficou, a culpa he minha,
Pois sôbre cousas vãas fiz fundamento.
Amor com brandas mostras apparece,
Tudo possivel faz, tudo assegura;
Mas logo no melhor desapparece.
Estranho mal! estranha desventura!
Por hum pequeno bem que desfallece,
Hum bem aventurar, que sempre dura!
CLXXXI.
Onde acharei lugar tão apartado,
E tão isento em tudo da ventura,
Que, não digo eu de humana criatura,
Mas nem de feras seja frequentado?
Algum bosque medonho e carregado,
Ou selva solitaria, triste e escura,
Sem fonte clara, ou placida verdura;
Em fim, lugar conforme a meu cuidado?
Porque alli nas entranhas dos penedos,
Em vida morto, sepultado em vida,
Me queixe copiosa e livremente.
Que, pois a minha pena he sem medida,
Alli não serei triste em dias ledos,
E dias tristes me farão contente.{92}
CLXXXII.
Aqui de longos damnos breve historia
Verão os que se jactão de amadores:
Reparo póde ser das suas dores
Não apartar as minhas da memoria.
Escrevi, não por fama, nem por gloria,
De que outros versos são merecedores,
Mas por mostrar seus triumphos, seus rigores
A quem de mi logrou tanta victoria.
Crescendo foi a dor co'o tempo, tanto
Que em número me fez, alheio de arte,
Dizer do cego Amor, que me venceo.
Se ao canto dei a voz, dei a alma ao pranto;
E dando a penna á mão, esta só parte
De minhas tristes penas escreveo.
CLXXXIII.
Por sua Nympha Céphalo deixava
A Aurora, que por elle se perdia,
Postoque dá principio ao claro dia,
Postoque as roxas flores imitava.
Elle, que a bella Procris tanto amava,
Que só por ella tudo engeitaria,
Deseja de tentar se lhe acharia
Tão firme fé, como ella nelle achava.
Mudado o trage, tece hum duro engano;
Outro se finge, preço põe diante;
Quebra-se a fé mudavel, e consente.
Oh subtil invenção para seu dano!
Vêde que manhas busca hum cego amante
Para que sempre seja descontente!{93}
CLXXXIV.
Sentindo-se alcançada a bella esposa
De Céphalo no crime consentido,
Para os montes fugia do marido;
E não sei se de astuta, ou vergonhosa.
Porque elle, em fim, soffrendo a dor ciosa,
Da cegueira obrigado de Cupido,
Apos ella se vai como perdido,
Ja perdoando a culpa criminosa.
Deita-se aos pés da Nympha endurecida,
Que do cioso engano está aggravada;
Ja lhe pede perdão, ja pede a vida.
Oh fôrça d'affeição desatinada!
Que da culpa contr'elle commettida,
Perdão pedia á parte que he culpada!
CLXXXV.
Seguia aquelle fogo, que o guiava,
Leandro, contra o mar e contra o vento;
Quebravão-lhe ondas o animoso alento,
Por mais e mais que Amor lho renovava.
Com sentir ja que quasi lhe faltava,
Sem nada esmorecer, no pensamento
(Não podendo fallar) de seu intento
O fim ao surdo mar encommendava.
Ó mar, (dizia o moço só comsigo)
Ja te não peço a vida; só queria
Que a d'Hero me salvasses: não me veja:
Este defunto corpo lá o desvia
D'aquella tôrre: sê-me nisto amigo,
Pois no meu maior bem me houveste inveja.{94}
CLXXXVI.
Os olhos onde o casto Amor ardia,
Ledo de se ver nelles abrazado;
O rosto onde com lustre desusado
Purpurea rosa sôbre neve ardia;
O cabello, que inveja ao sol fazia,
Porque fazia o seu menos dourado;
A branca mão, o corpo bem talhado,
Tudo aqui se reduz a terra fria.
Perfeita formosura em tenra idade,
Qual flor, que antecipada foi colhida,
Murchada está da mão da morte dura.
Como não morre Amor de piedade?
Não della, que se foi á clara vida;
Mas de si, que ficou em noute escura.
CLXXXVII.
Ditosa penna, como a mão que a guia
Com tantas perfeições da subtil arte,
Que quando com razão venho a louvar-te,
Em teus louvores perco a phantasia.
Porém Amor, que effeitos varios cria,
De ti cantar me manda em toda parte,
Não em plectro belligero de Marte,
Mas em suave e branda melodia.
Teu nome, Emmanuel, de hum n'outro pólo,
Voando se levanta e te pregoa,
Agora que ninguem te levantava.
E porque immortal sejas, eis Apolo
Te offerece de flores a coroa,
Que ja de longo tempo te guardava.{95}
CLXXXVIII.
Espanta crescer tanto o crocodilo
Só por seu limitado nascimento;
Que, se maior nascêra, mais isento
Estivera de espanto o patrio Nilo.
Em vão levantará meu baixo estilo
Vosso Pontifical, novo ornamento;
Pois no ventre o immortal merecimento
Vo-lo talhou, para despois vesti-lo.
Tardou, mas veio; que a quem mais merece
Vir o premio mais tarde he sempre certo,
Inda que vez alguma venha cedo.
Os ceos, que do primeiro estão mais perto,
Mais devagar se movem. Quem conhece,
Sôbre aquelle segredo, este segredo!
CLXXXIX.
Ornou sublime esfôrço ao grande Atlante,
Com qu'a celeste máchina sustenta;
Honrou a Homero o engenho, com que intenta
Grecia do quarto ceo passá-lo avante;
Coroou claro Amor de amor constante
A Orpheo, na paz firme e na tormenta;
Inspirou a Fortuna, em tudo isenta,
A Cesar, de quem foi hum tempo amante;
Exaltaste tu, Fama, a gloria alta
De Alcides lá no monte em que resides;
Mas Castro, em quem o Ceo seus dões derrama,
Mais orna, honra, coroa, inspira, exalta,
Que Atlante, Homero, Orpheo, Cesar e Alcides,
Esfôrço, engenho, Amor, Fortuna e Fama.{96}
CXC.
Despois que vio Cibele o corpo humano
Do formoso Atys seu verde pinheiro,
Em piedade o vão furor primeiro
Convertido, chorava o grave dano.
E, á sua dor fazendo illustre engano,
A Jupiter pedio, que o verdadeiro
Preço da nobre palma e do loureiro
Ao seu pinheiro désse, soberano.
Mais lhe concede o filho poderoso
Que, crescendo, as estrellas tocar possa,
Vendo os segredos lá do ceo superno.
Oh ditoso pinheiro! oh mais ditoso
Quem se vir coroar da rama vossa,
Cantando á vossa sombra verso eterno!
CXCI.
Pois torna por seu Rei e juntamente
Por Christo a governar aquella parte
Onde se t~ee mostrado hum Numa, hum Marte
O famoso Luis, justo e valente;
O Tejo espere ver de todo o Oriente,
Onde tão raros dões o Ceo reparte,
Render a tanto esfôrço, aviso e arte,
Mil palmas, mil tributos novamente.
Os que bebem no Gange, os que no Indo,
A quem pouco valêrão lança e escudo,
O render-se terão por bom partido.
O Euphrates temerá, seu nome ouvindo;
Que para delle ver vencido tudo,
Ja vio do braço seu tudo vencido.{97}
CXCII.
Agora toma a espada, agora a pena,
Estacio nosso, em ambas celebrado,
Sendo, ou no salso mar de Marte amado,
Ou n'água doce amante da Camena.
Cysne sonoro por ribeira amena
De mi para cantar-te he cobiçado;
Porque não podes tu ser bem cantado
De ruda frauta, nem de agreste avena.
Se eu, que a penna tomei, tomei a espada,
Para poder jogar licença tenho
Desta alta influïção de dous Planetas;
Com huma e outra luz delles lograda,
Tu com pujante braço, ardente engenho,
Serás pharo a Soldados e a Poetas.
CXCIII.
Erros meus, ma Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjurárão:
Os erros e a Fortuna sobejárão;
Que para mi bastava Amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas, que passárão,
Que ja as frequencias suas me ensinárão
A desejos deixar de ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.
De Amor não vi senão breves enganos.
Oh quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Genio de vinganças!{98}
CXCIV.
Cá nesta Babylonia donde mana
Materia a quanto mal o mundo cria;
Cá donde o puro Amor não t~ee valia;
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;
Cá donde o mal se affina, o bem se dana,
E póde mais que a honra a tyrannia;
Cá donde a errada e cega Monarchia
Cuida que hum nome vão a Deos engana;
Cá neste labyrintho onde a Nobreza,
O Valor e o Saber pedindo vão
Ás portas da Cobiça e da Vileza;
Cá neste escuro caos de confusão
Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!
CXCV.
Correm turbas as águas deste rio,
Que as rapidas enchentes enturbárão;
Os florecidos campos se seccárão;
Intratavel se fez o valle e frio.
Passou, como o verão, o ardente estio;
Humas cousas por outras se trocárão:
Os fementidos fados ja deixárão
Do mundo o regimento, ou desvario.
Ja o tempo a ordem sua t~ee sabida;
O mundo não; mas anda tão confuso,
Que parece que delle Deos se esquece.
Casos, opiniões, natura, e uso,
Fazem que nos pareça desta vida
Que não ha nella mais do que parece.{99}
CXCVI.
Vós outros, que buscais repouso certo
Na vida, com diversos exercicios;
A quem, vendo do mundo os beneficios,
O regimento seu fica encoberto;
Dedicae, se quereis, ao Desconcêrto
Novas honras e cegos sacrificios;
Que, por castigo igual de antiguos vicios,
Quer Deos que andem as cousas por acêrto.
Não cahio neste modo de castigo
Quem poz culpa á Fortuna, quem somente
Crê que acontecimentos ha no mundo.
A grande experiencia he grão perigo:
Mas o que a Deos he justo e evidente
Parece injusto aos homens e profundo.
CXCVII.
Para se namorar do que criou,
Te fez Deos, sacra Phenix, Virgem pura.
Vêde que tal seria esta feitura
Que para si o seu Feitor guardou!
No seu alto conceito te formou
Primeiro que a primeira criatura,
Para que unica fosse a compostura
Que de tão longo tempo se estudou.
Não sei se digo em tudo quanto baste
Para exprimir as raras qualidades
Que quiz criar em ti quem tu criaste.
Es Filha, Mãe, e Esposa: e se alcançaste
Huma só, tres tão altas dignidades,
Foi porqu'a Tres de Hum só tanto agradaste.{100}
CXCVIII.
Desce do ceo immenso Deos benino
Para encarnar na Virgem soberana.
Porque desce o divino a cousa humana?
Para subir o humano a ser divino.
Pois como vem tão pobre e tão menino,
Rendendo-se ao poder da mão tyrana?
Porque vem receber morte inhumana
Para pagar de Adão o desatino.
He possivel que os dous o fructo comem
Que de quem lhes deo tanto foi vedado?
Si; porque o proprio ser de deoses tomem.
E por esta razão foi humanado?
Si; porque foi com causa decretado,
Se quiz o homem ser Deos, que Deos fosse homem.
CXCIX.
Dos ceos á terra desce a mor Belleza,
Une-se á nossa carne, e a faz nobre;
E, sendo a humanidade d'antes pobre,
Hoje subida fica á mor riqueza.
Busca o Senhor mais rico a mor pobreza;
Que, como ao mundo o seu amor descobre,
De palhas vis o corpo tenro cobre,
E por ellas o mesmo ceo despreza.
Como? Deos em pobreza á terra dece?
O qu'he mais pobre tanto lhe contenta,
Qu'este somente rico lhe parece.
Pobreza este Presepio representa;
Mas tanto por ser pobre ja merece,
Que quanto mais o he, mais lhe contenta.{101}
CC.
Porque a tamanhas penas se offerece
Por o peccado alheio, e êrro insano,
O Trino Deos? Porque o sogeito humano
Não póde co'o castigo que merece.
Quem padecerá as penas que padece?
Quem soffrerá deshonra, morte e dano?
Quem será, se não for o Soberano
Que reina, e servos manda, e obedece?
Foi a fôrça do homem tão pequena,
Que não pôde soster tanta aspereza,
Pois não sosteve a Lei que Deos ordena.
Mas soffre-a aquella immensa Fortaleza
Por amor puro; que a mortal fraqueza
Foi para o êrro, e não ja para a pena.
CCI.
Despois de haver chorado os meus tormentos,
Quer Amor que lhe cante as suas glorias.
Canto de huma belleza os vencimentos,
De hum longo padecer chóro as memorias.
Porém, se as minhas penas são victorias,
Por a causa, a meus altos pensamentos;
Dilatem-se em larguissimas historias
Estes meus gloriosos rendimentos.
Mova-se em todo o mundo unico espanto
De qu'he, por a belleza qu'eu adoro,
Do que cantado tenho premio o pranto.
Contente offreço a amor tão triste foro:
Que se chôro não ha como o meu canto,
Não sei canto melhor qu'este meu chôro.{102}
CCII.
Onde mereci eu tal pensamento
Nunca de ser humano merecido?
Onde mereci eu ficar vencido
De quem tanto me honrou co'o vencimento?
Em gloria se converte o meu tormento,
Quando vendo-me estou tão bem perdido;
Pois não foi tanto mal ser atrevido,
Como foi gloria o mesmo atrevimento.
Vivo, Senhora, só de contemplar-vos;
E pois esta alma tenho tão rendida,
Em lagrimas desfeito acabarei.
Porque não me farão deixar de amar-vos
Receios de perder por vós a vida;
Que por vós vezes mil a perderei.
CCIII.
De frescas belvederes rodeadas
Estão as puras águas desta fonte;
Formosas Nymphas lhes estão defronte,
A vencer e a matar acostumadas.
Andão contra Cupido levantadas
As suas graças, que não ha quem conte:
D'outro valle esquecidas, d'outro monte,
A vida passão neste socegadas.
O seu poder juntou, sua valia
Amor, ja não soffrendo este desprêzo,
Somente por se ver dellas vingado;
Mas, vendo-as, entendeo que não podia
De ser morto livrar-se, ou de ser prêzo,
E ficou-se com ellas desarmado.{103}
CCIV.
Nos braços de hum Sylvano adormecendo
Se estava aquella Nympha qu'eu adoro,
Pagando com a boca o doce foro,
Com que os meus olhos foi escurecendo.
Oh bella Venus! porqu'estás soffrendo
Que a maior formosura do teu côro
Em hum poder tão vil perca o decoro
Que o merito maior lhe está devendo?
Eu levarei daqui por presupposto
Desta nova estranheza que fizeste,
Que em ti não póde haver cousa segura.
Que, pois o claro lume, o bello rosto
Áquelle monstro tão disforme déste,
Não creio qu'haja Amor, senão Ventura.
CCV.
Quem diz que Amor he falso, ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel, ou rigoroso,
Amor he brando, he doce, e he piedoso:
Quem o contrário diz não seja crido;
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens, e inda aos deoses odioso.
Se males faz Amor, em mi se vem;
Em mi mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quiz mostrar quanto podia.
Mas todas suas iras são d'Amor;
Todos estes seus males são hum bem,
Qu'eu por todo outro bem não trocaria.{104}
CCVI.
Formosa Beatriz, tendes taes geitos
N'hum brando revolver dos olhos bellos,
Que só no contemplá-los, se não ve-los,
Se inflammão corações e humanos peitos.
Em toda perfeição são tão perfeitos,
Que o desengano dão de merecê-los:
Não póde haver quem possa conhecê-los,
Sem nelle Amor fazer grandes effeitos.
Sentirão, por meu mal, tão graves danos
Os meus, que com os ver cegos e tristes
Ficarão sem prazer, co'a luz perdida.
Mas ja que vós com elles me feristes,
Tornai-me a ver com elles mais humanos,
E deixareis curada esta ferida.
CCVII.
Alegres campos, verdes, deleitosos,
Suaves me serão vossas boninas,
Em quanto forem vistas das meninas
Dos olhos de Ignez bella tão formosos.
Dos meus, que vos serão sempre invejosos
Por não verem estrellas tão divinas,
Sereis regados d'águas peregrinas,
Soprados de suspiros amorosos.
E vós, douradas flores, por ventura
Se Ignez quizer fazer de meus amores
Exp'riencias na folha derradeira,
Mostrai-lhe, para ver minha fé pura,
O bem que sempre quiz, formosas flores;
Qu'então não sentirei que mal me queira.{105}
CCVIII.
Ondados fios de ouro, onde enlaçado.
Continuamente tenho o pensamento;
Que quanto mais vos sólta o fresco vento,
Mais preso fico então de meu cuidado;
Amor, d'huns bellos olhos sempre armado,
Me combate co'as fôrças do tormento,
Provando da minha alma o soffrimento
Que á justa lei da paz trago obrigado.
Assi que em vosso gesto mais que humano
Amo a paz juntamente e o perigo;
E em amar hum e outro não me engano.
Muitas vezes dizendo estou comigo
Que, pois he tal a causa de meu dano,
He justa a guerra, he justa a paz que sigo.
CCIX.
Amor, que em sonhos vãos do pensamento
Paga o zêlo maior de seu cuidado,
Em toda condição, em todo estado,
Tributario me fez de seu tormento.
Eu sirvo, eu canso; e o grão merecimento
De quanto tenho a Amor sacrificado,
Nas mãos da ingratidão despedaçado
Por prêza vai do eterno esquecimento.
Mas quando muito, em fim, cresça o perigo,
A que perpetuamente me condena
Amor, que amor não he, mas inimigo;
Tenho hum grande descanso em minha pena,
Que a gloria do querer, que tanto sigo,
Não póde ser co'os males mais pequena.{106}
CCX.
Nem o tremendo estrépito da guerra
Com armas, com incendios espantosos
Que despachão pelouros perigosos,
Bastantes a abalar huma alta serra,
Podem pôr medo a quem nenhum encerra,
Despois que vio os olhos tão formosos,
Por quem o horror nos casos pavorosos
De mi todo se aparta e se desterra,
A vida posso ao fogo e ferro dar,
E perdê-la em qualquer duro perigo,
E nelle, como phenix, renovar.
Não póde mal haver para comigo,
De qu'eu ja me não possa bem livrar,
Senão do que me ordena Amor imigo.
CCXI.
Fiou-se o coração, de muito isento,
De si, cuidando mal que tomaria
Tão illicito amor, tal ousadia,
Tal modo nunca visto de tormento.
Mas os olhos pintárão tão a tento
Outros que vistos t~ee na phantasia,
Que a razão, temerosa do que via,
Fugio, deixando o campo ao pensamento.
Ó Hippolyto casto, que de geito
De Phedra tua madrasta foste amado,
Que não sabia ter nenhum respeito;
Em mi vingou Amor teu casto peito:
Mas está deste aggravo tão vingado,
Que se arrepende ja do que t~ee feito.{107}
CCXII.
Quem quizer ver d'amor huma excellencia
Onde sua fineza mais se apura,
Attente onde me põe minha ventura,
Porque de minha fé faça exp'riencia.
Onde lembranças mata a larga ausencia,
Em temeroso mar, em guerra dura,
A saudade alli'stá mais segura,
Quando risco maior corre a paciencia.
Mas ponha-me a Fortuna e o duro Fado,
Em morte, ou nojo, ou damno, ou perdição,
Ou em sublime e próspera ventura;
Ponha-me, em fim, em baixo ou alto estado;
Que até na dura morte me acharão
Na lingua o nome, e n'alma a vista pura.
CCXIII.
Los ojos que con blando movimiento
Al pasar enternecen la alma mia,
Si detener pudiera solo un dia,
Pudiera bien libraria de tormento.
Deste tan amoroso sentimiento
El importuno mal se acabaria;
Ó tambien su accidente creceria
Para acabar la vida en un momento.
Oh! si ya tu esquivez me permitiese
Que al ver, o Ninfa, tu semblante hermoso,
A manos de tus ojos yo muriese!
Oh si los detuvieras! cuan dichoso
Seria aquel momento en que me viese
Vida en ellos cobrar, cobrar reposo!{108}
CCXIV.
No bastaba que amor puro y ardiente
Por términos la vida me quitase;
Mas que la muerte así se apresurase
Con un deshumanisimo accidente?
No pretendió mi alma, aunque lo siente,
Que el riguroso curso se atajase,
Porque nunca morir se exprimentase
Desamado el que amó tan dulcemente.
Mas vuestra voluntad tan poderosa
Con esas gracias vuestras ordenaron
Crueldad asi imposible, ó nunca oída.
Aquel frio desden, y la amorosa
Furia, de un golpe solo, me quitaron
Con dós contrarias muertes una vida.
CCXV.
Ayudame, Señora, á hacer venganza
De tal selvatiquez, de tal rudeza,
Pues de mi poquedad, de mi bajeza
Osado á ti elevaba la esperanza.
Á esa tu perfeccion, que no se alcanza,
Á esas sublimes cumbres de belleza,
Donde una vez llegó naturaleza,
Mas de volver perdió la confianza.
Aquello que en ti miro contemplando,
(Que apenas contemplarlo me consiente)
Contemplándolo mas, menos lo espero.
Si gloria de mi pena en ti se siente,
Derrama en mí tus iras, desamando;
Que al ofenderme mas yo mas te quiero.{109}
CCXVI.
O claras águas deste blando rio,
Que en vos al natural estais pintando
El frondífero adorno con que alzando
Se vá á los cielos este bosque umbrio;
Así las lluvias, así el Austro frio
Jamás puedan veniros enturbiando,
Que os vais del seco estio preservando
Con socorreros deste llanto mio.
Y cuando en vos Marfisa se mirare,
Mi figura, cual veis desfallecida,
Ante sus claros ojos puesta sea.
Y si por mí de vos los apartare,
De verme alli mostrándose ofendida,
En pena de no verme no se vea.
CCXVII.
Mil veces entre sueños tu figura,
O bella Ninfa, claramente veo;
Y cuando mas la miro, mas deseo
Gozar libre de sueños su hermosura.
En tanto que este dulce engaño dura,
Vivo en la vana gloria que poseo:
Mas cuanto allí se eleva mi deseo,
Viene a caer despierto en sombra escura.
Duéleme el despertar por contemplarte;
Que si bien sé te huelgas de no verme,
Huélgome de ser ciego por mirarte.
Mas si quiero de engaños mantenerme,
Y tú quieres me pierda por amarte,
Sin gran ganancia no podré perderme.{110}
CCXVIII.
Mi gusto y tu beldad se desposaron,
Terceros por mi mal mis ojos fueron:
Su logro ha sido tal, que, alfin, hicieron
Un hijo hermoso á quien amor llamaron.
Tan fuera de compás le regalaron,
Que cuando mas alegres estuvieron,
Sin entender el mal que produjeron,
Perdidos por amores se miraron.
La beldad desposada deste duelo,
Vino á parir un monstro con dós alas;
La madre es la soberbia, el niño el zelo.
Oh madre que á tu hijo en todo igualas!
Quien mortal hace al inmortal abuelo,
Y al padre mortal da inmortales zalas?
CCXIX.
Si el fuego que me enciende, consumido
De algun mas suelto Aquario ser pudiese;
Si el alto suspirar me convertiese
En aire por el aire desparcido;
Si un horrible rumor siendo sentido,
La alma á dejar el cuerpo redujese;
Ó por estos mis ojos al mar fuese
Este mi cuerpo en llanto convertido;
Nunca podria la fortuna airada,
Com todos sus horrores, sus espantos,
Derrocar la alma mia de su gloria.
Porque en vuestra beldad ya transformada,
Ni del Estigio lago eternos llantos
Os podrian quitar de mi memoria.{111}
CCXX.
Que me quereis perpétuas saudades?
Com qu'esperanças inda me enganais?
O tempo, que se vai, não torna mais,
E se torna, não tornão as idades.
Razão he ja, ó annos, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que passais,
Nem todos para hum gôsto sois iguais,
Nem sempre são conformes as vontades.
Aquillo a que ja quiz he tão mudado,
Que quasi he outra cousa; porque os dias
T~ee o primeiro gôsto ja damnado.
Esperanças de novas alegrias,
Não m'as deixa a Fortuna e o tempo irado,
Que do contentamento são espias.
CCXXI.
Oh rigorosa ausencia desejada
De mi sempre, mas nunca conhecida!
Saudade, n'outro tempo tão temida,
Como em meu damno agora exprimentada!
Ja rigorosamente começada
Tendes vossa esperança em minha vida;
Mas tanto, que ja temo que opprimida
Sejais com ella cedo, ou acabada.
Os dias mais alegres me entristecem;
As noites, com cuidados as desconto,
Em que sem vós sem conto me parecem.
Eu desejando espero, e os annos conto;
Mas com a vida, em fim, elles fallecem:
Nem basta á carne enfêrma esprito pronto.{112}
CCXXII.
Ay! quien dará á mis ojos una fuente
De lágrimas que manen noche y dia?
Respirara si quiera la alma mia,
Llorando lo pasado, y lo presente.
Quien me diera apartado de la gente,
De mi dolor siguiendo la porfia
Con la triste memoria y fantasia
Del bien por quien mal tanto así se siente!
Quien me dará palabras con que iguale
El duro agravio que el amor me ha hecho,
Donde tan poco el sufrimiento vale?
Quien me abrirá profundamente el pecho,
Dó está escrito el secreto que no sale,
Con tanto dolor mio, á mi despecho?
CCXXIII.
Con razon os vais, aguas, fatigando
Por llegar dó sereis bien recebidas;
Y en aquel mar inmenso convertidas,
Que ya de tantos dias vais buscando.
Triste de aquel que siempre anda llorando
Las vanas esperanzas ya perdidas,
Y con dolor las lágrimas vertidas
Nunca al fin pretendido van llegando!
Vosotras sin traer derecha via,
Al término llegais tan deseado,
Por mas que os embarace el gran rodeo;
Mas yo siempre afligido noche y dia,
Por un camino, que no llevo errado,
Jamás puedo llegar donde deseo.{113}
CCXXIV.
Oh cese ya, Señor, tu dura mano!
No llegues tanto al cabo con mi vida;
Baste el estar por ti tan consumida,
Que ya no se halla en ella lugar sano.
Ay estraña hermosura! ay deshumano
Hado, á que nunca puedo hallar salida!
Si tú de tu piedad no eres movida,
Roto el hilo vital verás temprano.
Un blando desamor, un amor blando,
Bien basta para un hombre tan perdido,
Que de su mal ningun remedio espera.
Y si estimas en poco el ver cual ando,
Aqui me tienes ante ti rendido:
Viva tu gusto, mi esperanza muera.
CCXXV.
Dulces engaños de mis ojos tristes,
Cuan vivo despertais mi pensamiento!
Aquello que pudiera dar contento,
En sombra de pintura lo volvistes.
De blando sobresalto enternecistes
Con vista arrebatada el sentimiento;
Mas no le asegurastes un momento
Aqueste vano bien que le ofrecistes.
Veo que la figura era fingida,
Y no aquella que en sí mi alma esconde,
Aunque en esto se llega al natural:
Así escucha mi llanto, así responde,
Así se condolece de mi vida,
Como si fuera el propio original.{114}
CCXXVI.
Cuanto tiempo ha que lloro un dia triste,
Como si alguno alegre yo esperara?
Como, o Tajo, al pasar esa tu clara
Agua, no la alteraste, y no me hundiste?
El paso me cerraste, el pecho abriste,
O mi ventura, de mi bien avara!
Á Dios, montañas de hermosura rara;
Á Dios, mi corazon, que no partiste.
Si adonde quedas en dichosa suerte
No bebieres las aguas del olvido,
En tanto bien no quieras olvidarme.
Cantando mi dolor llora mi muerte;
Porque hasta el hueco monte sin sentido
Suelta su ronca voz por consolarme.
CCXXVII.
Levantai, minhas Tagides, a frente,
Deixando o Tejo ás sombras nemorosas;
Dourai o valle umbroso, as frescas rosas,
E o monte com as árvores frondente.
Fique de vós hum pouco o rio ausente,
Cessem agora as lyras numerosas,
Cesse vosso lavor, Nymphas formosas,
Cesse da fonte vossa a grã corrente.
Vinde a ver a Theodosio grande e claro,
A quem 'stá offrecendo maior canto
Na cithara dourada o louro Apolo.
Minerva do saber dá-lhe o dom raro,
Pallas lhe dá o valor de mais espanto,
E a Fama o leva ja de pólo a pólo.{115}
CCXXVIII.
Vós, Nymphas da Gangetica espessura,
Cantae suavemente, em voz sonora,
Hum grande Capitão que a roxa Aurora
Dos filhos defendeo da noite escura.
Ajuntou-se a caterva negra e dura,
Que na Aurea Chersoneso affouta mora,
Para lançar do charo ninho fóra
Aquelles que mais podem que a ventura.
Mas hum forte leão, com pouca gente,
A multidão tão fera como necia,
Destruindo castiga e torna fraca.
Ó Nymphas, cantai, pois; que claramente
Mais do que Leonidas fez em Grecia,
O nobre Leoniz fez em Malaca.
CCXXIX.
Alma gentil, que á firme eternidade
Subiste clara e valerosamente,
Cá durará de ti perpetuamente
A fama, a gloria, o nome e a saudade.
Não sei se he mor espanto em tal idade
Deixar de teu valor inveja á gente,
Se hum peito de diamante, ou de serpente,
Fazeres que se mova a piedade.
Invejosa da tua acho mil sortes,
E a minha mais que todas invejosa,
Pois ao teu mal o meu tanto igualaste.
Oh ditoso morrer! sorte ditosa!
Pois o que não se alcança com mil mortes,
Tu com huma só morte o alcançaste.{116}
CCXXX.
Debaixo desta pedra sepultada
Jaz do mundo a mais nobre formosura,
A quem a morte, só de inveja pura,
Sem tempo sua vida t~ee roubada,
Sem ter respeito áquella assi estremada
Gentileza de luz, que a noite escura
Tornava em claro dia; cuja alvura
Do sol a clara luz tinha eclipsada.
Do sol peitada foste, cruel morte,
Para o livrar de quem o escurecia;
E da lua, que ante ella luz não tinha.
Como de tal poder tiveste sorte?
E se a tiveste, como tão asinha
Tornaste a luz do mundo em terra fria?
CCXXXI.
Imagens vãas me imprime a phantasia;
Discursos novos acha o pensamento;
Com que dão á minha alma grão tormento
Cuidados de cem annos n'hum só dia.
Se fim grande tivessem, bem sería
Responder a esperança ao fundamento:
Mas o fado não corre tão a tento,
Que reserve á razão sua valia.
Caso e Fortuna pódem acertar;
Mas se por accidente dão victoria,
Sempre o favor da Fama he falsa historia.
Excede ao saber, determinar:
Á constancia se deve toda a gloria:
O ânimo livre he digno de memoria.{117}
CCXXXII.
Quanta incerta esperança, quanto engano!
Quanto viver de falsos pensamentos!
Pois todos vão fazer seus fundamentos
Só no mesmo em qu'está seu proprio dano.
Na incerta vida estribão de hum humano;
Dão credito a palavras que são ventos;
Chórão despois as horas e os momentos,
Que rírão com mais gôsto em todo o ano.
Não haja em apparencias confianças;
Entendei que o viver he de emprestado;
Que o de que vive o mundo são mudanças.
Mudai, pois, o sentido e o cuidado,
Somente amando aquellas esperanças
Que durão para sempre com o amado.
CCXXXIII.
Mal, que de tempo em tempo vás crescendo,
Quem te visse de hum bem acompanhado!
A vida passaria descansado,
Da morte não temêra o rosto horrendo.
Se os vãos cuidados fôra convertendo
Em suspiros que dão outro cuidado,
Oh quão prudente, oh quão affortunado
A capella do louro irá tecendo!
Tempo he ja de esquecer contentamentos
Passados, co'a esperança que passou,
E de que triumphem novos pensamentos.
A fé, que viva n'alma me ficou,
Dê ja fim aos caducos ardimentos
A que o passado bem se condemnou.{118}
CCXXXIV.
Oh quanto melhor he o supremo dia
Da mansa morte, que o do nascimento!
Oh quanto melhor he hum só momento,
Que livra de annos tantos de agonia!
De alcançar outro bem cesse a porfia;
Cesse todo applicado pensamento
De tudo quanto dá contentamento,
Pois só contenta ao corpo a terra fria.
O que do seu fez Deos seu despenseiro,
T~ee mais estreita conta que lhe dar:
Então parece rico o ovelheiro.
Triste de quem no dia derradeiro
T~ee o suor alheio por pagar,
Pois a alma ha de vender por o dinheiro!
CCXXXV.
Como podes (oh cego peccador!)
Estar em teus errores tão isento,
Sabendo que esta vida he hum momento,
Se comparada com a eterna for?
Não cuides tu que o justo Julgador
Deixará tuas culpas sem tormento,
Nem que passando vai o tempo lento
Do dia de horrendíssimo pavor.
Não gastes horas, dias, mezes, anos,
Em seguir de teus damnos a amisade
De que despois resultão mores danos.
E pois de teus enganos a verdade
Conheces, deixa ja tantos enganos,
Pedindo a Deos perdão com humildade.{119}
CCXXXVI.
Verdade, Amor, Razão, Merecimento,
Qualquer alma farão segura e forte;
Porém Fortuna, Caso, Tempo, e Sorte,
T~ee do confuso mundo o regimento.
Effeitos mil revolve o pensamento,
E não sabe a que causa se reporte:
Mas sabe que o que he mais que vida e morte
Não se alcança de humano entendimento.
Doctos varões darão razões subidas;
Mas são as exp'riencias mais provadas:
E por tanto he melhor ter muito visto.
Cousas ha hi que passão sem ser cridas:
E cousas cridas ha sem ser passadas.
Mas o melhor de tudo he crer em Christo.
CCXXXVII.
De Babel sôbre os rios nos sentámos,
De nossa doce patria desterrados,
As mãos na face, os olhos derribados,
Com saudades de ti, Sião, chorámos.
Os orgãos nos salgueiros pendurámos,
Em outro tempo bem de nós tocados;
Outro era elle, por certo, outros cuidados;
Mas por deixar saudades os deixâmos.
Aquelles que captivos nos trazião
Por cantigas alegres perguntavão:
Cantai (nos dizem) hymnos de Sião.
Sôbre tal pena, pena tal nos dão,
Pois tyranicamente pretendião
Que cantassem aquelles que choravão.{120}
CCXXXVIII.
Sôbre os rios do Reino escuro, quando
Tristes, quaes nossas culpas o ordenárão,
Lagrimas nossos olhos derramárão,
Por ti, Sião divina, suspirando,
Os que hião nossas almas infestando,
De contino em error, as captivárão;
E em vão por nossos Psalmos perguntárão;
Que tudo era silencio miserando.
Dizendo estamos: Como cantaremos
As acceitas canções a Deos benino,
Quando a contrarios seus obedecemos?
Mas ja, Senhor só Santo, determino,
Deixando viciosissimos extremos,
Os cantos proseguir de Amor Divino.
CCXXXIX.
Em Babylonia sôbre os rios, quando
De ti, Sião sagrada, nos lembrámos,
Alli com grã saudade nos sentámos,
O bem perdido, miseros, chorando.
Os instrumentos musicos deixando,
Nos estranhos salgueiros pendurámos,
Quando aos cantares, que ja em ti cantámos,
Nos estavão imigos incitando.
Ás esquadras dizemos inimigas:
Como hemos de cantar em terra alhea
As cantigas de Deos, sacras cantigas?
Se a lembrança eu perder que me recrea
Cá nestas penosissimas fadigas,
Oblivioni detur dextra mea.{121}
CCXL.
Aponta a bella Aurora, luz primeira,
Que a grã nova nos deo do claro dia:
Vesti-vos, corações, ja de alegria,
E recebei da vida a Mensageira.
Da humana Redempção nasce a Terceira:
Alegra-te, Divina Monarchia;
Da terra terás cedo a companhia,
Do ceo verás tambem a nossa feira.
De tal obra se espanta a natureza,
Confuso fica de temor o inferno,
Vendo a que nasce isenta da defeza.
Lei geral era posta desde eterno;
Mas o Senhor da Lei toda limpeza
Para o Sacrario seu guardou Materno.
CCXLI.
Porque a terra no ceo agasalhasse,
O ceo na terra Deos agasalhou:
Lá não cabendo, cá se accommodou,
Porque lá, de cá indo, se alargasse.
Porqu'o homem a ser Deos por Deos chegasse,
Por o homem a ser homem Deos chegou:
Seu divino poder tanto humanou,
Porque o humano em divino se tornasse.
Vêde bem o que deo e recebeo:
Não se perca hum bem tanto da memoria:
Deo-nos a vida, a morte padeceo.
Trocou por nossa pena a sua gloria;
Deo-nos o triumpho qu'elle mereceo;
Porque amor foi auctor desta victoria.{122}
CCXLII.
Qu'estilla a Arvore sacra? Hum licor santo.
Para quem? Para o genero he humano.
Que faz delle? Hum remedio soberano.
Para que? Para a culpa e triste pranto.
E que obra? Reduzir Lusbel a espanto.
Porque? Porque co'hum pomo fez grão dano.
Que foi? A morte deo com hum engano.
Tanto pôde? Sem falta pôde tanto.
Quem sobe a ella? Quem do ceo desceo.
A que desce? A subir a creatura.
Que quiz da terra? Só levá-la ao Ceo.
He escada para ir lá? E a mais segura.
Quem o obrigou? De amor só se venceo.
Que amava este Feitor? Sua feitura.
CCXLIII.
Oh Arma unicamente só triumphante,
Propugnaculo só de nossas vidas,
Por quem forão ganhadas as perdidas
Com que o Tartaro horrendo andava ovante!
Sigua-se esta bandeira militante
Por quem são taes victorias conseguidas,
Por quantas almas, della divertidas,
No Ponente errão cá, lá no Levante.
Oh Arvore sublime, e marchetada
De branco e carmesi, de ouro embutida,
Dos rubis mais preciosos esmaltada,
E de trophéos mais claros guarnecida!
Á vida a morte vimos em ti dada,
Para qu'em ti se désse á morte a vida.{123}
CCXLIV.
Aos homens hum só homem poz espanto,
E o poz a toda a humana natureza;
Que de homem teve o ser, de Anjo a pureza,
Porqu'antes que nascesse era ja Santo.
Propheta foi na Mãe; em fim, foi tanto,
Qu'entre os nascidos houve a mor alteza;
Que da Luz, sem a ver, vio a grandeza,
Tendo por trompa o Verbo Sacrosanto.
Aquella voz foi elle sonorosa,
No concavo dos Orbes resonante,
E que a Carne inculpavel baptizou;
Quem do mor Pae ouvio a voz amante;
Quem a subtil pergunta industriosa
Com sincera resposta socegou.
CCXLV.
Vós só podeis, sagrado Evangelista,
Angelico abrazado Seraphim,
E na sciencia mais alto Cherubim,
Do que he mais sabio Amor ser Coronista.
Divina e real Aguia, cuja vista
Vio o qu'he sem princípio, o qu'he sem fim,
De Jacob mais querido Benjamim,
Quem mais campêa de Joseph na lista.
Apostolo, e Propheta, e Patriarca,
Ao Principe dos Ceos o mais acceito,
Qu'em seu seio dormindo então mais via.
A quem o mesmo Deos por irmão marca;
Quem por filho da Mãe unica feito,
Em corpo e alma goza o claro dia.{124}
CCXLVI.
Como louvarei eu, Seraphim santo,
Tanta humildade, tanta penitencia,
Castidade, e pobreza, e paciencia,
Com este meu inculto e rudo canto?
Argumento que ás Musas põe espanto,
Que faz muda a grandiloqua eloquencia.
Oh imagem, qu'a Divina Providencia
De si viva em vós fez para bem tanto!
Fostes de Santos huma rara mina;
Almas de mil a mil ao ceo mandastes
Do mundo, que perdido reformastes.
E não roubaveis só com a doutrina
As vontades mortaes, mas a Divina;
Pois os seus rubis cinco lhe roubastes.
CCXLVII.
Ditosas almas, que ambas juntamente
Ao ceo de Venus e de Amor voastes,
Onde hum bem que tão breve cá lograstes,
Estais logrando agora eternamente;
Aquelle estado vosso tão contente,
Que só por durar pouco triste achastes,
Por outro mais contente ja o trocastes,
Onde sem sobresalto o bem se sente.
Triste de quem cá vive tão cercado,
Na amorosa fineza, de hum tormento
Que a gloria lhe perturba mais crescida!
Triste, pois me não val o soffrimento,
E Amor para mais damno me t~ee dado
Para tão duro mal tão larga vida!{125}
CCXLVIII.
Contente vivi ja, vendo-me isento
Deste mal de que a muitos queixar via:
Chamão-lhe amor; mas eu lhe chamaria
Discordia e semrazão, guerra e tormento.
Enganou-me co'o nome o pensamento:
(Quem com tal nome não se enganaria?)
Agora tal estou, que temo hum dia
Em que venha a faltar-me o soffrimento.
Com desesperação, e com desejo
Me paga o que por elle estou passando,
E inda está do meu mal mal satisfeito.
Pois sôbre tantos damnos inda vejo
Para dar-me outros mil hum olhar brando,
E para os não curar hum duro peito.
CCXLIX.
Deixa Apollo o correr tão apressado,
Não sigas essa Nympha tão ufano:
Não te leva o amor, leva-te o engano
Com sombras de algum bem a mal dobrado.
E quando seja amor, será forçado;
E se forçado for, será teu dano.
Hum parecer não queiras mais que humano
Em hum sylvestre adôrno ver tornado.
Não percas por hum vão contentamento
A vista que te faz viver contente;
Modera em teu favor o pensamento.
Porque menos mal he, tendo-a presente,
Soffrer sua crueza, e teu tormento,
Que sentir sua ausencia eternamente.{126}
CCL.
Nas Cidades, nos bosques, nas florestas,
Nos valles, e nos montes, teus louvores
Sempre te cantem musicos pastores
Nas manhãas frias, nas ardentes sestas.
E neste Templo donde manifestas
E repartes agora teus favores,
Com Psalmos, hymnos, e com varias flores
Sejão celebres sempre as tuas festas.
Estes te offreção pés, ess'outros mãos;
D'aquelles pendão sôbre os teus altares
Monstros do mar, de servidão prisões.
Que eu cuidados, enganos e affeições,
Muito maiores monstros, e milhares
Te deixo aqui de pensamentos vãos.
CCLI.
Vi queixosos de Amor mil namorados,
E nenhuns inda vi com seus louvores;
E aquelle que mais chora o mal de amores,
Vejo menos fugir de seus cuidados.
Se das dores de Amor sois mal tratados,
Porque tanto buscais de Amor as dores?
E se tambem as tendes por favores,
Porque dellas fallais como aggravados?
Não queirais alegria achar alg~ua
No Amor, porque he composto de tristeza,
Na fortuna que acheis mais agradavel.
Nella e nelle achei sempre a mesma l~ua,
Em quem nunca se vio outra firmeza,
Que não seja a de ser sempre mudavel.{127}
CCLII.
Se lagrimas choradas de verdade
O marmore abrandar podem mais duro,
Porque as minhas que nascem de amor puro
Hum coração não rendem a piedade?
Por vós perdi, Senhora, a liberdade,
E nem da propria vida estou seguro.
Rompei desse rigor o forte muro,
Não passe tanto avante a crueldade.
Ao prezar de desprezos dae ja fim:
Não vos chamem cruel; nome devido
A quem se ri de quem suspira e ama.
Abrandai esse peito endurecido,
Por o que toca a vós, ja não por mim,
Que eu aventuro a vida, e vós a fama.
CCLIII.
Ja me fundei em vãos contentamentos,
Quando delles vivi todo enganado
De hum phantastico bem, e de hum cuidado,
De que só cuidão cegos pensamentos.
Passava dias, horas e momentos,
Deste enleio de amores tão pagado,
Que tinha só por bem-aventurado
Quem só por elles mais bebia os ventos.
Mas agora que ja cahi na conta,
Desengana-me quanto me enganava;
Que tudo o tempo dá, tudo descobre.
O Amor mais caudaloso menos monta.
Qu'he de gostos mais rico, eu ignorava,
Aquelle que de amores he mais pobre.{128}
CCLIV.
Em huma lapa toda tenebrosa,
Adonde bate o mar com furia brava,
Sôbre h~ua mão o rosto, vi qu'estava
Huma Nympha gentil, mas cuidadosa.
Igualmente que linda, lastimosa,
Aljofar dos seus olhos distillava:
O mar os seus furores applacava
Com ver cousa tão triste e tão formosa.
Alguma vez na horrivel penedia
Os bellos olhos punha com brandura,
Bastante a desfazer sua dureza.
Com angelica voz assi dizia:
Ah! que falte mais vezes a ventura
Onde sobeja mais a natureza!