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Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II
I.
Em quanto quiz fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de hum suave pensamento
Me fez que seus effeitos escrevesse.
Porém temendo Amor que aviso désse
Minha escriptura a algum juizo isento,
Escureceo-me o engenho co'o tormento,
Para que seus enganos não dissesse.
Ó vós, que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! quando lerdes
N'hum breve livro casos tão diversos;
(Verdades puras são, e não defeitos)
Entendei que segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos.{2}
II.
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por huns termos em si tão concertados,
Que dous mil accidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que Amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia, e pena, ausente.
Tambem, Senhora, do desprêzo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-hei dizendo a menor parte.
Porém para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho, e arte.
III.
Com grandes esperanças ja cantei,
Com que os deoses no Olympo conquistára;
Depois vim a chorar porque cantára,
E agora chóro ja porque chorei.
Se cuido nas passadas que ja dei,
Custa-me esta lembrança só tão cara,
Que a dor de ver as mágoas que passára,
Tenho por a mór mágoa que passei.
Pois logo, se está claro que hum tormento
Dá causa que outro na alma se accrescente,
Ja nunca posso ter contentamento.
Mas esta phantasia se me mente?
Oh ocioso e cego pensamento!
Ainda eu imagino em ser contente?{3}
IV.
Despois que quiz Amor que eu só passasse
Quanto mal ja por muitos repartio,
Entregou-me á Fortuna, porque vio
Que não tinha mais mal que em mi mostrasse.
Ella, porque do Amor se avantajasse
Na pena a que elle só me reduzio,
O que para ninguem se consentio,
Para mim consentio que se inventasse.
Eis-me aqui vou com vário som gritando.
Copioso exemplario para a gente
Que destes dous tyrannos he sujeita;
Desvarios em versos concertando.
Triste quem seu descanso tanto estreita,
Que deste tão pequeno está contente!
V.
Em prisões baixas fui hum tempo atado;
Vergonhoso castigo de meus erros:
Inda agora arrojando levo os ferros,
Que a morte, a meu pezar, t~ee ja quebrado.
Sacrifiquei a vida a meu cuidado,
Que Amor não quer cordeiros nem bezerros;
Vi mágoas, vi miserias, vi desterros:
Parece-me que estava assi ordenado.
Contentei-me com pouco, conhecendo
Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que cousa era viver ledo.
Mas minha Estrella, que eu ja agora entendo,
A Morte cega, e o Caso duvidoso
Me fizerão de gostos haver medo.{4}
VI.
Illustre e digno ramo dos Menezes,
Aos quaes o providente e largo Ceo
(Que errar não sabe) em dote concedeo,
Rompessem os Maometicos arnezes;
Desprezando a Fortuna e seus revezes,
Ide para onde o Fado vos moveo;
Erguei flammas no mar alto Erythreo,
E sereis nova luz aos Portuguezes.
Opprimi com tão firme e forte peito
O Pirata insolente, que se espante
E trema Taprobana e Gedrosia.
Dai nova causa á côr do Arabo Estreito;
Assi que o Roxo mar, daqui em diante
O seja só com sangue de Turquia.
VII.
No tempo que de amor viver sohia,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes agora livre, agora atado,
Em várias flammas variamente ardia.
Que ardesse n'hum só fogo não queria
O Ceo porque tivesse exprimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.
E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co'o pêzo descansou
Por tornar a cansar com mais alento.
Louvado seja Amor em meu tormento,
Pois para passatempo seu tomou
Este meu tão cansado soffrimento!{5}
VIII.
Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faiscas me mostrou hum dia,
Donde hum puro crystal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.
A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que alli via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao soffrimento doce e leve.
Jura Amor, que brandura de vontade
Causa o primeiro effeito; o pensamento
Endoudece, se cuida que he verdade.
Olhai como Amor gera, em hum momento,
De lagrimas de honesta piedade
Lagrimas de immortal contentamento.
IX.
Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa juntamente chóro e rio;
O mundo todo abarco, e nada apérto.
He tudo quanto sinto hum desconcêrto:
Da alma hum fogo me sahe, da vista hum rio;
Agora espero, agora desconfio;
Agora desvarío, agora acérto.
Estando em terra, chego ao ceo voando;
N'hum'hora acho mil annos, e he de geito
Que em mil annos não posso achar hum'hora.
Se me pergunta alguem, porque assi ando,
Respondo, que não sei: porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.{6}
X.
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar:
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nella está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente póde descansar,
Pois com elle tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semidea,
Que como o accidente em seu sojeito,
Assi com a alma minha se confórma;
Está no pensamento como idea;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a materia simples busca a fórma.
XI.
Passo por meus trabalhos tão isento
De sentimento grande nem pequeno,
Que só por a vontade com que peno
Me fica Amor devendo mais tormento.
Mas vai-me Amor matando tanto a tento,
Temperando a triaga co'o veneno,
Que do penar a ordem desordeno,
Porque não mo consente o soffrimento.
Porém se esta fineza o Amor sente
E pagar-me meu mal com mal pretende,
Torna-me com prazer como ao sol neve.
Mas se me vê co'os males tão contente,
Faz-se avaro da pena, porque entende
Que quanto mais me paga, mais me deve.{7}
XII.
Em flor vos arrancou, de então crescida,
(Ah Senhor Dom Antonio!) a dura sorte
Donde fazendo andava o braço forte
A fama dos antiguos esquecida.
Huma só razão tenho conhecida
Com que tamanha mágoa se conforte:
Que se no Mundo havia honrada morte,
Não podieis vós ter mais larga vida.
Se meus humildes versos podem tanto
Que co'o desejo meu se iguale a arte,
Especial materia me sereis.
E celebrado em triste e longo canto,
Se morrestes nas mãos do fero Marte,
Na memoria das gentes vivireis.
XIII.
N'hum jardim adornado de verdura,
Que esmaltavão por cima várias flores,
Entrou hum dia a deosa dos amores,
Com a deosa da caça e da espessura.
Diana tomou logo h~ua rosa pura,
Venus hum roxo lyrio, dos melhores;
Mas excedião muito ás outras flores
As violas na graça e formosura.
Perguntão a Cupido, que alli estava,
Qual de aquellas tres flores tomaria
Por mais suave e pura, e mais formosa.
Sorrindo-se o menino lhes tornava:
Todas formosas são; mas eu queria
Viola antes que lyrio, nem que rosa.{8}
XIV.
Todo animal da calma repousava,
Só Liso o ardor della não sentia;
Que o repouso do fogo, em que elle ardia,
Consistia na Nympha que buscava.
Os montes parecia que abalava
O triste som das mágoas que dizia:
Mas nada o duro peito commovia,
Que na vontade de outro posto estava.
Cansado ja de andar por a espessura,
No tronco de huma faia, por lembrança,
Escreve estas palavras de tristeza:
Nunca ponha ninguem sua esperança
Em peito feminil, que de natura
Somente em ser mudavel t~ee firmeza.
XV.
Busque Amor novas artes, novo engenho
Para matar-me, e novas esquivanças;
Que não póde tirar-me as esperanças,
Pois mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vêde que perigosas seguranças!
Pois não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas com quanto não póde haver desgôsto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor hum mal, que mata e não se vê.
Que dias ha que na alma me t~ee posto
Hum não sei que, que nasce não sei onde;
Vem não sei como; e doe não sei porque.{9}
XVI.
Quem vê, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos bellos,
Se não perder a vista só com vellos,
Ja não paga o que deve a vosso gesto.
Este me parecia preço honesto;
Mas eu, por de vantagem merecellos,
Dei mais a vida e alma por querellos;
Donde ja me não fica mais de resto.
Assi que alma, que vida, que esperança,
E que quanto for meu, he tudo vosso:
Mas de tudo o interêsse eu só o levo.
Porque he tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho, e quanto posso,
Que quanto mais vos pago, mais vos devo.
XVII.
Quando da bella vista e doce riso
Tomando estão meus olhos mantimento,
Tão elevado sinto o pensamento,
Que me faz ver na terra o Paraiso.
Tanto do bem humano estou diviso,
Que qualquer outro bem julgo por vento:
Assi que em termo tal, segundo sento,
Pouco vem a fazer quem perde o siso.
Em louvar-vos, Senhora, não me fundo;
Porque quem vossas graças claro sente,
Sentirá que não póde conhecellas.
Pois de tanta estranheza sois ao mundo,
Que não he de estranhar, Dama excellente,
Que quem vos fez, fizesse ceo e estrellas.{10}
XVIII.
Doces lembranças da passada gloria,
Que me tirou fortuna roubadora,
Deixai-me descansar em paz hum'hora,
Que comigo ganhais pouca victoria.
Impressa tenho na alma larga historia
Deste passado bem, que nunca fôra;
Ou fôra, e não passára: mas ja agora
Em mi não póde haver mais que a memoria.
Vivo em lembranças, morro de esquecido
De quem sempre devêra ser lembrado,
Se lhe lembrára estado tão contente.
Oh quem tornar pudéra a ser nascido!
Soubera-me lograr do bem passado,
Se conhecer soubera o mal presente.
XIX.
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Ceo eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento Ethereo, onde subiste,
Memoria desta vida se consente,
Não te esqueças de aquelle amor ardente,
Que ja nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que póde merecer-te
Alg~ua cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remedio, de perder-te;
Roga a Deos que teus annos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.{11}
XX.
N'hum bosque, que das Nymphas se habitava,
Sibella, Nympha linda, andava hum dia;
E subida em huma árvore sombria,
As amarellas flores apanhava.
Cupido, que alli sempre costumava
A vir passar a sésta á sombra fria,
Em hum ramo arco e settas, que trazia,
Antes que adormecesse, pendurava.
A Nympha, como idoneo tempo víra
Para tamanha empresa, não dilata;
Mas com as armas foge ao moço esquivo.
As settas traz nos olhos, com que tira.
Ó Pastores! fugi, que a todos mata,
Senão a mim, que de matar-me vivo.
XXI.
Os Reinos e os Imperios poderosos,
Que em grandeza no mundo mais crescêrão;
Ou por valor de esfôrço florecêrão,
Ou por Barões nas letras espantosos.
Teve Grecia Themistocles famosos;
Os Scipiões a Roma engrandecêrão;
Doze Pares a França gloria derão;
Cides a Hespanha, e Laras bellicosos.
Ao nosso Portugal, que agora vemos
Tão differente de seu ser primeiro,
Os vossos derão honra e liberdade.
E em vós, grão successor e novo herdeiro
Do Braganção Estado, ha mil extremos
Iguaes ao sangue, e móres que a idade.{12}
XXII.
De vós me parto, ó vida, e em tal mudança
Sinto vivo da morte o sentimento.
Não sei para que he ter contentamento,
Se mais ha de perder quem mais alcança.
Mas dou-vos esta firme segurança:
Que postoque me mate o meu tormento,
Por as aguas do eterno esquecimento
Segura passará minha lembrança.
Antes sem vós meus olhos se entristeção,
Que com cousa outra alguma se contentem:
Antes os esqueçais, que vos esqueção.
Antes nesta lembrança se atormentem,
Que com esquecimento desmereção
A gloria que em soffrer tal pena sentem.
XXIII.
Chara minha inimiga, em cuja mão
Poz meus contentamentos a ventura,
Faltou-te a ti na terra sepultura,
Porque me falte a mi consolação.
Eternamente as águas lograrão
A tua peregrina formosura:
Mas em quanto me a mim a vida dura,
Sempre viva em minha alma te acharão.
E se meus rudos versos podem tanto,
Que possão prometter-te longa historia
De aquelle amor tão puro e verdadeiro;
Celebrada serás sempre em meu canto:
Porque em quanto no mundo houver memoria,
Será a minha escriptura o teu letreiro.{13}
XXIV.
Aquella triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Em quanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.
Ella só, quando amena e marchetada
Sahia, dando á terra claridade,
Vio apartar-se de huma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada;
Ella só vio as lagrimas em fio,
Que de huns e de outros olhos derivadas,
Juntando-se, formárão largo rio;
Ella ouvio as palavras magoadas,
Que puderão tornar o fogo frio,
E dar descanço ás almas condemnadas.
XXV.
Se quando vos perdi, minha esperança,
A memoria perdêra juntamente
Do doce bem passado e mal presente,
Pouco sentira a dor de tal mudança.
Mas Amor, em quem tinha confiança,
Me representa mui miudamente
Quantas vezes me vi ledo e contente,
Por me tirar a vida esta lembrança.
De cousas de que apenas hum signal
Havia, porque as dei ao esquecimento,
Me vejo com memorias perseguido.
Ah dura estrella minha! Ah grão tormento!
Que mal póde ser mor, que no meu mal
Ter lembranças do bem que he ja passado?{14}
XXVI.
Em formosa Lethea se confia,
Por onde vaidade tanta alcança,
Que, tornada em soberba a confiança,
Com os deoses celestes competia.
Porque não fosse avante esta ousadia,
(Que nascem muitos erros da tardança)
Em effeito puzerão a vingança
Que tamanha doudice merecia.
Mas Oleno, perdido por Lethea,
Não lhe soffrendo Amor que supportasse
Duro castigo em tanta formosura,
Quiz a pena tomar da culpa alhea:
Mas, porque a Morte Amor não apartasse,
Ambos tornados são em pedra dura.
XXVII.
Males, que contra mim vos conjurastes,
Quanto ha de durar tão duro intento?
Se dura, porque dure meu tormento,
Baste-vos quanto ja me atormentastes.
Mas se assi porfiais, porque cuidastes
Derribar o meu alto pensamento,
Mais póde a causa delle, em que o sustento,
Que vós, que della mesma o ser tomastes.
E pois vossa tenção com minha morte
He de acabar o mal destes amores,
Dai ja fim a tormento tão comprido.
Assi de ambos contente será a sorte;
Em vós por acabar-me, vencedores,
Em mim porque acabei de vós vencido.{15}
XXVIII.
Está-se a Primavera trasladando
Em vossa vista deleitosa e honesta;
Nas bellas faces, e na boca e testa,
Cecens, rosas, e cravos debuxando.
De sorte, vosso gesto matizando,
Natura quanto póde manifesta,
Que o monte, o campo, o rio, e a floresta,
Se estão de vós, Senhora, namorando.
Se agora não quereis que quem vos ama
Possa colher o fructo destas flores,
Perderão toda a graça os vossos olhos.
Porque pouco aproveita, linda Dama,
Que semeasse o Amor em vós amores,
Se vossa condição produze abrolhos.
XXIX.
Sete annos de pastor Jacob servia
Labão, pae de Raquel, serrana bella:
Mas não servia ao pae, servia a ella,
Que a ella só por premio pertendia.
Os dias na esperança de hum só dia
Passava, contentando-se com vella:
Porém o pae, usando de cautella,
Em lugar de Raquel lhe deo a Lia.
Vendo o triste Pastor que com enganos
Assi lhe era negada a sua Pastora,
Como se a não tivera merecida;
Começou a servir outros sete annos,
Dizendo: Mais servíra, senão fôra
Para tão longo amor tão curta a vida.{16}
XXX.
Está o lascivo e doce passarinho
Com o biquinho as pennas ordenando;
O verso sem medida, alegre e brando,
Despedindo no rustico raminho.
O cruel caçador, que do caminho
Se vem callado e manso desviando,
Com prompta vista a setta endireitando,
Lhe dá no Estygio Lago eterno ninho.
Desta arte o coração, que livre andava,
(Postoque ja de longe destinado)
Onde menos temia, foi ferido.
Porque o frecheiro cego me esperava,
Para que me tomasse descuidado,
Em vossos claros olhos escondido.
XXXI.
Pede o desejo, Dama, que vos veja:
Não entende o que pede; está enganado.
He este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o t~ee, não sabe o que deseja.
Não ha cousa, a qüal natural seja,
Que não queira perpétuo o seu estado.
Não quer logo o desejo o desejado,
Só porque nunca falte onde sobeja.
Mas este puro affecto em mim se dana:
Que, como a grave pedra t~ee por arte
O centro desejar da natureza;
Assi meu pensamento por a parte,
Que vai tomar de mi, terreste e humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.{17}
XXXII.
Porque quereis, Senhora, que offereça
A vida a tanto mal como padeço?
Se vos nasce do pouco que eu mereço,
Bem por nascer está quem vos mereça.
Entendei que por muito que vos peça,
Poderei merecer quanto vos peço;
Pois não consente amor que em baixo preço
Tão alto pensamento se conheça.
Assi que a paga igual de minhas dores
Com nada se restaura; mas devêsma
Por ser capaz de tantos desfavores.
E se o valor de vossos amadores
Houver de ser igual comvosco mesma,
Vós só comvosco mesma andai de amores.
XXXIII.
Se tanta pena tenho merecida
Em pago de soffrer tantas durezas;
Provai, Senhora, em mi vossas cruezas,
Que aqui tendes huma alma offerecida.
Nella experimentai, se sois servida,
Desprezos, desfavores e asperezas;
Que móres soffrimentos e firmezas
Sustentarei na guerra desta vida.
Mas contra vossos olhos quaes serão?
He preciso que tudo se lhes renda;
Mas porei por escudo o coração.
Porque em tão dura e aspera contenda
He bem que, pois não acho defensão,
Com meter-me nas lanças me defenda.{18}
XXXIV.
Quando o sol encoberto vai mostrando
Ao mundo a luz quieta e duvidosa,
Ao longo de huma praia deleitosa
Vou na minha inimiga imaginando.
Aqui a vi os cabellos concertando;
Alli co'a mão na face, tão formosa;
Aqui fallando alegre, alli cuidosa;
Agora estando quêda, agora andando.
Aqui esteve sentada, alli me vio,
Erguendo aquelles olhos, tão isentos;
Commovida aqui hum pouco, alli segura.
Aqui se entristeceo, alli se rio:
E, em fim, nestes cansados pensamentos
Passo esta vida vãa, que sempre dura.
XXXV.
Hum mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de que; hum riso brando e honesto,
Quasi forçado; hum doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso:
Hum despejo quieto e vergonhoso;
Hum repouso gravissimo e modesto;
Huma pura bondade, manifesto
Indicio da alma, limpo e gracioso:
Hum encolhido ousar; huma brandura;
Hum medo sem ter culpa; hum ar sereno;
Hum longo e obediente soffrimento:
Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o magico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.{19}
XXXVI.
Tomou-me vossa vista soberana
Adonde tinha as armas mais á mão,
Por mostrar a quem busca defensão
Contra esses bellos olhos, que se engana.
Por ficar da victoria mais ufana,
Deixou-me armar primeiro da razão.
Bem salvar-me cuidei, mas foi em vão,
Que contra o Ceo não val defensa humana.
Com tudo, se vos tinha promettido
O vosso alto destino esta victoria,
Ser-vos ella bem pouca está entendido.
Pois, indaque eu me achasse apercebido,
Não levais de vencer-me grande gloria,
Eu a levo maior de ser vencido.
XXXVII.
Não passes, caminhante. Quem me chama?
H~ua memoria nova e nunca ouvida,
De hum que trocou finita e humana vida
Por divina, infinita, e clara fama.
Quem he, que tão gentil louvor derrama?
Quem derramar seu sangue não duvida,
Por seguir a bandeira esclarecida
De hum capitão de Christo que mais ama.
Ditoso fim, ditoso sacrificio,
Que a Deos se fez e ao mundo juntamente!
Pregoando direi tão alta sorte.
Mais poderás contar a toda a gente
Que sempre deo na vida claro indicio
De vir a merecer tão santa morte.{20}
XXXVIII.
Formosos olhos, que na idade nossa
Mostrais do Ceo certissimos signais,
Se quereis conhecer quanto possais,
Olhai-me a mim, que sou feitura vossa.
Vereis que do viver me desapossa
Aquelle riso com que a vida dais:
Vereis como de Amor não quero mais,
Por mais que o tempo corra, o damno possa.
E se ver-vos nesta alma, emfim, quizerdes,
Como em hum claro espelho, alli vereis
Tambem a vossa angelica e serena.
Mas eu cuido que, só por me não verdes,
Ver-vos em mim, Senhora, não quereis:
Tanto gôsto levais de minha pena!
XXXIX.
O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil, que eu na alma vejo,
Se accendeo de outro fogo do desejo
Por alcançar a luz que vence o dia.
Como de dous ardores se encendia,
Da grande impaciencia fez despejo,
E remettendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.
Ditosa aquella flamma que se atreve
A apagar seus adores e tormentos
Na vista a quem o sol temores deve!
Namorão-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquella neve
Que queima corações e pensamentos.{21}
XL.
Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas águas de crystal,
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos:
Sylvestres montes, asperos penedos
Compostos de concêrto desigual;
Sabei que sem licença de meu mal
Ja não podeis fazer meus olhos ledos.
E pois ja me não vêdes como vistes,
Não me alegrem verduras deleitosas,
Nem águas que correndo alegres vem.
Semearei em vós lembranças tristes,
Regar-vos-hei com lagrimas saudosas,
E nascerão saudades de meu bem.
XLI.
Quantas vezes do fuso se esquecia
Daliana, banhando o lindo seio,
Outras tantas de hum aspero receio
Salteado Laurenio a côr perdia.
Ella, que a Sylvio mais que a si queria,
Para podê-lo ver não tinha meio.
Ora como curára o mal alheio
Quem o seu mal tão mal curar podia?
Elle, que vio tão clara esta verdade,
Com soluços dizia (que a espessura
Inclinavão, de mágoa, a piedade):
Como póde a desordem da natura
Fazer tão differentes na vontade
Aos que fez tão conformes na ventura?{22}
XLII.
Lindo e subtil trançado, que ficaste
Em penhor do remedio que mereço,
Se só comtigo, vendo-te, endoudeço,
Que fôra co'os cabellos que apertaste?
Aquellas tranças de ouro que ligaste,
Que os raios do sol t~ee em pouco preço,
Não sei se ou para engano do que peço,
Ou para me matar as desataste.
Lindo trançado, em minhas mãos te vejo,
E por satisfação de minhas dores,
Como quem não t~ee outra, hei de tomar-te.
E se não for contente o meu desejo,
Dir-lhe-hei que nesta regra dos amores
Por o todo tambem se toma a parte.
XLIII.
O cysne quando sente ser chegada
A hora que põe termo á sua vida,
Harmonia maior, com voz sentida,
Levanta por a praia inhabitada.
Deseja lograr vida prolongada,
E della está chorando a despedida:
Com grande saudade da partida,
Celebra o triste fim desta jornada.
Assi, Senhora minha, quando eu via
O triste fim que davão meus amores,
Estando posto ja no extremo fio;
Com mais suave accento de harmonia
Descantei por os vossos desfavores
La vuestra falsa fe, y el amor mio.{23}
XLIV.
Por os raros extremos que mostrou
Em sábia Pallas, Venus em formosa,
Diana em casta, Juno em animosa,
Africa, Europa e Asia as adorou.
Aquelle saber grande que juntou
Esprito e corpo em liga generosa,
Esta mundana máchina lustrosa,
De sós quatro elementos fabricou.
Mas fez maior milagre a natureza
Em vós, Senhoras, pondo em cada h~ua
O que por todas quatro repartio.
A vós seu resplandor deo sol e l~ua:
A vós com viva luz, graça e pureza,
Ar, Fogo, Terra e Agua vos servio.
XLV.
Tomava Daliana por vingança
Da culpa do pastor que tanto amava,
Casar com Gil vaqueiro; e em si vingava
O êrro alheio, e perfida esquivança.
A discrição segura, a confiança
Das rosas que o seu rosto debuxava,
O descontentamento lhas mudava;
Que tudo muda huma aspera mudança.
Gentil planta disposta em sêcca terra;
Lindo fructo de dura mão colhido;
Lembranças de outro amor, e fé perjura,
Tornárão verde prado em serra dura;
Interêsse enganoso, amor fingido,
Fizerão desditosa a formosura.{24}
XLVI.
Grão tempo ha ja que soube da Ventura
A vida que me tinha destinada;
Que a longa experiencia da passada
Me dava claro indicio da futura.
Amor fero e cruel, Fortuna escura,
Bem tendes vossa fôrça exprimentada:
Assolai, destrui, não fique nada;
Vingai-vos desta vida, que inda dura.
Soube Amor da Ventura, que a não tinha,
E porque mais sentisse a falta della,
De imagens impossiveis me mantinha.
Mas vós, Senhora, pois que minha estrella
Não foi melhor, vivei nesta alma minha;
Que não t~ee a Fortuna poder nella.
XLVII.
Se somente hora alguma em vós piedade
De tão longo tormento se sentíra,
Amor sofrêra mal que eu me partíra
De vossos olhos, minha Saudade.
Apartei-me de vós, mas a vontade,
Que por o natural na alma vos tira,
Me faz crer que esta ausencia he de mentira;
Porém venho a provar que he de verdade.
Ir-me-hei, Senhora; e neste apartamento
Lagrimas tristes tomarão vingança
Nos olhos de quem fostes mantimento.
Desta arte darei vida a meu tormento;
Que, em fim, cá me achará minha lembrança
Sepultado no vosso esquecimento.{25}
XLVIII.
Oh como se me alonga de anno em ano
A peregrinação cansada minha!
Como se encurta, e como ao fim caminha
Este meu breve e vão discurso humano!
Mingoando a idade vai, crescendo o dano;
Perdeo-se-me hum remedio, que inda tinha:
Se por experiencia se adivinha,
Qualquer grande esperança he grande engano.
Corro apoz este bem que não se alcança;
No meio do caminho me fallece;
Mil vezes caio, e perco a confiança.
Quando elle foge, eu tardo; e na tardança,
Se os olhos ergo a ver se inda apparece,
Da vista se me perde, e da esperança.
XLIX.
Ja he tempo, ja, que minha confiança
Se desça de huma falsa opinião:
Mas Amor não se rege por razão;
Não posso perder, logo, a esperança.
A vida si; que huma aspera mudança
Não deixa viver tanto hum coração,
E eu só na morte tenho a salvação:
Si: mas quem a deseja não a alcança.
Forçado he logo que eu espere e viva.
Ali dura lei de Amor, que não consente
Quietação n'hum'alma que he captiva!
Se hei de viver, em fim, forçadamente,
Para que quero a gloria fugitiva
De huma esperança vãa que me atormente?{26}
L.
Amor, com a esperança ja perdida
Teu soberano templo visitei:
Por signal do naufragio que passei,
Em lugar dos vestidos, puz a vida.
Que mais queres de mi, pois destruida
Me t~ees a gloria toda que alcancei?
Não cuides de render-me; que não sei
Tornar a entrar-me onde não ha sahida.
Vês aqui a vida, e a alma, e a esperança,
Doces despojos de meu bem passado,
Em quanto o quiz aquella que eu adoro.
Nellas podes tomar de mi vingança:
E se te queres inda mais vingado,
Contenta-te co'as lagrimas que chóro.
LI.
Apollo e as nove Musas, descantando
Com a dourada lyra, me influião
Na suave harmonia que fazião,
Quando tomei a penna, começando:
Ditoso seja o dia e hora, quando
Tão delicados olhos me ferião!
Ditosos os sentidos que sentião
Estar-se em seu desejo traspassando!
Assi cantava, quando Amor virou
A roda á esperança, que corria
Tão ligeira, que quasi era invisibil.
Converteo-se-me em noite o claro dia;
E se alguma esperança me ficou,
Será de maior mal, se for possibil.{27}
LII.
Lembranças saudosas, se cuidais
De me acabar a vida neste estado,
Não vivo com meu mal tão enganado,
Que não espere delle muito mais.
De longo tempo ja me costumais
A viver de algum bem desesperado:
Ja tenho co'a Fortuna concertado
De soffrer os tormentos que me dais.
Atada ao remo tenho a paciencia
Para quantos desgostos der a vida;
Cuide quanto quizer o pensamento.
Que pois não posso ter mais resistencia
Para tão dura quéda, de subida,
Aparar-lhe-hei debaixo o soffrimento.
LIII.
Apartava-se Nise de Montano,
Em cuja alma, partindo-se, ficava;
Que o pastor na memoria a debuxava,
Por poder sustentar-se deste engano.
Por huma praia do Indico Oceano
Sôbre o curvo cajado se encostava,
E os olhos por as águas alongava,
Que pouco se doião de seu dano.
Pois com tamanha mágoa e saudade,
(Dizia) quiz deixar-me a que eu adoro,
Por testimunhas tómo ceo e estrellas.
Mas se em vós, ondas, mora piedade,
Levai tambem as lagrimas que chóro,
Pois assi me levais a causa dellas.{28}
LIV.
Quando vejo que meu destino ordena
Que, por me exprimentar, de vós me aparte,
Deixando de meu bem tão grande parte,
Que a mesma culpa fica grave pena;
O duro desfavor, que me condena,
Quando por a memoria se reparte,
Endurece os sentidos de tal arte
Que a dor da ausencia fica mais pequena.
Mas como póde ser que na mudança
D'aquillo que mais quero, estê tão fóra
De me não apartar tambem da vida?
Eu refrearei tão aspera esquivança:
Porque mais sentirei partir, Senhora,
Sem sentir muito a pena da partida.
LV.
Despois de tantos dias mal gastados,
Despois de tantas noites mal dormidas,
Despois de tantas lagrimas vertidas,
Tantos suspiros vãos vãamente dados,
Como não sois vós ja desenganados,
Desejos, que de cousas esquecidas
Quereis remediar mortaes feridas.
Que Amor fez sem remedio, o Tempo, os Fados?
Se não tivereis ja longa exp'riencia
Das semrazões de Amor a quem servistes,
Fraqueza fôra em vós a resistencia.
Mas pois por vosso mal seus males vistes,
Que o tempo não curou, nem larga ausencia,
Qual bem delle esperais, desejos tristes?{29}
LVI.
Naiades, vós que os rios habitais,
Que os saudosos campos vão regando,
De meus olhos vereis estar manando
Outros que quasi aos vossos são iguais.
Dryades, que com setta sempre andais
Os fugitivos cervos derribando,
Outros olhos vereis, que triumphando
Derribão corações, que valem mais.
Deixai logo as aljavas e águas frias,
E vinde, Nymphas bellas, se quereis,
A ver como de huns olhos nascem mágoas.
Notareis como em vão passão os dias;
Mas em vão não vireis, porque achareis
Nos seus as settas, e nos meus as ágoas.
LVII.
Mudão-se os tempos, mudão-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo he composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Differentes em tudo da esperança:
Do mal ficão as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que ja coberto foi de neve fria,
E em mi converte em chôro o doce canto.
E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda ja como sohia.{30}
LVIII.
Se as penas com que Amor tão mal me trata
Permittirem que eu tanto viva dellas,
Que veja escuro o lume das estrellas,
Em cuja vista o meu se accende e mata;
E se o tempo, que tudo desbarata,
Seccar as frescas rosas, sem colhellas,
Deixando a linda côr das tranças bellas
Mudada de ouro fino em fina prata;
Tambem, Senhora, então vereis mudado
O pensamento e a aspereza vossa,
Quando não sirva ja sua mudança.
Ver-vos-heis suspirar por o passado,
Em tempo quando executar-se possa
No vosso arrepender minha vingança.
LIX.
Quem jaz no grão sepulchro, que descreve
Tão illustres signaes no forte escudo?
Ninguem; que nisso, em fim se torna tudo:
Mas foi quem tudo pôde e tudo teve.
Foi Rei? Fez tudo quanto a Rei se deve:
Poz na guerra e na paz devido estudo.
Mas quão pezado foi ao Mouro rudo,
Tanto lhe seja agora a terra leve.
Alexandro será? Ninguem se engane:
Mais que o adquirir, o sustentar estima.
Será Hadriano grão Senhor do mundo?
Mais observante foi da Lei de cima.
He Numa? Numa não, mas he Joane.
De Portugal Terceiro sem segundo.{31}
LX.
Quem póde livre ser, gentil Senhora,
Vendo-vos com juizo socegado,
Se o menino, que de olhos he privado,
Nas meninas dos vossos olhos mora?
Alli manda, alli reina, alli namora,
Alli vive das gentes venerado;
Que o vivo lume, e o rosto delicado,
Imagens são adonde Amor se adora.
Quem vê que em branca neve nascem rosas
Que crespos fios de ouro vão cercando,
Se por entre esta luz a vista passa,
Raios de ouro verá, que as duvidosas
Almas estão no peito traspassando,
Assi como hum crystal o sol traspassa.
LXI.
Como fizeste, ó Porcia, tal ferida?
Foi voluntaria, ou foi por innocencia?
He que Amor fazer só quiz exp'riencia
Se podia eu soffrer tirar-me a vida.
E com teu proprio sangue te convida
A que faças á morte resistencia?
He que costume faço da paciencia,
Porque o temor morrer me não impida.
Pois porque estás comendo fogo ardente,
Se a ferro te costumas? He que ordena
Amor que morra, e pene juntamente.
E t~ees a dor do ferro por pequena?
Si; que a dor costumada não se sente;
E não quero eu a morte sem a pena.{32}
LXII.
De tão divino accento em voz humana,
De elegancias que são tão peregrinas,
Sei bem que minhas obras não são dinas;
Que o rudo engenho meu me desengana.
Porém da vossa penna illustre mana
Licor que vence as águas Caballinas;
E comvosco do Tejo as flores finas
Farão inveja á cópia Mantuana.
E pois, a vós de si não sendo avaras,
As filhas de Mnemosine formosa
Partes dadas vos t~ee ao mundo claras;
A minha Musa, e a vossa tão famosa,
Ambas se podem nelle chamar raras,
A vossa de alta, a minha de invejosa.
LXIII.
Debaixo desta pedra está metido,
Das sanguinosas armas descansado,
O Capitão illustre e assinalado
Dom Fernando de Castro esclarecido.
Este por todo o Oriente tão temido,
Este da propria inveja tão cantado,
Este, em fim, raio de Mavorte irado,
Aqui está agora em terra convertido.
Alegra-te, ó guerreira Lusitania,
Por est'outro Viriato que criaste,
E chora a perda sua eternamente.
Exemplo toma nisto de Dardania;
Que se a Roma com elle anniquilaste,
Nem por isso Carthago está contente.{33}
LXIV.
Que vençais no Oriente tantos Reis,
Que de novo nos deis da India o Estado,
Que escureçais a fama que hão ganhado
Aquelles, que a ganhárão de infieis;
Que vencidas tenhais da morte as leis,
E que vencesseis tudo, em fim, armado,
Mais he vencer na patria, desarmado,
Os monstros e as Chimeras que venceis.
Sôbre vencerdes, pois, tanto inimigo,
E por armas fazer que sem segundo
No mundo o vosso nome ouvido seja;
O que vos dá mais fama inda no mundo,
He vencerdes, Senhor, no Reino amigo,
Tantas ingratidões, tão grande inveja.
LXV.
Vossos olhos, Senhora, que competem
Com o sol em belleza e claridade,
Enchem os meus de tal suavidade,
Que em lagrimas de vê-los se derretem.
Meus sentidos prostrados se submetem
Assi cegos a tanta magestade;
E da triste prisão, da escuridade,
Cheios de medo, por fugir, remetem.
Porém se então me vêdes por acêrto,
Esse aspero desprêzo com que olhais
Me torna a animar a alma enfraquecida.
Oh gentil cura! Oh estranho desconcêrto!
Que dareis co'hum favor que vós não dais,
Quando com hum desprêzo me dais vida?{34}
LXVI.
Formosura do Ceo a nós descida,
Que nenhum coração deixas isento,
Satisfazendo a todo pensamento,
Sem que sejas de algum bem entendida;
Qual lingoa póde haver tão atrevida,
Que tenha de louvar-te atrevimento,
Pois a parte melhor do entendimento,
No menos que em ti ha se vê perdida?
Se em teu valor contemplo a menor parte,
Vendo que abre na terra hum paraiso,
Logo o engenho me falta, o esprito míngoa.
Mas o que mais me impede inda louvar-te,
He que quando te vejo perco a lingoa,
E quando não te vejo perco o siso.
LXVII.
Pois meus olhos não cansão de chorar
Tristezas não cansadas de cansar-me;
Pois não se abranda o fogo em que abrazar-me
Pôde quem eu jamais pude abrandar;
Não canse o cego Amor de me guiar
Onde nunca de lá possa tornar-me;
Nem deixe o mundo todo de escutar-me,
Em quanto a fraca voz me não deixar.
E se em montes, se em prados, e se em valles
Piedade mora alguma, algum amor
Em feras, plantas, aves, pedras, agoas;
Oução a longa historia de meus males,
E curem sua dor com minha dor;
Que grandes mágoas podem curar mágoas.{35}
LXVIII.
Dai-me h~ua lei, Senhora, de querer-vos,
Porque a guarde sobpena de enojar-vos;
Pois a fé que me obriga a tanto amar-vos
Fara que fique em lei de obedecer-vos.
Tudo me defendei, senão só ver-vos
E dentro na minha alma contemplar-vos;
Que se assi não chegar a contentar-vos,
Ao menos nunca chegue a aborrecer-vos.
E se essa condição cruel e esquiva
Que me deis lei de vida não consente,
Dai-ma, Senhora, ja, seja de morte.
Se nem essa me dais, he bem que viva,
Sem saber como vivo, tristemente;
Mas contente estarei com minha sorte.
LXIX.
Ferido sem ter cura perecia
O forte e duro Télepho temido
Por aquelle que na agua foi metido,
E a quem ferro nenhum cortar podia.
Quando a Apollineo Oraculo pedia
Conselho para ser restituido,
Respondeo-lhe, tornasse a ser ferido
Por quem o ja ferira, e sararia.
Assi, Senhora, quer minha ventura;
Que ferido de ver-vos claramente,
Com tornar-vos a ver Amor me cura.
Mas he tão doce vossa formosura,
Que fico como o hydropico doente,
Que bebendo lhe cresce mór seccura.{36}
LXX.
Na metade do ceo subido ardia
O claro, almo Pastor, quando deixavão
O verde pasto as cabras, e buscavão
A frescura suave da agua fria.
Com a folha das árvores, sombria,
Do raio ardente as aves se amparavão:
O módulo cantar, de que cessavão,
Só nas roucas cigarras se sentia.
Quando Liso pastor n'hum campo verde
Natercia, crua Nympha, só buscava
Com mil suspiros tristes que derrama.
Porque te vás de quem por ti se perde,
Para quem pouco te ama? (suspirava)
E o eco lhe responde: Pouco te ama.
LXXI.
Ja a roxa e branca Aurora destoucava
Os seus cabellos de ouro delicados,
E das flores os campos esmaltados
Com crystallino orvalho borrifava;
Quando o formoso gado se espalhava
De Sylvio e de Laurente por os prados;
Pastores ambos, e ambos apartados,
De quem o mesmo amor não se apartava.
Com verdadeiras lagrimas Laurente,
Não sei, (dizia) ó Nympha delicada,
Porque não morre ja quem vive ausente;
Pois a vida sem ti não presta nada.
Responde Sylvio: Amor não o consente:
Que offende as esperanças da tornada.{37}
LXXII.
Quando de minhas mágoas a comprida
Maginação os olhos me adormece,
Em sonhos aquella alma me apparece,
Que para mi foi sonho nesta vida.
Lá n'huma soidade, onde estendida
A vista por o campo desfallece,
Corro apoz ella; e ella então parece
Que mais de mi se alonga, compellida.
Brado: Não me fujais, sombra benina.
Ella (os olhos em mi co'hum brando pejo,
Como quem diz, que ja não póde ser)
Torna a fugir-me: torno a bradar: Dina...
E antes que diga mene, acórdo, e vejo
Que nem hum breve engano posso ter.
LXXIII.
Suspiros inflammados que cantais
A tristeza com que eu vivi tão ledo,
Eu morro e não vos levo, porque hei medo
Que ao passar do Letheio vos percais.
Escriptos para sempre ja ficais
Onde vos mostrarão todos co'o dedo,
Como exemplo de males; e eu concedo
Que para aviso de outros estejais.
Em quem, pois, virdes largas esperanças
De Amor e da Fortuna, (cujos danos
Alguns terão por bem-aventuranças)
Dizei-lhe, que os servistes muitos anos,
E que em Fortuna tudo são mudanças,
E que em Amor não ha senão enganos.{38}
LXXIV.
Aquella fera humana que enriquece
A sua presunçosa tyrannia
Destas minhas entranhas, onde cria
Amor hum mal, que falta quando crece;
Se nella o Ceo mostrou (como parece)
Quanto mostrar ao mundo pretendia,
Porque de minha vida se injuria?
Porque de minha morte se ennobrece?
Ora, em fim, sublimai vossa victoria,
Senhora, com vencer-me e captivar-me:
Fazei della no mundo larga historia.
Pois, por mais que vos veja atormentar-me,
Ja me fico logrando desta gloria
De ver que tendes tanta de matar-me.
LXXV.
Ditoso seja aquelle que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por ellas não perde as esperanças
De poder n'algum tempo ser contente.
Ditoso seja quem estando ausente
Não sente mais que a pena das lembranças;
Porqu'inda que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.
Ditoso seja, em fim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem hum coração atormentado.
Mas triste quem se sente magoado
De erros em que não póde haver perdão
Sem ficar na alma a mágoa do peccado.{39}
LXXVI.
Quem fosse acompanhando juntamente
Por esses verdes campos a avezinha,
Que despois de perder hum bem que tinha,
Não sabe mais que cousa he ser contente!
E quem fosse apartando-se da gente.
Ella por companheira e por vizinha,
Me ajudasse a chorar a pena minha,
E eu a ella tambem a que ella sente!
Ditosa ave! que ao menos, se a natura
A seu primeiro bem não dá segundo,
Dá-lhe o ser triste a seu contentamento.
Mas triste quem de longe quiz ventura
Que para respirar lhe falte o vento,
E para tudo, em fim, lhe falte o mundo!
LXXVII.
O culto divinal se celebrava
No templo donde toda criatura
Louva o Feitor divino, que a feitura
Com seu sagrado sangue restaurava.
Amor alli, que o tempo me aguardava
Onde a vontade tinha mais segura,
Com huma rara e angelica figura
A vista da razão me salteava.
Eu crendo que o lugar me defendia
De seu livre costume, não sabendo
Que nenhum confiado lhe fugia;
Deixei-me captivar: mas hoje vendo,
Senhora, que por vosso me queria,
Do tempo que fui livre me arrependo.{40}
LXXVIII.
Leda serenidade deleitosa,
Que representa em terra hum paraiso;
Entre rubis e perlas doce riso,
Debaixo de ouro e neve côr de rosa;
Presença moderada e graciosa,
Onde ensinando estão despejo e siso
Que se póde por arte e por aviso,
Como por natureza, ser formosa;
Falla de que ou ja vida, ou morte pende.
Rara e suave, em fim, Senhora, vossa,
Repouso na alegria comedido;
Estas as armas são com que me rende
E me captiva Amor; mas não que possa
Despojar-me da gloria de rendido.
LXXIX.
Bem sei, Amor, que he certo o que receio;
Mas tu, porque com isso mais te apuras,
De manhoso mo negas, e mo juras
Nesse teu arco de ouro; e eu te creio.
A mão tenho metida no meu seio,
E não vejo os meus damnos ás escuras:
Porém porfias tanto e me asseguras,
Que me digo que minto, e que me enleio.
Nem somente consinto neste engano,
Mas inda to agradeço, e a mi me nego
Tudo o que vejo e sinto de meu dano.
Oh poderoso mal a que me entrego!
Que no meio do justo desengano
Me possa inda cegar hum moço cego?{41}
LXXX.
Como quando do mar tempestuoso
O marinheiro todo trabalhado,
De hum naufragio cruel sahindo a nado,
Só de ouvir fallar nelle está medroso:
Firme jura que o vê-lo bonançoso
Do seu lar o não tire socegado;
Mas esquecido ja do horror passado,
Delle a fiar se torna cobiçoso:
Assi, Senhora, eu que da tormenta
De vossa vista fujo, por salvar-me,
Jurando de não mais em outra ver-me;
Com a alma que de vós nunca se ausenta,
Me tórno, por cobiça de ganhar-me,
Onde estive tão perto de perder-me.
LXXXI.
Amor he hum fogo que arde sem se ver;
He ferida que doe e não se sente;
He hum contentamento descontente;
He dor que desatina sem doer;
He hum não querer mais que bem querer;
He solitario andar por entre a gente;
He hum não contentar-se de contente;
He cuidar que se ganha em se perder;
He hum estar-se preso por vontade;
He servir a quem vence o vencedor;
He hum ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar póde o seu favor
Nos mortaes corações conformidade,
Sendo a si tão contrário o mesmo Amor?{42}
LXXXII.
Se pena por amar-vos se merece,
Quem della estará livre? quem isento?
E que alma, que razão, que entendimento
No instante em que vos vê não obedece?
Qual mor gloria na vida ja se offrece,
Que a de occupar-se em vós o pensamento?
Não só todo rigor, todo tormento
Com ver-vos não magôa, mas se esquece.
Porém se heis de matar a quem amando,
Ser vosso de amor tanto só pretende,
O mundo matareis, que todo he vosso.
Em mi podeis, Senhora, ir começando,
Pois bem claro se mostra e bem se entende
Amar-vos quanto devo e quanto posso.
LXXXIII.
Que levas, cruel Morte? Hum claro dia.
A que horas o tomaste? Amanhecendo.
E entendes o que levas? Não o entendo.
Pois quem to faz levar? Quem o entendia.
Seu corpo quem o goza? A terra fria.
Como ficou sua luz? Anoitecendo.
Lusitania que diz? Fica dizendo...
Que diz? Não mereci a grã Maria.
Mataste a quem a vio? Ja morto estava.
Que discorre o Amor? Fallar não ousa.
E quem o faz callar? Minha vontade.
Na Corte que ficou? Saudade brava.
Que fica lá que ver? Nenhuma cousa.
Que gloria lhe faltou? Esta beldade.{43}
LXXXIV.
Ondados fios de ouro reluzente,
Que agora da mão bella recolhidos,
Agora sôbre as rosas esparzidos
Fazeis que a sua graça se accrescente;
Olhos, que vos moveis tão docemente,
Em mil divinos raios incendidos,
Se de cá me levais a alma e sentidos,
Que fôra, se eu de vós não fôra ausente?
Honesto riso, que entre a mór fineza
De perlas e coraes nasce e apparece;
Oh quem seus doces ecos ja lhe ouvisse!
Se imaginando só tanta belleza,
De si com nova gloria a alma se esquece,
Que será quando a vir? Ah quem a visse!
LXXXV.
Foi ja n'hum tempo doce cousa amar,
Em quanto me enganou huma esperança:
O coração com esta confiança
Todo se desfazia em desejar.
Oh vão, caduco e debil esperar!
Como, em fim, desengana huma mudança!
Que quanto he mor a bem-aventurança,
Tanto menos se crê que ha de durar.
Quem ja se vio com gostos prosperado,
Vendo-se brevemente em pena tanta,
Razão t~ee de viver bem magoado.
Mas quem ja t~ee o mundo exprimentado,
Não o magôa a pena, nem o espanta;
Que mal se estranhára o costumado.{44}
LXXXVI.
Dos antigos Illustres, que deixárão
Hum nome digno de immortal memoria,
Ficou por luz do tempo a larga historia
Dos feitos em que mais se avantajárão.
Se com suas acções se cotejárão
Mil vossas, cada huma tão notoria,
Vencêra a menor dellas a mor gloria
Que elles em tantos annos alcançárão.
A gloria sua foi: ninguem lha tome:
Seguindo cada qual varios caminhos
Estatuas mereceo no heroico Templo.
Vós honra Portugueza e dos Coutinhos,
Clarissimo Dom João, com melhor nome
A vós encheis de gloria, a nós de exemplo.
LXXXVII.
Conversação doméstica affeiçoa,
Ora em fórma de limpa e sãa vontade,
Ora de huma amorosa piedade,
Sem olhar qualidade de pessoa.
Se despois, por ventura, vos magôa
Com desamor e pouca lealdade,
Logo vos faz mentira da verdade
O brando Amor, que tudo, em fim, perdoa,
Não são isto que fallo conjecturas
Que o pensamento julga na apparencia,
Por fazer delicadas escripturas.
Metida tenho a mão na consciencia,
E não fallo senão verdades puras
Que me ensinou a viva experiencia.{45}
LXXXVIII.
Esfôrço grande, igual ao pensamento,
Pensamentos em obras divulgados,
E não em peito timido encerrados,
E desfeitos despois em chuva e vento;
Ánimo da cobiça baixa isento,
Digno por isto só de altos estados,
Fero açoute dos nunca bem domados
Povos do Malabar sanguinolento;
Gentileza de membros corporaes
Ornados de pudica continencia,
Obra por certo da celeste altura:
Estas virtudes raras e outras mais,
Dignas todas da Homerica eloquencia,
Jazem debaixo desta sepultura.
LXXXIX.
No mundo quiz o Tempo que se achasse
O bem que por acêrto, ou sorte vinha;
E por exprimentar que dita tinha,
Quiz que a Fortuna em mi se exprimentasse.
Mas porque o meu destino me mostrasse
Que nem ter esperanças me convinha,
Nunca nesta tão longa vida minha
Cousa me deixou ver que desejasse.
Mudando andei costume, terra, estado,
Por ver se se mudava a sorte dura;
A vida puz nas mãos de hum leve lenho.
Mas, segundo o que o Ceo me t~ee mostrado,
Ja sei que deste meu buscar ventura
Achado tenho ja que não a tenho.{46}
XC.
A perfeição, a graça, o doce geito,
A Primavera cheia de frescura,
Que sempre em vós florece; a que a ventura,
E a razão entregárão este peito;
Aquelle crystallino e puro aspeito,
Que em si comprehende toda a formosura;
O resplandor dos olhos e a brandura,
Donde Amor a ninguem quiz ter respeito;
S'isto que em vós se vê, ver desejais,
Como digno de ver-se claramente,
Por muito que de Amor vos isentais;
Traduzido o vereis tão fielmente
No meio deste espirito onde estais,
Que vendo-vos sintais o que elle sente.
XCI.
Vós, que de olhos suaves e serenos,
Com justa causa a vida captivais,
E que os outros cuidados condemnais
Por indevidos, baixos e pequenos;
Se de Amor os domesticos venenos
Nunca provastes, quero que sintais
Que he tanto mais o amor despois que amais,
Quanto são mais as causas de ser menos.
E não presuma alguem que algum defeito,
Quando na cousa amada se apresenta,
Possa diminuir o amor perfeito:
Antes o dobra mais; e se atormenta,
Pouco a pouco desculpa o brando peito;
Que Amor com seus contrarios se accrescenta.{47}
XCII.
Que poderei do mundo ja querer,
Pois no mesmo em que puz tamanho amor,
Não vi senão desgôsto e desfavor,
E morte, em fim; que mais não póde ser?
Pois me não farta a vida de viver,
Pois ja sei que não mata grande dor,
Se houver cousa que mágoa dê maior,
Eu a verei; que tudo posso ver.
A Morte, a meu pezar, me assegurou
De quanto mal me vinha: ja perdi
O que a perder o medo me ensinou.
Na vida desamor somente vi,
Na morte a grande dor que me ficou:
Parece que para isto só nasci.
XCIII.
Pensamentos, que agora novamente
Cuidados vãos em mi resuscitais,
Dizei-me: E ainda não vos contentais
De ter a quem vos t~ee tão descontente?
Que phantasia he esta, que presente
Cad'hora ante os meus olhos me mostrais?
Com huns sonhos tão vãos inda tentais
Quem nem por sonhos póde ser contente?
Vejo-vos, pensamentos, alterados,
E não quereis, de esquivos, declarar-me
Que he isto que vos traz tão enleados?
Não mo negueis, se andais para negar-me;
Porque se contra mi 'stais levantados,
Eu vos ajudarei mesmo a matar-me.{48}
XCIV.
Se tomo a minha pena em penitencia
Do error em que cahio o pensamento,
Não abrando, mas dóbro meu tormento,
Que a tanto, e mais, obriga a paciencia.
E se huma côr de morto na apparencia,
Hum espalhar suspiros vãos ao vento
Não faz em vós, Senhora, movimento,
Fique o meu mal em vossa consciencia.
Mas se de qualquer aspera mudança
Toda vontade isenta Amor castiga,
(Como eu vejo no mal que me condena)
E se em vós não se entende haver vingança,
Será forçado (pois Amor me obriga)
Que eu só da culpa vossa pague a pena.
XCV.
Aquella que, de pura castidade,
De si mesma tomou cruel vingança
Por huma breve e subita mudança
Contrária á sua honra e qualidade;
Venceo á formosura a honestidade,
Venceo no fim da vida a esperança,
Porque ficasse viva tal lembrança,
Tal amor, tanta fé, tanta verdade.
De si, da gente e do mundo esquecida,
Ferio com duro ferro o brando peito,
Banhando em sangue a fôrça do tyrano.
Oh ousadia estranha! estranho feito!
Que dando breve morte ao corpo humano,
Tenha sua memoria larga vida!{49}
XCVI.
Os vestidos Elisa revolvia,
Que Eneas lhe deixára por memoria;
Doces despojos da passada gloria;
Doces quando seu fado o consentia.
Entre elles a formosa espada via,
Que instrumento, em fim, foi da triste historia;
E como quem de si tinha a victoria,
Fallando só com ella, assi dizia:
Formosa e nova espada, se ficaste
Só porque executasses os enganos
De quem te quiz deixar, em minha vida;
Sabe que tu comigo te enganaste;
Que para me tirar de tantos danos
Sobeja-me a tristeza da partida.
XCVII.
Oh quão caro me custa o entender-te,
Molesto Amor que, só por alcançar-te,
De dor em dor me tens trazido a parte
Donde em ti odio e íra se converte!
Cuidei que para em tudo conhecer-te
Me não faltava experiencia e arte;
Mas na alma vejo agora accrescentar-te
Aquillo que era causa de perder-te.
Estavas tão secreto no meu peito,
Que eu mesmo, que te tinha, não sabia
Que me senhoreavas deste geito.
Descubriste-te agora; e foi por via
Que teu descobrimento e meu defeito,
Hum me envergonha e outro me injuria.{50}
XCVIII.
Se despois de esperança tão perdida,
Amor por causa alguma consentisse
Que inda algum'hora breve alegre visse
De quantas tristes vio tão longa vida;
Hum'alma ja tão fraca e tão cahida
(Quando a sorte mais alto me subisse)
Não tenho para mi que consentisse
Alegria tão tarde consentida.
Nem tamsomente o Amor me não mostrou
Hum'hora em que vivesse alegremente,
De quantas nesta vida me negou;
Mas inda tanta pena me consente,
Que co'o contentamento me tirou
O gôsto de algum'hora ser contente.
XCIX.
O raio crystallino se estendia
Por o mundo da Aurora marchetada,
Quando Nise, pastora delicada,
Donde a vida deixava se partia.
Dos olhos, com que o sol escurecia,
Levando a luz em lagrimas banhada,
De si, do fado, e tempo magoada,
Pondo os olhos no Ceo, assi dizia:
Nasce, sereno sol, puro e luzente;
Resplandece, purpurea e branca aurora,
Qualquer alma alegrando descontente;
Que a minha, sabe tu que desde agora
Jamais na vida a podes ver contente,
Nem tão triste nenhuma outra pastora.{51}
C.
No mundo poucos annos e cansados
Vivi, cheios de vil miseria e dura:
Foi-me tão cedo a luz do dia escura,
Que não vi cinco lustros acabados.
Corri terras e mares apartados,
Buscando á vida algum remedio ou cura:
Mas aquillo que, em fim, não dá ventura
Não o dão os trabalhos arriscados.
Criou-me Portugal na verde e chara
Patria minha Alemquer; mas ar corruto,
Que neste meu terreno vaso tinha,
Me fez manjar de peixes em ti, bruto
Mar, que bates a Abássia fera e avara,
Tão longe da ditosa patria minha.
CI.
Vós, que escuitais em Rimas derramado
Dos suspiros o som que me alentava
Na juvenil idade, quando andava
Em outro em parte do que sou mudado;
Sabei que busca só do ja cantado
No tempo em que ou temia ou esperava,
De quem o mal provou, que eu tanto amava,
Piedade, e não perdão, o meu cuidado.
Pois vejo que tamanho sentimento
Só me rendeo ser fábula da gente,
(Do que comigo mesmo me envergonho)
Sirva de exemplo claro meu tormento,
Com que todos conheção claramente
Que quanto ao mundo apraz he breve sonho.{52}
CII.
De amor escrevo, de amor trato e vivo;
De amor me nasce amar sem ser amado;
De tudo se descuida o meu cuidado,
Quanto não seja ser de amor captivo:
De amor que a lugar alto voe altivo,
E funde a gloria sua em ser ousado;
Que se veja melhor purificado
No immenso resplandor de hum raio esquivo.
Mas ai que tanto amor só pena alcança!
Mais constante ella, e elle mais constante,
De seu triumpho cada qual só trata.
Nada, em fim, me aproveita; que a esperança,
Se anima alguma vez a hum triste amante,
Ao perto vivifica, ao longe mata.
CIII.
Se da célebre Laura a formosura
Hum numeroso cysne ufano escreve,
Huma angelica penna se te deve,
Pois o Ceo em formar-te mais se apura.
E se voz menos alta te procura
Celebrar, (oh Natercia!) em vão se atreve:
De ver-te ja a ventura Liso teve,
Mas de cantar-te falta-lhe a ventura.
No ceo nasceste, certo, e não na terra:
Para gloria do mundo cá desceste:
Quem mais isto negar, muito mais erra.
E eu imagino que de lá vieste
Para emendar os vicios que elle encerra,
Co'os divinos poderes que trouxeste.{53}
CIV.
Esses cabellos louros e escolhidos,
Que o ser ao aureo sol estão tirando;
Esse ar immenso, adonde naufragando
Estão continuamente os meus sentidos;
Esses furtados olhos tão fingidos
Que minha vida e morte estão causando;
Essa divina graça, que em fallando
Finge os meus pensamentos não ser cridos;
Esse compasso certo, essa medida
Que faz dobrar no corpo a gentileza;
A divindade em terra, tão subida;
Mostrem ja piedade, e não crueza,
Que são laços que Amor tece na vida,
Sendo em mi sofrimento, em vós dureza.
CV.
Quem pudéra julgar de vós, Senhora,
Que huma tal fé pudesse assi perder-vos?
Se por amar-vos chego a aborrecer-vos,
Deixar não posso o amar-vos algum'hora.
Deixais a quem vos ama, ou vos adora,
Por ver a quem quiçá não sabe ver-vos?
Mas eu sou quem não soube merecer-vos,
E esta minha ignorancia entendo agora.
Nunca soube entender vossa vontade,
Nem a minha mostrar-vos verdadeira,
Indaque clara estava esta verdade.
Esta, em quanto eu viver, vereis inteira;
E se em vão meu querer vos persuade,
Mais vosso não querer faz que vos queira.{54}
CVI.
Quem, Senhora, presume de louvar-vos
Com discurso que baixe de divino,
De tanto maior pena será dino,
Quanto vós sois maior ao contemplar-vos.
Não aspire algum canto a celebrar-vos,
Por mais que seja raro, ou peregrino;
Pois de vossa belleza eu imagino
Que só comvosco o Ceo quiz comparar-vos.
Ditosa esta alma vossa, a que quizestes
Pôr em posse de prenda tão subida,
Qual esta que benigna, em fim, me déstes.
Sempre será anteposta á mesma vida:
Esta estimar em menos me fizestes,
Se antes que ess'outra a quero ver perdida.
CVII.
Moradoras gentis e delicadas
Do claro e aureo Tejo, que metidas
Estais em suas grutas escondidas,
E com doce repouso socegadas;
Agora esteis de amores inflammadas,
Nos crystallinos paços entretidas;
Agora no exercicio embevecidas
Das télas de ouro puro matizadas;
Movei dos lindos rostos a luz pura
De vossos olhos bellos, consentindo
Que lagrimas derramem de tristura.
E assi com dor mais propria ireis ouvindo
As queixas que derramo da Ventura,
Que com penas de Amor me vai seguindo.{55}
CVIII.
Brandas águas do Tejo que, passando
Por estes verdes campos que regais,
Plantas, hervas, e flores, e animais,
Pastores, Nymphas, ides alegrando;
Não sei, (ah doces águas!) não sei quando
Vos tornarei a ver; que mágoas tais,
Vendo como vos deixo, me causais,
Que de tornar ja vou desconfiando.
Ordenou o destino, desejoso
De converter meus gostos em pezares,
Partida que me vai custando tanto.
Saudoso de vós, delle queixoso,
Encherei de suspiros outros ares,
Turbarei outras águas com meu pranto.
CIX.
Novos casos de Amor, novos enganos,
Envoltos em lisonjas conhecidas;
Do bem promessas falsas e escondidas,
Onde do mal se cumprem grandes danos;
Como não tomais ja por desenganos
Tantos ais, tantas lagrimas perdidas,
Pois que a vida não basta, nem mil vidas,
A tantos dias tristes, tantos anos?
Hum novo coração mister havia,
Com outros olhos menos aggravados,
Para tornar a crer o que eu vos cria.
Andais comigo, enganos, enganados;
E se o quizerdes ver, cuidai hum dia
O que se diz dos bem acutilados.{56}
CX.
Onde porei meus olhos que não veja
A causa de que nasce o meu tormento?
A qual parte me irei co'o pensamento,
Que para descansar parte me seja?
Ja sei como se engana quem deseja
Em vão amor fiel contentamento;
E que nos gostos seus, que são de vento,
Sempre falta seu bem, seu mal sobeja.
Mas inda, sôbre o claro desengano,
Assi me traz esta alma sobjugada,
Que delle está pendendo o meu desejo.
E vou de dia em dia, de anno em ano,
Apoz hum não sei que, apoz hum nada,
Que quanto mais me chego, menos vejo.
CXI.
Ja do Mondego as águas apparecem
A meus olhos, não meus, antes alheios,
Que de outras differentes vindo cheios,
Na sua branda vista inda mais crecem.
Parece que tambem forçadas decem,
Segundo se detem em seus rodeios.
Triste! por quantos modos, quantos meios,
As minhas saudades me entristecem!
Vida de tantos males salteada,
Amor a põe em termos, que duvida
De conseguir o fim desta jornada.
Antes se dá de todo por perdida,
Vendo que não vai da alma acompanhada,
Que se deixou ficar onde t~ee vida.{57}
CXII.
Que doudo pensamento he o que sigo?
Apos que vão cuidado vou correndo?
Sem ventura de mi! que não me entendo;
Nem o que callo sei, nem o que digo.
Pelejo com quem trata paz comigo;
De quem guerra me faz não me defendo.
De falsas esperanças que pertendo?
Quem do meu proprio mal me faz amigo?
Porque, se nasci livre, me captivo?
E pois o quero ser, porque o não quero?
Como me engano mais com desenganos?
Se ja desesperei, que mais espero?
E se inda espero mais, porque não vivo?
E se vivo, que accuso mortaes danos?
CXIII.
Hum firme coração posto em ventura;
Hum desejar honesto, que se engeite
De vossa condição, sem que respeite
A meu tão puro amor, a fé tão pura;
Hum ver-vos de piedade e de brandura
Sempre inimiga, faz-me que suspeite
Se alguma Hyrcana fera vos deo leite,
Ou se nascestes de huma pedra dura.
Ando buscando causa, que desculpe
Crueza tão estranha; porém quanto
Nisso trabalho mais, mais mal me trata.
Donde vem, que não ha quem nos não culpe;
A vós, porque matais quem vos quer tanto,
A mim, por querer tanto a quem me mata.{58}
CXIV.
Ar, que de meus suspiros vejo cheio;
Terra, cansada ja com meu tormento;
Agua, que com mil lagrimas sustento;
Fogo, que mais accendo no meu seio;
Em paz estais em mim; e assi o creio,
Sem esse ser o vosso proprio intento;
Pois em dor onde falta o soffrimento,
A vida se sostem por vosso meio.
Ai imiga Fortuna! ai vingativo
Amor! a que discursos por vós venho,
Sem nunca vos mover com minha mágoa!
Se me quereis matar, para que vivo?
E como vivo, se contrarios tenho
Fogo, Fortuna, Amor, Ar, Terra e Agoa?
CXV.
Ja claro vejo bem, ja bem conheço
Quanto augmentando vou o meu tormento;
Pois sei que fundo em água, escrevo em vento,
E que o cordeiro manso ao lobo peço;
Que Arachne sou, pois ja com Pallas teço;
Que a tigres em meus males me lamento;
Que reduzir o mar a hum vaso intento,
Aspirando a esse ceo que não mereço.
Quero achar paz em hum confuso inferno;
Na noite do sol puro a claridade;
E o suave verão no duro inverno.
Busco em luzente Olympo escuridade,
E o desejado bem no mal eterno,
Buscando amor em vossa crueldade.{59}
CXVI.
De cá, donde somente o imaginar-vos
A rigorosa ausencia me consente,
Sôbre as azas de Amor, ousadamente
O mal soffrido esprito vai buscar-vos.
E se não receára de abrazar-vos
Nas chammas que por vossa causa sente,
Lá ficára comvosco e, vós presente,
Aprendêra de vós a contentar-vos.
Mas, pois que estar ausente lhe he forçado,
Por senhora, de cá, vos reconhece,
Aos pés de imagens vossas inclinado.
E pois vêdes a fé que vos offrece,
Ponde os olhos, de lá, no seu cuidado,
E dar-lhe-heis inda mais do que merece.
CXVII.
Não ha louvor que arribe á menor parte
De quanto em vós se vê, bella Senhora:
Vós sois vosso louvor: quem vos adora
Reduz somente a este o engenho e arte.
Quanto por muitas damas se reparte
De bello e de formoso, em vós agora
Se junta em modo tal, que pouco fôra
Dizer que sois o todo, ellas a parte.
Culpa, logo, não he, se vou louvar-vos,
Ver incapazes todos os louvores,
Pois tanto quiz o Ceo avantajar-vos.
Seja a culpa de vossos resplandores;
E a que elles t~ee vos dou, só para dar-vos
O mor louvor de todos os maiores.{60}
CXVIII.
Não vás ao monte, Nise, com teu gado;
Que lá vi que Cupido te buscava:
Por ti somente a todos perguntava,
No gesto menos placido que irado.
Elle publíca, em fim, que lhe has roubado
Os melhores farpões da sua aljava;
E com hum dardo ardente assegurava
Traspassar esse peito delicado.
Fuge de ver-te lá nesta aventura,
Porque se contra ti o tens iroso,
Póde ser que te alcance com mão dura.
Mas ai! que em vão te advirto temeroso,
Se á tua incomparavel formosura
Se rende o dardo seu mais poderoso!
CXIX.
A violeta mais bella que amanhece
No valle por esmalte da verdura,
Com seu pallido lustre e formosura,
Por mais bella, Violante, te obedece.
Perguntas-me porque? Porque apparece
Em ti seu nome, e sua côr mais pura;
E estudar em teu rosto só procura
Tudo quanto em beldade mais florece.
Oh luminosa flor! Oh sol mais claro!
Unico roubador de meu sentido,
Não permittas que Amor me seja avaro.
Oh penetrante setta de Cupido!
Que queres? Que te peça por reparo
Ser neste valle Eneas desta Dido?{61}
CXX.
Tornae essa brancura á alva assucena,
E essa purpurea côr ás puras rosas;
Tornae ao sol as chammas luminosas
De essa vista que a roubos vos condena.
Tornae á suavissima sirena
D'essa voz as cadencias deleitosas:
Tornae a graça ás Graças, que queixosas
Estão de a ter por vós menos serena:
Tornae á bella Venus a belleza;
A Minerva o saber, o engenho, e a arte;
E a pureza á castissima Diana.
Despojae-vos de toda essa grandeza
De dões; e ficareis em toda parte
Comvosco só, que he só ser inhumana.
CXXI.
De mil suspeitas vãas se me levantão
Trabalhos e desgostos verdadeiros.
Ai que estes bens de Amor são feiticeiros,
Que com hum não sei que toda alma encantão!
Como serêas docemente cantão
Para enganar os tristes marinheiros:
Os meus assi me attrahem lisongeiros,
E despois com horrores mil me espantão.
Quando cuido que tomo porto ou terra,
Tal vento se levanta em hum instante,
Que subito da vida desconfio.
Mas eu sou quem me faz a maior guerra,
Pois conhecendo os riscos de hum amante
Fiado a ondas de Amor, dellas me fio.{62}
CXXII.
Mil vezes determino não vos ver,
Por ver se abranda mais o meu penar:
E se cuido de assi me magoar,
Cuidai o que será, se houver de ser.
Pouco me importa ja muito soffrer,
Despois que Amor me poz em tal lugar;
E o que inda me doe mais he só cuidar,
Que mal sem esta dor posso viver.
Assi não busco eu cura contra a dor,
Porque, buscando alguma, entendo bem
Que nesse mesmo ponto me perdi.
Quereis que viva, em fim, neste rigor?
Somente o querer vosso me convem.
Assi quereis que seja? Seja assi.
CXXIII.
A chaga que, Senhora, me fizestes,
Não foi para curar-se em hum só dia;
Porque crescendo vai com tal porfia,
Que bem descobre o intento que tivestes.
De causar tanta dor vos não doestes?
Mas a doer-vos, dor me não sería,
Pois ja com esperança me veria
Do que vós que em mi visse não quizestes.
Os olhos com que todo me roubastes
Forão causa do mal que vou passando;
E vós estais fingindo o não causastes.
Mas eu me vingarei. E sabeis quando?
Quando vos vir queixar porque deixastes
Ir-se a minha alma nelles abrazando.{63}
CXXIV.
Se com desprezos, Nympha, te parece
Que podes desviar do seu cuidado
Hum coração constante, que se offrece
A ter por gloria o ser atormentado.
Deixa a tua porfia, e reconhece
Que mal sabes de amor desenganado;
Pois não sentes, nem vês que em teu mal crece,
Crescendo em mi de ti mais desamado.
O esquivo desamor, com que me tratas,
Converte em piedade, se não queres
Que cresça o meu querer, e o teu desgosto.
Vencer-me com cruezas nunca esperes:
Bem me podes matar, e bem me matas;
Mas sempre ha de viver meu presupposto.
CXXV.
Senhora minha, se eu de vós ausente
Me defendêra de hum penar severo,
Suspeito que offendêra o que vos quero,
Esquecido do bem de estar presente.
Traz este, logo sinto outro accidente,
E he ver que se da vida desespero,
Perco a gloria que vendo-vos espero;
E assi estou em meus males differente.
E nesta differença meus sentidos
Combatem com tão aspera porfia,
Que julgo este meu mal por deshumano.
Entre si sempre os vejo divididos;
E se acaso concordão algum dia,
He só conjuração para meu dano.{64}
CXXVI.
No regaço de mãe Amor estava
Dormindo tão formoso, que movia
O coração que mais isento o via;
E a sua propria mãe de amor matava.
Ella, co'os olhos nelle, contemplava
A quanto estrago o mundo reduzia:
Elle porém, sonhando, lhe dizia
Que todo aquelle mal ella o causava.
Soliso que, graduado em seus amores,
De saber de ambos mais teve a ventura,
Assi soltou a dúvida aos pastores:
Se bem me ferem sempre sem ter cura
Do menino os ardentes passadores,
Mais me fere da mãe a formosura.
CXXVII.
Este terreste caos com seus vapores
Não póde condensar as nuvens tanto,
Que o claro sol não rompa o negro manto
Cum suas bellas e luzentes côres.
A ingratidão esquiva de rigores
Opposta nuvem he, que dura em quanto
Nos não converte o Ceo em triste pranto
Suas vãas esperanças, seus favores.
Póde-se contrapôr ao ceo a terra,
E estar o sol por horas eclipsado;
Mas não póde ficar escurecido.
Póde prevalecer a vossa guerra;
Mas, a pezar das nuvens, declarado
Ha de ser vosso sol, e obedecido.{65}
CXXVIII.
Huma admiravel herva se conhece,
Que vai ao sol seguindo de hora em hora,
Logo que elle do Euphrates se vê fóra,
E quando está mais alto, então florece.
Mas quando ao Oceano o carro dece,
Toda a sua belleza perde Flora,
Porque ella se emmurchece e se descora:
Tanto co'a luz ausente se entristece!
Meu sol, quando alegrais esta alma vossa,
Mostrando-lhe esse rosto que dá vida,
Cria flores em seu contentamento.
Mas logo, em não vos vendo, entristecida
Se murcha e se consume em grão tormento:
Nem ha quem vossa ausencia soffrer possa.